Rede e Utopia: Livrarias independentes, uni-vos!

24 de Abril de 2020
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Este artigo faz parte da série #PandemiaSolidária.

Se a luta travada pelas pequenas livrarias que resistem no país para enfrentar uma crise sistémica no mercado livreiro é já antiga, a novidade da pandemia de Covid-19 trouxe a ocasião para o início de um processo de luta colectiva, com a recém-criada Rede de Livrarias Independentes (RELI). Falámos sobre esta rede com Herculano Lapa da Livraria Utopia, no Porto — a mais antiga livraria alternativa do país é uma das cerca de 80 que se uniram à RELI.

Numa altura em que, devido ao estado de emergência, a maioria das livrarias físicas ainda está fechada ao público (ou a funcionar com venda ao postigo), dezenas de pequenos livreiros decidiram dar corpo a uma vontade antiga: unirem-se em defesa dos seus «projectos individuais e do grande projecto colectivo que é o de dotar o país de uma rede de livrarias especializadas e de proximidade».

A RELI foi lançada no início de Abril, e reúne já mais de oitenta livrarias independentes de Norte a Sul do país — da Traga-Mundos, em Vila Real, à Até à Lua, em Lagos, compondo um retrato colectivo diverso e inédito do universo livreiro independente em Portugal. Em comum, têm o facto de não pertencerem ou estarem associadas às grandes redes livreiras e editoriais que dominam o mercado português, e de se tratarem de espaços físicos abertos ao público dedicados principal ou significativamente à venda de livros. A iniciativa está em linha com plataformas semelhantes de livrarias independentes que têm vindo a surgir noutros lugares do mundo, como a Llibreries Obertes, recentemente lançada nos países catalães.

A Carta Aberta está disponível no website da RELI (reli.pt), bem como uma lista georreferenciada das livrarias aderentes e respectivos contactos. Através do website é possível enviar pedidos de livros, e se houver livreiros da rede que os tenham disponíveis para envio, entram em contacto. Ilustração: fitacola collage

A Carta Aberta da RELI está disponível no website reli.pt, bem como uma lista georreferenciada das livrarias aderentes e respectivos contactos. Através do website é possível enviar pedidos de livros, e se houver livreiros da rede que os tenham disponíveis para envio, entram em contacto. Ilustração: fitacola collage

Em Portugal, nasce a RELI como associação livre de apoio mútuo (em processo de formalização), propondo-se coordenar esforços colectivos para agilizar respostas às necessidades das pequenas livrarias trazidas pela situação de emergência. Fá-lo ajudando a estabelecer pontes entre livreiros e leitores que procuram livros, mas intervindo também junto dos poderes públicos para dar visibilidade e exigir direitos, destacando o «papel fundamental [das pequenas livrarias] na coesão cultural de uma sociedade, e na criação de um pensamento crítico e livre, contribuindo para a educação, a informação e o entretenimento dos cidadãos».

Numa Carta Aberta, subscrita por 95 livrarias independentes à data de publicação deste artigo, a RELI reivindica uma série de medidas governamentais de carácter emergencial («de execução imediata») e estrutural («para serem aplicadas no termo dos efeitos da pandemia»).

As primeiras poderão estar a começar a surtir alguns efeitos, tímidos, com a medida anunciada pelo Ministério da Cultura no Dia Mundial do Livro (23 de Abril) relativa à aquisição de livros às pequenas editoras e livrarias portuguesas. Em resposta, os livreiros têm qualificado esta medida, cujos critérios e abrangência ainda não são claros, como «curta, residual, insignificante». As reivindicações da RELI, no entanto, vão muito além das compras institucionais, e exigem medidas numa série de questões que vão desde o cumprimento da Lei do Preço Fixo, aos arrendamentos e despejos, seguros e salários, medidas concorrenciais, e mais.

Falámos sobre a RELI com um dos livreiros aderentes, Herculano Lapa, da Livraria Utopia, no Porto, a mais antiga livraria alternativa do país, fundada em 1983. Para ele «está na hora de apoiar quem decididamente se bate por um pensamento livre e a uma escala comunitária». Se em 2013, o «Manifesto contra o desastroso encerramento das livrarias» (dos livreiros da Sá da Costa com o saudoso editor da &etc, Vitor Silva Tavares), lamentava a «solidariedade [que se esvai] das práticas sociais», talvez hoje, com as livrarias em rede, possa já não ser mais assim.

 Livraria Utopia, no Porto, tem as suas portas abertas há mais de 35 anos.

Livraria Utopia, no Porto, tem as suas portas abertas há mais de 35 anos.

Porque é importante esta Rede de Livrarias Independentes? Porque é que a Utopia aderiu?

A Rede de Livrarias Independentes é uma tentativa de responder colectivamente a este desastre que o vírus originou e ao estado de emergência que o governo decretou. A Utopia aderiu porque na Carta Aberta consta de forma clara uma posição contra as grandes cadeias de livrarias e os grandes grupos económicos que estão por detrás das grandes editoras portuguesas, que vendem e editam livros de interesse duvidoso, e também porque nela consta uma série de exigências a que vai ser necessário responder para permitir a sobrevivência das livrarias que de alguma maneira estão pelas diversas cidades deste país.

Como tem corrido o processo?

A participação no processo de construção da Associação RELI tem decorrido com muitas propostas, uma grande diversidade de opiniões e um intenso debate, mas o importante agora é o que resulta e isso foi a Carta Aberta: uma resposta adequada ao poder institucional e às autarquias deste país e, como é evidente, a toda população, que na minha perspectiva devem ser os mais interessados em poder contar com as livrarias de proximidade e aquelas que apresentam uma maior diversidade de leituras, mais do que os grandes grupos livreiros. Um bom resultado disto será podermos pelo menos contar com apoios que permitam chegar ao fim deste ano com as portas abertas.

Um conhecido jornal da praça noticiou a criação da rede como a queda das «divisões tribais entre as livrarias independentes». Como encaram esta articulação alargada entre livreiros tão diversos?

Não haja dúvidas, na Associação estão livreiros de todas as correntes políticas e como nestas situações há sempre pessoas que tentam ter algum protagonismo (e outras de forma equívoca, talvez não seja o que esperavam), mas o colectivo foi superando grande parte das dificuldades no decorrer dos debates e encontrando de forma muito razoável o melhor para todos.

Das várias reivindicações apresentadas na Carta Aberta, quais são aquelas que mais vos preocupam ou afectam mais directamente? Porquê?

Quanto às reivindicações, aquela que me parece a mais importante será a dos apoios a fundo perdido. Sem apoio, a grande maioria dos livreiros não vai chegar ao fim do ano, inclusive a Utopia.

Como é que a Utopia está a subsistir nestes tempos incertos? De que forma é que as acções em curso (da RELI) vos têm ajudado?

Agora que faz um mês deste desastre, os apoios dos amigos e particulares deram para respirar mais um pouco (o mais provável é que isso não vai ser possível até ao fim do ano)… Ainda o brutal aumento do desemprego, que está já acontecer, o grande número de pessoas com magros salários e que agora foram mandadas para casa com menos 20 a 30% do seu salário… Como vai ser possível resistir?

Como vêem o futuro das livrarias independentes face ao que está a acontecer e ao que se avizinha?

Só com um apoio efectivo e a fundo perdido as livrarias independentes vão poder chegar a todas as cidades deste país e ao fim deste ano!

Por último, uma pergunta comum à série Pandemia Solidária do Jornal MAPA tem sido em torno do significado de solidariedade… Na Carta Aberta, a RELI refere precisamente «o prenúncio de um desastre social que só poderá ser evitado ou amortecido se todos, mas mesmo todos, conseguirmos encontrar a solidariedade bastante para ultrapassar tanta falência anunciada». O que significa para vocês solidariedade?

A solidariedade passa por cada amigo e os particulares, dentro das suas possibilidades, apoiarem as livrarias independentes em Portugal, porque a lógica das pequenas livrarias está para além da mera lógica comercial. Contamos também com o apoio das pequenas editoras, que é donde vem a diversidade de opinião, portanto está na hora de apoiar quem decididamente se bate por um pensamento livre e a uma escala comunitária.

Como se pode apoiar?
Através da divulgação da RELI para que chegue a mais gente a informação de que existe esta rede tão plural de livrarias independentes, com diferentes valências, adaptadas aos mais diversos tipos de leitores, disponíveis para lhes fazer chegar todos os livros de que necessitem. Neste momento, praticamente a totalidade das livrarias está a trabalhar através de vendas online, outras à porta fechada ou encostada, continuando a tarefa de fazer chegar livros a quem os peça.
Website: www.reli.pt | Facebook: fb.com/rededelivrariasindependentes

Uma das campanhas promovidas pela RELI é a «Livraria às Cegas», que promete um pacote surpresa, ao critério do livreiro escolhido. Alguns livreiros da rede também oferecem os portes de envio nas encomendas, através da campanha «Fique em casa mas não fique sem livros».

Uma das campanhas promovidas pela RELI é a «Livraria às Cegas», que promete um pacote surpresa, ao critério do livreiro escolhido. Alguns livreiros da rede também oferecem os portes de envio nas encomendas, através da campanha «Fique em casa mas não fique sem livros».


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