Não tem que se pedir permissão para se ser livre

27 de Fevereiro de 2014
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[ Artigo originalmente publicado na edição de Janeiro de 2014 do CQFD (jornal mensal de critica e experimentação social.  http://cqfd-journal.org/) tradução: Teófilo Fagundes teofilofagundes@jornalmapa.pt ]

 

Na passada noite de 31 de Dezembro para 1 de Janeiro, os zapatistas celebraram os 20 anos do retumbante “Ya Basta!” de 1994. Nos cinco caracoles 1, as festividades foram alegres e sóbrias: prazer de acolher inúmeros visitantes e de dançar a té de manhãzinha, satisfação evidente de ter atravessado tantas peripécias e ainda estar ali. Ma s nada de anúncios espectaculares nem de grandes discursos recapitulativos: os factos e a experiênci a deviam falar por si mesmos. Foi por isso que, para este aniversário tão aguardado, o EZLN concentrou todos os seus esforços na organização da Escuelita zapatista, a “escolinha”, estrutura que permitiu que 4500 pessoas fossem acolhidas durante uma semana, nas povoações rebeldes, observassem e tocassem a construção deste outro mundo a que eles chamam “autonomia”.

Breve regresso a uma aventura de duas décadas e tentativa de balanço.

 

Dois momentos no processo zapatista

A história do zapatismo a partir de 1994 pode ser sintetizada em duas grandes fases, dum lado e do outro da charneira dos anos 2001-2003. Durante o primeiro período, o EZLN entrou, depois de doze dias de combate, na etapa da palavra: trocas múltiplas com a sociedade civil, nacional e internacional, mas também diálogo com o governo federal, o que levou à assinatura dos Acordos de San Andrés sobre “direitos e culturas indígenas”, incluindo o reconhecimento da autonomia dos povos indígenas, a legalidade de formas específicas de governação e um determinado controlo sobre os seus territórios. Os esforços do EZLN concentraram-se então na reivindicação do reconhecimento destes acordos, cuja colocação em prática implicava o voto duma reforma constitucional, preparada por uma comissão parlamentar ad hoc, a Cocopa. No entanto, se o EZLN aceitou o texto preparado por esta última, o Presidente de então, Ernesto Zedillo, recusou-se, optando por uma estratégia de para-militarização com o objectivo de desestruturar as comunidades zapatistas. Foi então necessário multiplicar as iniciativas a favor dos Acordos de San Andrés, como a Marcha da Cor da Terra, que levou os comandantes rebeldes até à cidade do México, onde a comandante Esther falou à tribuna do congresso a favor da reforma preparada pela Cocopa. O entusiasmo suscitado pela Marcha, assim como a aparente disposição para o diálogo do governo de Vicente Fox faziam presumir que a constitucionalização dos Acordos de San Andrés seria, enfim, um facto. Ainda faltava a desilusão: algumas semanas mais tarde, os legisladores de todos os partidos, incluindo o Partido Revolucionário Democrático (esquerda parlamentar), extraíam os pontos essenciais do texto que lhes fora submetido e adoptavam o que o EZLN e o Congresso nacional indígena denunciaram como uma contra-reforma e uma traição. Amarga desilusão e rude lição.

A primeira fase estava fechada. Depois de ter feito prova dum certo legalismo, ao bater-se por uma modificação das instituições existentes e um reconhecimento constitucional dos direitos dos povos indígenas, o EZLN estava no direito de concluir que todo o diálogo com os poderes instituídos era em vão. Foram, então, necessários dois anos de latência para digerir este revés e implementar um projecto político em parte transformado. Em 2003, o anúncio do EZLN da criação de cinco “Conselhos de Bom Governo”, significava que tinha chegado o tempo de colocar em prática, com os factos, a autonomia prevista nos Acordos de San Andrés, apesar da ausência de reconhecimento legal. Em 2005, a Sexta Declaração da Selva Lacando na passava da crítica ao neoliberalismo para uma postura anticapitalista radical e a “Outra campanha” iniciava a criação, em todo o México, duma rede de lutas “ em baixo e à esquerda”, ou seja, recusando uma concepção da política centrada no aparelho de Estado e o jogo dos partidos políticos. Durante esta fase, a dimensão internacional do zapatismo, que tinha conhecido o seu momento mais intenso com o Encontro Intercontinental Pela Humanidade e Contra o Neoliberalismo, em Julho-Agosto de 1996, tinha ficado menos visível. E, nos anos 2009-2001, a “Outra Campanha” vacilava. Quem não estava em condições de ver o esforço de construção da autonomia nos territórios zapatistas poderia pensar que o movimento desaparecia pouco a pouco. Para muita gente, o dia 21 de Dezembro de 2012 constituiu uma surpresa quase tão grande como a de 1 de Janeiro de 1994. Nesse dia, 40 000 zapatistas ocuparam de novo, mas desta vez de forma silenciosa e pacífica, cinco cidades de Chiapas. Longe de estar em agonia, o EZLN fazia uma demonstração de força impecável e anunciava novas iniciativas , como a Escuelita Zapatista – que é tudo menos uma escola no sentido habitual do termo 2 –  e o apelo à criação da “la Sexta”, uma rede planetária de lutas , sem distinção entre o domínio nacional mexicano e o resto do mundo, como tinha sido o caso desde a proclamação da Sexta Declaração.

 

zapatistas_interior3O que é o balanço do zapatismo, 20 anos depois?

Um dos primeiros méritos dos zapatistas é terem lançado uma declaração de guerra ao governo e ao exército do México – e, para além disso, a “um mundo de injustiças”, como recordaram as palavras dos comandantes na noite do vigésimo aniversário. É também terem sobrevivido a todas as tentativas para os aniquilarem, através da intervenção militar directa ou da brutal para-militarização dos anos 1997-2000, depois através da perseguição doutras organizações indígenas, incitadas pelos governos sucessivos a expulsar os zapatistas das suas terras ou das suas casas. Também se podem citar os programas de ajuda governamental destinados a iludir as famílias rebeldes, assim como todas as tentativas de divisão e difamação imagináveis, sem esquecer a capa de chumbo do silêncio mediático.

Terem resistido enquanto cresciam, pouco a pouco, as sementes da autonomia (e muito particularmente as jovens gerações nascidas depois de 1994 e hoje aptas a ter um papel de relevância, com uma capacidade criativa literalmente decisiva para o futuro), não é coisa pouca. Mas o zapatismo não se contentou com resistir, sobretudo avançou e construiu.

Se perguntassem aos zapatistas o que tinham feito com os seus 20 anos, certamente vos responderiam: venham à Escuelita, é lá que está a nossa resposta. De facto, a Escuelita permite ser-se acolhido, durante uma semana, no seio duma família zapatista, enquanto um “Vótan-anjo da guarda” individual está à disposição de cada um par a responder a todas as questões. A manhã é o momento para participar nos trabalhos dos campos e outras tarefas colectivas. A tarde é consagrada às explicações sobre o funcionamento das comunidades autónomas e dos “Conselhos de Bom Governo”, com os seus cargos não remunerados, colegiais, revogáveis e rotativos, com os seus complexos mecanismos de tomada de decisão pela consulta das assembleias regionais e, se necessário, de cada aldeia. As trocas e as discussões também se podem concentrar na forma como as autoridades fazem a justiça (preferindo as formas de reparação ou de trabalho colectivo às penas de prisão que não servem a ninguém), sobre as centenas de escolas primárias onde trabalham os “promotores da educação” autónomos, ou ainda sobre a condição das mulheres. Estas empenham-se em evidenciar os espaços de participação que conseguiram conquistar, como conseguiram transformar as mentalidades tradicionais e tudo o que ainda falta fazer. Em resumo, entre trabalhos quotidianos, reflexões sobre a autonomia e momentos festivos, a Escuelita é a ocasião de constatar e experienciar como rebeldes humildes e dignos se organizam fora de todas as estruturas do Estado para dar vida, num amplo território, a uma outra realidade colectiva.

Nenhum modelo aqui: os zapatistas cuidaram muito bem de especificar que o que eles conseguiram não é directamente reproduzível noutro lado, o que não impede que se tirem ensinamentos úteis para outras latitudes. “Eles têm medo que descubramos que somos capazes de nos governarmos a nós mesmos”, atira Eloisa, maestra da escolinha. Esta “descoberta”, que é uma das lições mais fortes da experiência zapatista, tem de facto como consequência irritante para os de cima demonstrar a sua nociva inutilidade! É também um resumo perfeito do que é a autonomia para os zapatistas, a saber, uma democracia real de auto-governo, uma forma política sem Estado, constituindo-se a partir de baixo e na qual a separação entre governantes e governados se reduz tanto quanto possível. Mas atenção, “a autonomia não tem fim”: não há uma sociedade perfeita em vista. Trata-se, sim, de entrar num processo sem fim de “caminhar colocando questões”, sem receita prévia e alterando sem parar a forma de organização que as assembleias e as autoridades eleitas tomam. “ Resistimos e construímos ao mesmo tempo”, explicam ainda. Seria ingénuo pretenderem fazer o esquisso duma outra realidade sem se preocuparem com fazer frente aos ataques sistémicos que daí decorrem. No entanto, a experiência zapatista demonstra que é possível criar espaços libertados, autónomos, sem perder mais tempo a tentar em vão arranjar o sistema existente, que a engrenagem da lógica capitalista conduz ao desastre.

“E vocês, vocês sentem-se livres?”, pergunta finalmente um dos maestros da Escuelita. Para os zapatistas, apesar das dificuldades extremas – que estão longe de ter ficado para trás, uma vez que o actual Presidente Peña Nieto poderá em breve fingir relançar o diálogo e reconhecer os direitos indígenas a fim de colocar o EZLN numa posição delicada -, a resposta é clara: eles escolheram a liberdade. Decidem da vida deles e inventam a sua própria forma de se governarem. É precisamente este ar de liberdade que se respira em terras zapatistas, cujo contágio a Escuelita pretende garantir. Um conselho: acima de tudo, não vão lá. Arriscam-se a voltar perigosamente carregados de energia rebelde e dotados de argumentos sólidos de apoio ao nosso desejo partilhado de criar outros mundos libertados da tirania capitalista.

 

Jérôme Baschet

 

Notes:

  1. Comunidades autónomas, geridas pelos “Conselhos de bom governo”.
  2. As três primeiras sessões da Escuelita tiveram lugar em Agosto e Dezembro de 2013, depois em Janeiro de 2014. Serão organizadas outras sessões durante o ano de 2014 em datas brevemente definidas.

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