Fronteiras: morte por controlo remoto

29 de Novembro de 2017
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Nos primeiros dias de Abril, a União Europeia (UE) impunha aos seus Estados-membro que iniciassem controlos de identidade a toda a gente que quisesse entrar ou sair do espaço comunitário. Estes controlos, que já se aplicavam a cidadãos de fora da UE, estendiam-se assim aos de dentro e, na prática, significavam que todas as pessoas que atravessassem uma fronteira aérea, terrestre ou marítima veriam as suas identidades confrontadas com o Serviço de Informações de Schengen e a base de dados da Interpol, permitindo às polícias fronteiriças o acesso a uma quantidade incomensurável de dados pessoais, a maioria dos quais pouco ou nada relevantes para o seu trabalho concreto.

Oficialmente, tratava-se de tentar identificar cidadãos comunitários que pudessem ter sido apanhados nas redes do extremismo islamita. Um argumento pouco sólido, se se considerar que estes terroristas que se procuram são, na sua grande maioria, pessoas cujos registos estão limpos. Por outro lado, e nas palavras do próprio coordenador da UE para a luta anti-terrorista, Gilles de Kerchove, «as informações sobre os terroristas que são cidadãos comunitários e tentam regressar é frequentemente incompleta». Talvez por isso se fale numa nova categoria de pessoas que deverá fazer soar os alarmes fronteiriços: unknown wanted persons, cuja tradução poderia, talvez, ser «suspeitos desconhecidos». Se não fica claro que os objectivos desta operação são outros, fica, pelo menos, claro que esta não seria a estratégia mais evidente para atingir esses objectivos. Os resultados, ou melhor a sua ausência, comprovam-no.

Dois a três dias depois, a Eslovénia suspendia a nova regra europeia por ser causa de engarrafamentos intermináveis na fronteira com a Croácia. Houve também notícias de grandes filas em Espanha e na Grécia. Na tentativa de encontrar mecanismos que impeçam terroristas de entrar e atacar, por exemplo, aglomerados de pessoas, tudo o que as autoridades da UE conseguiram foi criar aglomerados ainda maiores e menos protegidos.

Uma ironia que se vem juntar a essa outra de as vítimas dos ataques em Bruxelas de Março de 2016 terem as suas compensações presas por questões burocráticas. Ao todo 324 pessoas tiveram de receber tratamento hospitalar. Dessas, 224 ficaram por lá mais de 24 horas. Um ano depois, a atleta Karen Northshield ainda estava em recuperação no hospital e afirmou ao jornal belga De Standaard que o governo a abandonou. Como ela, mais ninguém terá ainda recebido qualquer tipo de indemnização ou apoio, graças às teias legais que os advogados das seguradoras tão bem manejam. Karen Northshield é assim apenas um dos muitos casos que demonstram como a burocracia serve os poderosos e como estes, apesar de se dizerem todos Charlie, não estão dispostos a gastar dinheiro com ele e as suas necessidades.

Já em Maio, gravações telefónicas mostravam a leveza com que as autoridades italianas negaram auxílio a mais de 400 sírios à deriva no Mediterrâneo durante cinco horas. Acabariam por morrer 268 pessoas, incluindo 60 crianças. Pela mesma altura, soube-se também que a Grécia alterava as regras dum fundo de que a UE dispunha para que as pessoas cujos pedidos de asilos eram rejeitados pudessem, sem custos próprios, ser devolvidas para a Turquia. Uma alteração de regras que retira esse direito a quem decidir apresentar recurso perante uma decisão negativa.

Estas trapalhadas e estes ataques aos direitos à livre circulação, à compensação e à própria vida, tudo coisas que aconteceram no espaço de pouco mais do que um mês, seriam suficientes para demonstrar a desumanidade da política de fronteiras da UE.

No entanto, e infelizmente, estes episódios são apenas a ponta dum iceberg cuja secção mais escabrosa está bastante menos visível. Uma outra parte, já desenvolvida num número anterior, é a que diz respeito ao facto de a própria construção da política de fronteiras da UE ser ditada pelas mesmas empresas que acabarão por lucrar com ela. Outra parte, também já analisada no MAPA, diz respeito ao desvio de fundos destinados a ajuda ao desenvolvimento para o controlo fronteiriço à distância. Mas há mais, como esta de financiar ditaduras e os seus massacres de que se falará a seguir a partir do exemplo do Sudão. Um dos cinco maiores «produtores» de refugiados do mundo tem nas mãos uma parte fundamental da gestão do fluxo de migrantes da UE. Risível, se não fosse dramático.

A parceria entre a UE e o Sudão iniciou-se através do Processo de Cartum (Iniciativa para a Rota Migratória UE-Corno de África). «Formalmente lançado na conferência ministerial realizada em Novembro de 2014, em Roma, é um diálogo regional sobre migração mantido entre os Estados-Membros da UE e nove países africanos do Corno de África e países de trânsito, bem como a Comissão Europeia, a Comissão da União Africana e o Serviço Europeu para a Acção Externa. O objectivo é estabelecer um diálogo permanente sobre migração e mobilidade no intuito de reforçar a cooperação em curso, mediante a identificação e a execução de projectos concretos.»

Uma parceria que é, sobretudo, financeira e que se aprofundou na cimeira da La Valleta, em Novembro de 2015, com o estabelecimento do Fundo Financeiro de Emergência para África, desenhado para dar resposta à crise migratória das regiões do Sahel 1 e dos Lagos do Chade, assim como do Norte e do Corno de África. Este Fundo foi dotado de cerca de 2 mil milhões de euros. Deste dinheiro, foram tirados 173 milhões para questões relacionadas com gestão de migrações dentro do Sudão. A Europa quer enviar câmaras, scanners e servidores para o regime sudanês registar refugiados, assim como treinar a polícia fronteiriça e dar assistência na construção de dois campos com salas de detenção para migrantes. Em meados de Dezembro de 2016, a UE aprovou a última parte dos fundos para o Sudão, num total de mais 38 milhões de euros. Em Janeiro de 2017, a pareceria foi reafirmada num encontro entre um enviado da UE e um sub-secretário do ministro sudanês dos negócios estrangeiros.

O Sudão de al-Bashir

Omar Hassan Ahmad al-Bashir é o presidente do Sudão desde 30 de Junho de 1989 quando tomou o poder através de um golpe de Estado. Em 4 de Março de 2009, o Tribunal Penal Internacional emitiu um mandado de prisão para a captura de Omar al-Bashir por crimes contra a humanidade, genocídio e crimes de guerra. Tem assim o desaconselhável mérito de ter sido o primeiro Chefe de Estado em exercício a ser alvo de um mandado internacional de captura.

Na contabilidade do regime de al-Bashir constam pelo menos 300 mil mortos e mais de 1 milhão de deslocados devido aos ataques letais da milícia pró-governamental Janjaweed que, em 2013, passou a chamar-se Força de Apoio Rápido (FAR).

Em Janeiro de 2016, o Observatório dos Direitos Humanos das Montanhas Nuba condenou as práticas violentas da FAR contra civis em Abbasiya Tagali, na província sudanesa do Cordofão do Sul. E, em Junho de 2016, a FAR levou a cabo uma campanha de detenções em Ed Damazin, capital do estado sudanês do Nilo Azul, durante duas semanas, depois de ter havido protestos contra a sua presença na área e acusações de atrocidades contra civis.

Por seu lado, vários relatórios da Human Rights Watch afirmam que o regime sudanês trabalha em conjunto com redes criminosas de tráfico humano, chegando a acusar a polícia e o exército de terem vendido refugiados.

O apoio da UE

Apesar do documento de apresentação do Fundo Financeiro de Emergência para África afirmar que o seu objectivo fundamental é «lutar contra as causas profundas da desestabilização, das deslocações forçadas e da migração irregular, promovendo a igualdade das oportunidades económicas, a segurança e o desenvolvimento», a verdade é que os fundos de emergência que nos são vendidos como apoio ao desenvolvimento vão sobretudo para controlo fronteiriço puro e duro, conforme demonstram as minutas de reuniões semi-secretas e outros documentos classificados a que tiveram acesso o jornal alemão Der Spiegel e o programa da também alemã televisão pública ARD, “Report Mainz”.

Quando se lida com ditaduras tão sangrentas, não é de todo surpreendente que o material financiado pelo Fundo de Emergência seja desviado para a opressão e repressão da população civil. Mukesh Kapila, antigo representante do Sudão na ONU, disse que o envio de fundos e apoios da UE está a dar ao regime mais recursos para suprimir o seu próprio povo. Para mais, e ainda de acordo com o Der Spiegel e a ARD, um general próximo do Ministro do Interior do Sudão terá já afirmado que a tecnologia que receberão não será utilizada apenas para registar refugiados, mas também sudaneses.

O aprofundamento das relações entre a UE e o Sudão tem implícito o apoio à milícia Janjaweed, aliás, Força de Apoio Rápido. Uma Força que, tal como a milícia sua antecessora, é conhecida pela facilidade com que viola os direitos humanos e ataca manifestações.

É essa mesma FAR que foi contratada para controlar migrações através de fundos da UE, como se pode confirmar quando, em Janeiro deste ano, e de acordo com as palavras do governo sudanês, a FAR desmantelou uma operação de tráfico de migrantes para a Líbia. Uma colaboração corroborada em Agosto de 2016 na voz do líder da FAR, Mohamed Hamdan “Hemeti”.

A UE, por seu lado, diz que não trabalha com as autoridades sudanesas, que não está a apoiar a FAR e que a assistência ao Sudão é fornecida numa base bilateral e regional através de agências internacionais e organizações locais. No entanto, ainda não informou que agências internacionais e organizações locais são essas. Conhecendo o Sudão e a forma como o regime trabalha, ninguém duvidará que os fundos serão canalizados por organizações que estejam sob o seu controlo, como acontece, aliás, há décadas. O dinheiro nunca precisou de viajar por canais oficiais para acabar nos bolsos do governo. Muito menos num país que a Tranparency International considera um dos mais corruptos do mundo. Se se importasse realmente com a utilização dos fundos que canaliza, a UE deveria monitorizar a sua aplicação ao invés de fingir ignorância.

Ismail Omar Tairab, membro do Comité Nacional do Sudão para o Combate ao Tráfico de Seres Humanos, numa entrevista ao site Al-Tagyeer, para além de acusar a UE de focar toda a sua atenção na segurança, omitindo a necessidade de ajudar os migrantes dentro do país, afirma também que «a UE quer tornar o Sudão numa enorme prisão para migrantes e é por isso que todas as parcerias que construíram foram com a polícia. (…) Os fundos não se destinam a proteger migrantes, apenas a policiá-los.»

O Sudão, outrora internacionalmente considerado um Estado fora-da-lei, está agora em posição cimeira na distribuição de interesses e apoios da UE, graças à sua posição estratégica enquanto local de passagem de migrantes. Mas não está sozinho. Há acordos semelhantes, já assinados ou em construção, com outros Estados igualmente pouco aconselháveis, como a Eritreia ou a Líbia. Une-os a forma como as migrações os legitimam enquanto parceiros credíveis e recomendáveis. A priorização duma agenda de curto prazo de paragem dos fluxos migratórios e a submissão às necessidades da indústria do armamento, da vigilância e do controlo é o quadro da política fronteiriça da UE. Um quadro que mantém as praias europeias relativamente limpas de cadáveres. através do assassinato de migrantes por controlo remoto.

Ilustrações de Arthur C. Wandeur

Notes:

  1. O Sahel é uma faixa de 500 a 700 km de largura, em média, e 5 400 km de extensão, entre o deserto do Saara, ao norte, e a savana do Sudão, ao sul; e entre o oceano Atlântico, a oeste, e o mar Vermelho, a leste.

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