Fascismos in vitro

13 de Abril de 2020
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Em tempos de pandemia, as tendências autoritárias aprofundam-se e a sua aceitação alastra. Um primeiro e incompleto quadro das degenerescências mais visíveis em direcção a uma sociedade fascista que nos foram dadas a observar nas geografias mais próximas.

Ilustração de José Smith Vargas


No Estado espanhol, a perseguição a comunidades ciganas é enorme. Na generalidade, as suas formas de habitação e socialização não são compatíveis com confinamentos, e a necessidade diária de ganhar dinheiro ainda menos. As práticas de ultra-higienização recomendadas são impossíveis para quem tem um acesso muito limitado à água. As chamadas medidas de contenção têm, na realidade, implicações muito diferentes para grupos diferentes, não apenas com base na idade e no estado de saúde, mas acima de tudo relacionadas com as desigualdades sociais de classe, género e etnia. A única notícia que nos chegou do Estado vizinho por via dos média empresariais foi a de que «as autoridades espanholas impediram cerca de três dezenas de nómadas portugueses de permanecer num terreno situado na cidade fronteiriça» de Badajoz, com que o jornal Público nos informava que essas pessoas tinham sido expulsas para território português, porque as autoridades espanholas alegavam «riscos de contágio por Covid-19».

Mas esse não é um caso isolado. De tal forma que a sevilhana Federação de Associações de Mulheres Ciganas FAKALI alertou a imprensa espanhola para o facto de que a crise do coronavírus «trouxe, directa ou indirectamente, certos episódios racistas, anti-ciganos e claramente xenófobos». Em Santoña, Cantábria, por exemplo, onde tinham morrido seis pessoas e cinco delas eram ciganas, o alcaide (presidente da Câmara) Sergio Abascal sublinhava uma linha que separava «o colectivo cigano» e «o resto da população», fazendo ainda alusões depreciativas, no sentido de potenciadoras de contágio, a práticas culturais da comunidade. Em confinamento obrigatório vigiado pelo exército, os elementos desta etnia foram presenteados via WhatsApp e outras redes sociais com mensagens onde um indivíduo pedia a prisão de todos os ciganos e dizia «que cantem e dancem ali fechados até que morram todos… Estão a infectar toda a gente. A ver se morrem todos, bebés, crianças, idosos e a puta que os pariu».

Aliás, para além das medidas habituais de prevenção da contaminação da Covid-19, alguns Estados da União Europeia (UE) introduziram medidas adicionais direccionadas às comunidades ciganas. Na Bulgária, por exemplo, alguns políticos referiram-se-lhes como «uma ameaça para a saúde pública» que exigem regras especiais, tais como checkpoints policiais à volta dos seus acampamentos. Mas houve respostas semelhantes noutros Estados, tais como a Roménia, a Eslováquia (onde os acampamentos são controlados pelo exército) e a República Checa.

Por cá, em lusas terras, já se anunciara o fecho das escolas, já o «fica em casa» soava mais a ameaça do que a conselho, e os despejos continuavam, afectando sobretudo pessoas não brancas. A 24 de Março, no seguimento de um comunicado da Associação de Mediadores Ciganos de Portugal (AMEC), o seu presidente, Prudêncio Canhoto, afirmava: «Em Portugal temos ciganos com muitas dificuldades. Os feirantes estão parados. As pessoas querem dinheiro para comer e não têm. A sorte de alguns são as famílias. Quem tem alguma coisa vai ajudando, mas os feirantes vivem do negócio e do que vendem, não dá para dar muito.» Houve também o caso dos ciganos forçados ao nomadismo, em Elvas, de onde foram expulsos pelas autoridades locais. A 26 de Março, a Cáritas da Guarda alertava que a «comunidade cigana vai ser um problema, as feiras não existem, eles não têm dinheiro e começam a ter dificuldades, aparecem na Cáritas mais vezes para receber os bens alimentares». No dia seguinte, em Portimão, a Câmara Municipal anunciava a ida de técnicos à «comunidade de etnia cigana nos bairros sociais da Cruz da Parteira e das Cardosas/Mira Cabo, num alerta para a importância da adopção de novos comportamentos sociais e boas práticas para a contenção da propagação do coronavírus», não se esquecendo de acrescentar que «as visitas [são] apoiadas por agentes da PSP».

Antes, a 12 de Março, Ihor Homeniuk, um ucraniano que vinha assinar um contrato de trabalho com uma empresa portuguesa de construção civil, foi fechado numa sala do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) do aeroporto de Lisboa e espancado durante 20 minutos com murros, pontapés e um bastão extensível. Até à morte. De acordo com o Mandado de Detenção dos três inspectores do SEF, a que a Revista Sábado diz ter tido acesso, na ficha de entrada no Instituto de Medicina Legal, os responsáveis do SEF escreveram que o ucraniano tinha sido encontrado na rua. Este crime, que aparentemente nada tem a ver com a pandemia, deveria, pela gravidade, pela extrema gravidade, ter feito correr rios de tinta, deveria ter provocado piruetas sincronizadas do Chega e da CMTV, talvez até um Prós e Contras, mas , afinal, viu-se esmagado pelas vagas implacáveis da maré da Covid-19.

Imagem de Tibor Janosi Mozes

Hungria

Mas nem só de racismo é feito o fascismo em ascensão. Por todo o lado, revela-se nas suas caras habituais. Discursos de união e orgulho pátrio, centralização de poder, medidas administrativas que ultrapassam as já escassas garantias da democracia parlamentar, policiamento de comportamentos, militarização da sociedade e um clima generalizado de chibaria. Poder-se-ia brincar com a construção da UE e chamar-lhe «fascismo a várias velocidades». Uma corrida onde os Estados que vão à frente se situam na antiga zona de influência soviética, o que talvez tenha algum significado.

Na Hungria, por exemplo, o primeiro-ministro Viktor Orbán, fiel ao seu longo historial de enfraquecimento da democracia, fez aprovar uma legislação de emergência sem precedentes que lhe dá poder ilimitado para governar por decreto, o que quer dizer que não precisa de consultar ninguém para fazer leis. É o primeiro país da UE a ser colocado sob o comando individual do primeiro-ministro. Os críticos chamam-lhe a «lei do empoderamento», uma vez que permite uma grande dose de flexibilidade a Orbán para suspender ou alterar qualquer lei existente e introduzir novas medidas. Teoricamente, estas medidas podem manter-se até que o governo declare o fim do «estado de emergência». Para além disso, a validade da lei do empoderamento não está ligada ao carácter excepcional da ordem legal e necessita de ser revogada de forma autónoma, após a declaração do fim do estado de emergência. Uma cláusula que escancara as portas a qualquer intenção que se esconda.

As eleições e os referendos serão adiados durante o tempo de emergência. Orbán pode proibir manifestações públicas e silenciar opositores e meios de informação. É ele quem decide quando acaba o actual estado de emergência. O código criminal também sofre alterações. Os tribunais passam a poder condenar quem considerem que espalha informação falsa ou que possa causar pânico ou que dificulte a eficácia das medidas de combate à pandemia. A liberdade de expressão estremece.

Ainda por causa dos seus novos poderes, 13 líderes do Partido Popular Europeu (PPE – agrupamento partidário democrata cristão/conservador no Parlamento Europeu) subscreveram uma carta a apelar que o Fidesz, partido de Viktor Orbán, fosse expulso do PPE. «Há algum tempo que temos acompanhado a degradação do Estado de Direito na Hungria. O Fidesz está neste momento suspenso do PPE devido ao seu falhanço em respeitar o princípio do Estado de Direito. No entanto, desenvolvimentos recentes confirmam a nossa convicção de que o Fidesz, com as suas actuais políticas, não pode ser membro pleno do PPE», lê-se na carta dirigida ao presidente do PPE, Donald Tusk. O PSD e o CDS-PP, membros desse grupo parlamentar, não assinaram a carta.

Entretanto, em plena crise sanitária, aproveitando a distracção generalizada, Orbán decidiu também propor uma lei que acabaria com o reconhecimento legal para pessoas transgénero, ao estipular que o género deve ser definido como «sexo biológico baseado nas características e cromossomas sexuais iniciais». Uma lei que iria obrigar o registo civil a preencher o campo «sexo à nascença», tornando impossível a alteração de género legalmente reconhecido de qualquer pessoa. Esta regulamentação, que é parte duma lei sobre vários assuntos não relacionados com a Covid-19, será votada pelo parlamento e não está, portanto, ao abrigo da lei do empoderamento. Mas serve para demonstrar que, mesmo nestes tempos, o governo húngaro não se esqueceu das suas outras batalhas. Os direitos trans e a chamada «ideologia de género» são assuntos muito queridos à direita mais à direita e o primeiroministro da Hungria já tinha introduzido medidas que, na prática, impedem as universidades de leccionarem estudos de género.

Foto de commons.wikipedia.org

Eslovénia

A 13 de Março, a Eslovénia ficou com um novo governo de direita, quando, num parlamento de 90 lugares, 52 deputados da coligação do SDS (Partido Democrático da Eslovénia), SMC (Partido do Centro Moderno), NSi (Democratas Cristãos Nova Eslovénia) e DeSUS (Partido Democrático dos Pensionistas da Eslovénia), assim como alguns membros do Grupo das Minorias (italiana e húngara) Nacionais o votaram para o executivo. No seguimento do pedido de demissão do anterior primeiro-ministro, Marjan Šarec, a Eslovénia é dirigida por Janez Janša (SDS) pela terceira vez desde a sua independência.

Se bem que a gestão da crise por parte de Šarec não fosse perfeita do ponto de vista do Estado de Direito − no início do contágio, o ministro da saúde fez passar um decreto que limitava os direitos dos profissionais de saúde, algo que só poderia ter feito em caso de epidemia, que ainda não tinha declarado −, não havia uma quebra sistemática da normalidade legal. Na nova situação política, não se pode dizer o mesmo.

A legislação de emergência mais invasiva está a ser aprovada por quem não tem autoridade estatutária para o fazer. A lei eslovena obriga a que as medidas excepcionais em tempos de epidemia (regulação temporária de certos aspectos do sistema de saúde e limitações à liberdade de movimento e reunião, ou quanto aos produtos que podem ser livremente vendidos) sejam tomadas apenas pelo ministro da saúde. No entanto, desde a mudança de poder, todos os decretos que pretendem conter a Covid-19 foram postos em prática não pelo ministro mas pelo próprio governo.

Mesmo que se considere que o ministro faz parte do governo e que tudo é, no limite, uma questão de burocracia, o facto é que o conteúdo dos decretos vai para além que é permitido. Por exemplo, a lei diz que o ajuntamento de pessoas em locais públicos pode ser proibido. Com base nisso, o governo decidiu despejar todos os estudantes, por todo o país, com um aviso de menos de 12 horas, sem oferecer alternativas para habitação.

No dia em que tomou posse, Janša criou o Quartel-General de Gestão da Crise, que tomou conta da comunicação, liderança e coordenação das respostas à epidemia. O primeiro-ministro ficou a liderá-lo, instalou uma equipa com os seus aliados mais próximos e reduziu a participação de peritos. A gestão da crise passou do ministro da saúde para o da defesa. É importante referir que este novo corpo de gestão não tem base legal para existir. Ou seja, a sua composição, as suas competências legais, as suas funções, a forma de se relacionar com outras entidades públicas, as formas de controlo público das suas acções não estão determinadas ou regulamentadas. A crise está a ser gerida por um corpo extra-legal, uma estrutura paralela de poder sem base legal e, por isso, sem competências definidas e sem obrigatoriedade de prestação de contas. É a partir deste quartel-general que o governo esloveno tem conduzido uma campanha de difamação e ódio sobre o jornalista Blaž Zgaga, (a quem chama «doente psiquiátrico que fugiu da quarentena»), o filósofo Slavoj Žižek e outros intelectuais que ousam pôr as novas medidas em causa.

O governo proibiu os jornalistas de entrar no parlamento e deixou de dar conferências de imprensa. Em alternativa, enviará declarações directamente para a televisão. Não há, portanto, direito a perguntas. A Associação de Jornalistas Eslovenos reagiu: «Achamos que, apesar da seriedade da situação actual, é uma medida desproporcionada e restritiva. Questionar os que estão no poder é fundamental para o controlo democrático e a própria democracia e é a primeira função dos jornalistas.» Uma reacção que pode, talvez, ser vista como leve, perante este espreitar do olho brilhante e esfomeado da besta fascista.

Numa espécie de profecia, publicada a 1 de Abril no site Eudaimonia & Co., escrita como se nos chegasse de 2060, Umair Haque mostrava o que se aprofundava ao mesmo ritmo da completa desestabilização da vida humana e planetária: «Na Grã-Bretanha, as pessoas continuaram a culpar os europeus pelos seus problemas. Na Europa, era os africanos, os judeus e os muçulmanos que eram demonizados. Na Índia, os não hindus. Na China, toda a gente que não fosse da maioria Han. E assim por diante. Essa descida em direcção a um fascismo autoritário produziu um mundo completamente incapaz de cooperar para resolver o mais profundo de todos os problemas: o colapso duma civilização, à medida que os seus macro-sistemas e instituições se desfaziam, fracturavam, implodiam.»

Na década de 2040, os campos de concentração e as investidas genocidas serão coisas do dia a dia por todo o planeta, de acordo com essa “Breve e assustadora história das próximas três décadas” de Umair Haque. No entanto, não é preciso esperar até essa altura para ver as peças a começarem a formar um puzzle cada vez mais discernível. Nem é preciso atravessar o Atlântico, em direcção aos EUA, onde vive Umair, para se ter uma visão cada vez clara do fascismo que tenta trepar estes momentos e os que virão.

 

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