«Nós por nós»: militarização e resistência nas periferias do Rio de Janeiro
As políticas de militarização, iniciadas por Lula e continuadas por Dilma, tiveram como objectivo a contenção da população pobre da periferia do Rio de Janeiro, conducente à realização do Mundial de Futebol de 2014 e das Olimpíadas de 2016, e implicaram uma prática autoritária sistemática através da violência policial. Com Temer a presença militar estendeu-se pelas favelas e, pontualmente, pelo asfalto. A vitória de Bolsonaro nas eleições de Outubro passado reforça a «política de extermínio da juventude negra, periférica e favelada». A entrevista feita pelo blog Cartografia Noturna a Carlos Gonçalves, que publicamos agora no site do Jornal Mapa, foi recolhida antes de ser conhecido o resultado das eleições presidenciais brasileiras, que veio agravar o contexto político e complicar as iniciativas de resistência descritas por este activista da Favela da Maré.
Foto de Andréa Farias
Há 5 anos e meio atrás, em julho de 2013, o desaparecimento de Amarildo de Souza, pedreiro e morador da favela da Rocinha, no Rio de Janeiro, durante uma operação de repressão policial, suscitou uma onda de indignação no Brasil inteiro. Em março de 2018, o assassinato da vereadora Marielle Franco, em pleno centro da cidade, gerou uma nova onda de indignação pelo país. Estes dois crimes revelam os desafios enfrentados por aqueles que se organizam para combater a violência do Estado nas periferias do Rio de Janeiro. Durante os cinco anos que os separam, a violência policial nas favelas cariocas intensificou-se drasticamente, agora com a presença sistemática do Exército nas comunidades. Por outro lado, diversos movimentos consolidaram-se nestes territórios, juntando forças e construindo ferramentas para enfrentar esta violência. Dentre elas, uma rede de ativistas oriundos de diversas comunidades desenvolveu a aplicação «Nós por nós» que funciona como uma ferramenta de resistência contra a violência do Estado. Para compreender esta realidade de uma perspectiva local, Cartografia Nocturna conversou com Carlos Gonçalves, morador da favela da Maré, na zona norte do Rio. Carlos desenvolve projetos na área da educação, no Coletivo de Educação Popular Orosina Vieira, atuante na comunidade. É colaborador do jornal local O Cidadão e é ex-membro do Fórum de Juventudes do Rio de Janeiro.
Cartografia Noturna: Você poderia começar nos apresentando o que é o Fórum de Juventudes, do qual você participou nos últimos anos?
Carlos Gonçalves: O Fórum da Juventude é um coletivo que existe há um tempo, reunindo vários movimentos de jovens de diversas favelas do Rio de Janeiro que atuam na área de Direitos Humanos nas populações das periferias. Trabalhamos mais especificamente em torno do conflito urbano, da violência policial e do encarceramento, inclusive em apoio às mães e familiares de vítimas das operações policiais, pautando e denunciando a exterminação da juventude negra, periférica e favelada, pelo Estado Brasileiro.
São diversos coletivos e grupos que atuam cada um em seus bairros e territórios, em diversas partes do Rio de Janeiro. Para dar alguns exemplos: temos conosco um grupo do Morro da Providência que atuou nos últimos anos contra as operações de remoções em decorrência dos Mega-Eventos; tem outro grupo que trabalha com Direitos Humanos na favela do Acari; tem um coletivo que desenvolve projetos de educação popular em Campo Grande; um pessoal de Manguinhos etc. Portanto, são grupos que atuam localmente em diversos campos, seja da luta por moradia, do direito ao espaço urbano, da educação popular, mas que convergiram no Fórum para atuar juntos frente à violência policial que denunciamos como uma política sistemática de extermínio da juventude periférica.
CN: O Rio de Janeiro é, no Brasil, o local que tem o maior índice de morte de jovens de periferia em operação policial 1. A partir de 2009, foram criadas as primeiras UPP’s (Unidade de Polícia Pacificadora) como política de segurança que, teoricamente, iria inaugurar uma «outra forma» de atuação policial. No entanto, a violência policial e os casos de chacinas não parecem ter diminuído, inclusive nos locais onde UPP’s foram instaladas. Como você avaliaria a evolução da violência policial desde a implantação da política das UPP’s?
CG: É dificil falar das UPP’s sem falar das políticas que incentivaram e permitiram a realização dos Mega-Eventos desportivos no Rio de Janeiro e no Brasil – a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpiadas de 2016. É importante lembrar primeiramente que os dois principais grupos que organizam estes eventos, tanto a FIFA quanto o COI (Comité Olimpico Internacional) são grupos que são mundialmente conhecidos – inclusive através de denúncias jurídicas – por serem fortemente corruptos. Assim como tinha acontecido em outros países anteriomente, como por exemplo na África do Sul com a Copa de 2010, a realização dos Mega-Eventos no Brasil representou primeiramente uma operação de reestruturação urbana e reordenamento ecónomico para atender exclusivamente os interesses de alguns setores privados e grupos empresariais, vinculados à própria FIFA e ao COI, ou ainda aos grupos patrocinadores dos Mega-Eventos. Isso aconteceu no Brasil, recentemente na Rússia (na Copa de 2018) e também acontecerá no Qatar (na Copa de 2022)…
Mas para poder garantir uma operação de reestruturação urbana deste porte, tal como aquela que aconteceu no Rio de Janeiro antes dos Mega-Eventos, é preciso garantir através de uma postura autoritária e violenta a «segurança» desta operação. Ou seja, traduzindo isso para a realidade brasileira atual, é preciso garantir que os pobres permaneçam nos espaços urbanos desiguais a eles destinados. E é para isso que o Estado de Rio de Janeiro teve a ideia de lançar as UPP’s. E essa política das UPP’s foi também uma forma de atender os anseios da classe média carioca. Historicamente, a maior preocupação da classe média carioca em relação à favela não é de saber se essa possui estrutura de educação ou de saúde adequada, mas pode ser resumida por esta pergunta: «existe uma estrutura capaz de conter os favelados?»… E a UPP vai tentar encarnar essa estrutura. No discurso oficial, diziam que a UPP iria diminuir a intensidade dos conflitos e permitir a entrada de serviços básicos nas favelas – tais como educação e saúde – e que, da noite para o dia, a atuação da polícia mudaria em relação às favelas. E esse discurso até conseguiu ganhar adesão de parte da esquerda do asfalto e da própria favela. Mas não foi assim que aconteceu. Não houve nenhum investimento suplementar na Educação e na Saúde nas favelas, a primeira continua cada vez mais sucateada e a segunda está quase sendo toda privatizada no Rio de Janeiro. Apesar da fachada e da propaganda inicial, a UPP não modificou a forma de aproximação da polícia em relação à favela, tratou-se apenas de mais uma estratégia de manutenção da ordem e contenção da pobreza.
Para entender este processo, é importante lembrar que a polícia do Estado do Rio de Janeiro é formada, desde a sua origem, no início do Império, com um único dever: garantir a ordem vigente a qualquer custo. Temos, portanto, uma polícia extremamente violenta, cujo objetivo principal é a manutenção da ordem vigente, mesmo que isso possa incluir o uso de armas e estratégias de guerra contra as populações pobres. E o Poder Judiciário apoia e participa na manutenção dessa estrutura no momento em que ele inocenta ou encobre sistematicamente os polícias culpados de matar vidas faveladas.
Na verdade, o que aconteceu foi que nestes últimos anos a UPP abriu o caminho para a militarização das favelas no Rio de Janeiro. Desde 2014, a força militar se fez cada vez mais presente na favela da Maré por exemplo, onde eu moro. Na Gestão Temer, essa presença militar se estendeu para outras favelas ou pontualmente para o asfalto. E essas políticas ditas de «segurança pública» são na verdade políticas de militarização da periferia e de contenção da população pobre.
É importante ter em mente que esta política dita de «segurança pública» não tem, em nenhum momento, como objetivo de sanar a chamada «crise da insegurança pública». A estratégia é justamente não ter estratégia, já que a chamada «insegurança» na verdade é muito proveitosa para o setor bélico, que lucra muito com essa situação, assim como o setor do narcotráfico, cujos atores mais influentes se encontram não nas favelas mas na classe política brasileira.
Foto de Andréa Farias
CN: Nos últimos anos alguns movimentos contra a violência policial ganharam visibilidade em outros lugares do mundo. Dentro deles, o movimento Black Lives Matter, nos EUA; e alguns de seus representantes têm definido a questão da violência policial não como algo pontual, mas estrutural. Aqui no Brasil, vemos que existem movimentos comunitários que denunciam a violência como algo estrutural, uma política de extermínio, enquanto alguns setores da esquerda defendem apenas uma reforma interna do sistema policial…
CG: É porque quando a classe média vai debater segurança pública, ela fala apenas da sua perspectiva, se preocupando apenas da forma como ela é afetada pelo que ela chama de «segurança». Mas ela fala sobre o assunto sem considerar a experiência da favela. Você nunca vê a esquerda, mesmo a mais progressista, discutir segurança pública tentando adotar o olhar da favela, da Baixada, da Zona Oeste, estes espaços que são a não-cidade dentro da cidade. Então estamos acostumados a ouvir um discurso sobre segurança pública produzido exclusivamente a partir do asfalto, e que procura sempre explicar a violência policial como algo pontual: que se daria pela falta de treinamento dos polícias, dos salários baixos, etc…
O que faz na verdade o polícia que atua na favela operar desta forma é uma engrenagem que é condicionada à logica estrutural da polícia que desde a sua criação pode ser resumida desta forma: «eu tenho o poder de decidir quem deve morrer ou não». Essa é a ideologia de uma instituição – que funciona como braço armado do Estado – e que se atribui poder de decidir quem pode viver e quem deve ser morto. Encontramos essa mesma lógica, de direito de vida ou morte sobre o oprimido, em outros momentos da história, e aqui no Brasil desde o período escravocrata. E, como sabemos, não há diálogo possível com um tipo de estrutura política autoritária ou fascista que raciocina desta forma e age em consequência.
O problema é que todo o discurso dos setores progressistas sobre Segurança Pública, que se foca em propostas reformistas, é construído apenas a partir da visão da classe média influenciada pela academia. Mas o fato é que essa visão de Segurança construída na academia não representa e nunca representou a realidade histórica da periferia preta deste país.
CN: Em 2016 você participou do grupo que lançou a «Nós por nós»? Você poderia nos contar mais sobre o que é essa aplicação e como esse projeto surgiu?
CG: A gente estava tendo uma reflexão interna entre os movimentos sociais no Rio de Janeiro, para tentar pensar uma estrutura que podia nos auxiliar na luta contra a violência policial na periferia. E começámos a pensar na possibilidade de criar uma aplicação. A ideia surgiu a partir da própria experiência que tivemos atuando em relação a chacinas e conflitos urbanos no Rio de Janeiro. Em 2013, quando a UPP de Manguinhos assassinou o Mateus, de 17 anos, os moradores foram para a rua, logo em seguida, manifestar-se contra a UPP. A situação do protesto estava tensa e vários policiais ameaçaram usar suas armas contra os manifestantes. Mas assim que as pessoas começaram a filmar e disseram que estavam ao vivo no Facebook, os policiais foram obrigados a recuar. Posso citar ainda o caso de Eduardo de Jesus, de 10 anos, assassinado em 2015 no Complexo do Alemão. Logo após o ocorrido, a mãe dele foi para cima do polícia, e este sacou a arma e a ameaçou com insultos. Mas assim que as pessoas em volta começaram a filmar, o polícia também deu para trás…
Então observamos nesses anos de mobilização nas periferias que o fato de filmar permitia de certa forma enfrentar e peitar o nível da violência policial. É obvio que não é somente o fato de filmar, antes de tudo é a mobilização coletiva que é o mais importante. Se você estiver sozinho filmando, você provavelmente vai rodar do mesmo jeito… Então isso foi uma primeira observação que fizemos: a importância desses movimentos sistemáticos de resistência de moradores nas periferias com o hábito de filmar os polícias como forma de se defender.
E tinha também um outro aspecto que considerámos: toda vez que íamos para o sistema judicial para denunciar algum caso de violência policial, a gente se confrontava com uma falta de provas e de materialidade para poder avançar com o processo. Foi o que alegaram por exemplo no caso da chacina de Costa Barros, quando cinco jovens dentro de um carro foram assassinados por 111 tiros no fim de 2015. (Vemos que para esse sistema judicial mesmo 111 tiros não é materialidade suficiente né?). Então vimos que precisávamos de mais provas e materialidade para fazer avançar essas denúncias.
Foi aí que pensámos como seria estratégico criar uma aplicação que permitisse conectar diretamente as imagens filmadas pelos moradores testemunhas de violência à Defensoria Pública. É assim que nasce a ideia de criar a aplicação «Nós por nós». Esta aplicação está dividida em 3 partes fundamentais:
– A primeira parte é uma Cartilha de Direitos intitulada «Conhece seus direitos». Realizámos essa cartilha a partir de uma pesquisa que fizemos nas comunidades colocando algumas informações e direitos básicos fundamentais. Informámos por exemplo ali que: o fato de filmar uma violência policial não te obriga a ser testemunha perante a justiça, coisa que a maioria não sabe, o fato da polícia não poder invadir a sua casa sem mandato, o fato do polícia não ter direito de te levar à delegacia apenas porque você não tem identidade, etc.
– A segunda parte contém contactos de Instituições que podem ser acionadas em caso de violência policial. Obviamente, isso não inclui a polícia, é sempre importante lembrar que não adianta denunciar a polícia à própria polícia (risos).
– A terceira parte da aplicação é o espaço para fazer a denúncia. Primeiro, você indica qual o tipo de entidade que é alvo da sua denúncia: polícia militar, polícia civil, exército, guarda municipal, etc. Em seguida você encaminha a sua denúncia através de um vídeo ou de fotos. Existe uma câmera vinculada à aplicação. Assim que você começa a filmar a partir da aplicação, as imagens são imediatamente enviadas para o nosso servidor que armazena todas as denúncias. Ou seja, mesmo que o polícia tire o telemóvel da sua mão enquanto você está filmando, ele não poderá destruir o que já foi filmado pois tudo já estará gravado no nosso servidor. E o nosso servidor já redirecionou as denúncias para as instâncias competentes: Defensoria Pública ou Ministério Público, por exemplo.
É também possível fazer a denúncia via aplicação sem filmar ou fotografar, mas sempre pedimos que se faça um vídeo ou fotografias para podermos ter o máximo de provas no momento de encaminhar a denúncia. Se possível filmar de lado, gravar a placa da viatura ou a identificação do polícia – mesmo se sabemos que na maioria das vezes eles não usam identificação na favela; filmar ou fotografar o nome da rua do ocorrido, etc…
Portanto, os principais objetivos desta aplicação são: ter mais uma arma nas mãos contra a violência policial, criar mais materialidade para poder processar e denunciar os culpados, e permitir avançar em políticas públicas contra o genocídio da população jovem e negra de periferia. É claro que não é apenas uma aplicação que vai extinguir a violência policial e o racismo da face da terra, mas é mais uma arma que nós temos. É mais uma forma inteligível de tentar combater essa guerra insana que é essa guerra desencadeada contra preto, pobre e favelado.
CN: Nos últimos anos, desde os fortes protestos que ocorreram em 2013 logo após o desaparecimento de Amarildo, houve diversos protestos populares contra a violência policial na periferia, ao mesmo tempo movimentos comunitários que atuam sobre o tema ganharam uma forte visibilidade. Você diria que há uma maior mobilização ou organização nos últimos anos nas comunidades diante dessas questões?
CG: Na verdade acho que vivemos uma onda crescente de repressão e isso impulsionou uma necessidade de organização. Acho que junho de 2013 foi um marco, pois antes ninguém imaginava a sociedade brasileira se manifestar nacionalmente diante do desaparecimento de um pedreiro da Rocinha, que foi o que aconteceu com o caso Amarildo. Neste sentido, 2013 foi um marco muito importante. Tanto pela presença muito forte de gente nas ruas quanto pela repercussão desse caso. Mas 2013 acabou passando, pois como todo movimento, teve o seu auge e também a sua decadência, o seu esfriamento….
Hoje vivemos outro momento que é o momento da ressaca económica pós Mega-Eventos, e a ressaca da política de «insegurança pública» ligada a esses Mega-Eventos. Esta situação significa, no Rio de Janeiro, um aumento muito grande de chacinas, mas também de guerras entre facções ou milícias na disputa de territórios. Conforme a UPP foi se localizando e se instalando em territórios de certas facções, ela impulsionou uma reorganização do narcotráfico no Rio de Janeiro, e isso provocou inevitavelmente novos conflitos.
Diante dessa situação toda, tivemos que fortalecer os nossos movimentos populares e nossas ferramentas de luta. Nos últimos anos nós nos articulámos como outros movimentos ao nível internacional, tal como o Black Lives Matter nos EUA, conseguimos criar um Fórum, ao nível nacional, das mães de vítimas de violência policial em todo país. Ampliámos a articulação entre as diferentes cidades, mas sobretudo entre Rio e São Paulo, ainda precisamos nos articular melhor com as outras cidades. Nós nos consolidámos em alguns espaços para fazer denúncias como Defensoria e Ministério Público… Motivados pela conjuntura fomos impulsionados a nos reestruturar para sobreviver, mas ainda há muito a ser construído pela frente.
CN: Em 2018 a temática da violência do Estado nas periferias do Rio de Janeiro voltou a ocupar os grandes noticíarios na decorrência de uma série de fatos: no início do ano, em Fevereiro, o Governo Temer decretou a Intervenção Federal do Exército nas favelas do Rio de Janeiro. Em seguida, no dia 14 de março, a vereadora Marielle Franco foi executada em pleno centro da cidade. A Marielle participava então numa Comissão encarregada de monitorar a Intervenção Federal e era uma das principais figuras políticas a criticar a Intervenção Federal denunciando a violência policial e militar nas periferias cariocas. O que esses fatos nos dizem sobre a situação atual no Rio de Janeiro?
CG: A gente vive atualmente no Rio de Janeiro uma situação muito complexa, não só no Rio mas em todo Brasil, mas vemos que a cidade do Rio ocupa uma posição de exceção. Como o próprio General Braga Neto, responsável pela Intervenção Militar – que começou em fevereiro de 2018 – comentou logo no início da Intervenção: «o Rio de Janeiro é um grande laboratório para o Brasil». É simbólico, no início mesmo da Intervenção militar, afirmar isso, pois de fato as políticas de segurança pública aplicadas no Rio de Janeiro configuram um experimento para o Governo avaliar o que pode ou não pode ser feito no resto do país, e isto desde as UPP’s até esta recente Intervenção militar. Isto significa que uma vez implantadas e testadas no Rio de Janeiro, estas medidas podem ser exportadas para outros Estados ou até para fora do Brasil – como aconteceu no Haiti, donde o exército brasileiro importou nos últimos anos o modelo da UPP para a gestão militar das populações pobres.
Mas esta Intervenção também deve ser contextualizada no seio da realidade política do país. É interessante lembrar que na história do Brasil, o Rio foi frequentemente usado como vitrine para auto-promoção dos governantes. Neste sentido, os Mega-Eventos desportivos e a Intervenção ocupam, a meu ver, um papel espetacular semelhante. Esta Intervenção também me parece ter sido uma manobra política do Governo Federal no intuito ao mesmo tempo de se auto-promover e afirmar o seu poder de decisão e de ação, e, ao mesmo tempo, fazer diversão para a opinião pública ao mesmo tempo que propunha um Conjunto de Leis que integram a Reforma da Previdência, retirando um conjunto de direitos históricos aos trabalhadores.
E no seio deste contexto nacional e internacional conturbado, no contexto desta Intervenção Federal que permite ao exército de intervir nas favelas cariocas, ocorre este outro fato que é a execução da Marielle Franco. Mulher negra, de periferia, vereadora que participava da Comissão que investigava a Intervenção Federal e que denunciava frequentemente abusos de poder e de autoridades. No dia 14 de março do ano passado, ela foi assassinada no seu carro, perto da Lapa. Essa execução relembra, e simbolicamente tem muitas semelhanças, uma outra execução que marcou a história, décadas atrás: a execução do Carlos Marighella (militante da luta armada contra a Ditadura Brasileira, assassinado por agentes do DOPS de São Paulo no dia 4 de novembro de 1969), morto também com vários tiros dentro do seu carro, em pleno centro de São Paulo. Fora obviamente as devidas e distintas realidades históricas dos dois contextos, isso parece traçar uma continuidade e uma semelhança nas estratégias do aparato repressivo contra aqueles que ele identifica como inimigos. A verdade é que é díficil não lembrar 1964 e as suas consequências quando você pensa na execução da Marielle.
De momento, pela investigação dos média e pela natureza da execução, tudo indica que esta teve participação da milícia e, aparentemente, de setores da polícia e integrantes da própria Câmara dos Vereadores. O que é certo é que não foi qualquer miliciano que foi encarregado desta operação, mas que foram pessoas muito bem treinadas e preparadas. Isto apenas tende a nos revelar um pouco mais o teor do que está acontecendo no Rio de Janeiro, ou seja, o poder crescente de máfias locais, que aparentemente têm vinculos na Câmara dos Vereadores e provavelmente na própria ALERJ, e o quanto estes grupos estão prontos a fazer de tudo para defender seus interesses e os interesses de quem financia as campanhas políticas que os beneficiam.
Percebemos que, ao lado do poder mafioso de grupos políticos e empresariais, temos um crescente poder de grupos armados vinculados a este poder político e contratados para fazer o trabalho sujo. E estamos cada vez mais preocupados ao ver o Rio de Janeiro cada vez mais loteado por interesses desses grupos, que ganham mais força e impunidade. É exatamente por esta razão que se torna urgente e indispensável o trabalho de base que estamos desenvolvendo nos nossos bairros e comunidades, e que citei no ínicio desta entrevista, seja aqui na Maré, em Manguinhos ou em qualquer localidade. Pois é através deste tipo de ação que podemos ter esperança de proteger as nossas comunidades e reverter esse quadro daqui a alguns anos. Vejo que este é o sentido de cada trabalho local que estamos desenvolvendo atualmente: como podemos afinar nossas estratégias para transformar de forma profunda essa coisa louca chamada de Democracia Brasileira?
Entrevista feita por Cartografia Nocturna [cartografianoturna.com]
Notes:
- Segundo os dados da Amnesty International, entre 2005 e 2014 cerca de 8500 pessoas foram mortas pela polícia na cidade do Rio de Janeiro. Apenas no ano da Copa do Mundo de 2014, foram 582 mortes em decorrência de ação policial na cidade. O Relatório pode ser consultado no seguinte endereço: https://www.amnesty.org/en/documents/amr19/2068/2015/en/-. Relatórios mais recentes da organização não governamental Human Rights Watch mostram que estes números vêm aumentando nos últimos anos, inclusive após a Intervenção Federal do Exército. Entre janeiro e junho de 2018, policiais militares e civis mataram 895 pessoas no Estado do Rio de Janeiro, um aumento de 39% em relação ao mesmo período no ano anterior (Para mais informações, ver: https://www.hrw.org/news/2018/08/16/police-killings-are-out-control-rio-de-janeiro). ↩