Intersecções entre a ecologia, o sagrado e o político
Na palestra intitulada “A permacultura e o sagrado: uma conversa com Starhawk“, somos convidadas a praticar a observação do funcionamento da Natureza e transpor esse tipo de observação para o campo de acção de cada pessoa, analisando os diferentes ecossistemas da nossa vida e reflectindo sobre as suas margens. Aqui propõe-se que a palavra ecossistema represente áreas de interesse de cada pessoa, sejam aspectos sociais, aspectos íntimos, o trabalho, o hobby, o activismo, as tarefas domésticas, o pensamento… Somos convidadas a não ignorar as intersecções entre as várias áreas. Starhawk é uma mulher que encara o seu próprio percurso de vida como um cruzamento entre a ecologia, a espiritualidade e o activismo. Para aqueles que não a conhecem, desde os anos 60 que ela pensa, escreve e age sobre anarquismo, feminismo, paganismo, religião da Terra e Wicca, ecologia e permacultura (1).
Partindo deste posicionamento, a escritora/professora/permacultora/bruxa propõe-nos uma observação da Natureza em relação, deixando de olhar para as coisas isoladamente, até nos aspectos que antes considerávamos separados. Fazemos isto quando observamos um curso de água, mas também o comportamento das plantas que crescem ao seu redor, na certeza que um influencia o outro. Este “olhar antes de intervir” é uma postura da Permacultura, um modo de agricultura e um modo de estar que Starhawk utiliza e explica brevemente.
O olhar de uma Permacultora
A permacultura é um sistema de design ecológico, cuja proposta é partir da Natureza como fonte de inspiração, numa tentativa de recriar a sua fertilidade e abundância, presentes em espaços que dispensam a intervenção humana para darem os seus frutos, suportarem todo o tipo de vida e manterem-se em equilíbrio. Ninguém precisa de ir podar as árvores numa floresta virgem, nem semear ou exterminar pragas e, no entanto, a floresta auto-regula-se. E floresce.
Tendo conseguido sistematizar um conjunto de princípios e áreas de acção (ver imagem), a permacultura propõe, entre outras coisas, um olhar sobre o conceito de Margem. Zona limítrofe. Fronteira. É o 11º princípio: “Usa os limites, valoriza o marginal; coisas importantes acontecem nas intersecções“. Aqui, “intersecções” refere-se às margens de dois ecossistemas próximos, a zona onde se tocam e se intersectam, zonas de tensão, de grande dinamismo e criatividade.
Em biologia chama-se a isto um ecótono. Um ecótono é onde duas comunidades se encontram e integram. Pode ser um espaço estreito ou alargado; pode ser algo pequeno, local ou constituir em si uma região. Um ecótono pode surgir na forma de uma passagem gradual entre as duas comunidades, ocupando uma área grande, como a zona de intersecção entre o oceano e a terra, à qual chamamos costa. Ou pode manifestar-se através de uma linha de fronteira bem definida e abrupta, como no caso da transição entre áreas desflorestadas com as naturais, como um campo cultivado adjacente a uma mata.
A palavra ecótono surge da combinação entre eco(logia) e tono, do Grego tonos ou tensão – ou seja, um sítio onde as ecologias estão em tensão. Normalmente dotados de uma grande biodiversidade, os ecótonos são a transição entre duas ou mais comunidades que diferem entre si. Dessa forma, reúnem espécies pertencentes a comunidades distintas e, consequentemente, a fauna e flora presentes num ecótono apresentam espécies jamais vistas antes. Precisamente por ser uma região feita a partir de características dos diferentes ecossistemas que a compõem, são centros de grande dinamismo, resiliência e criatividade, muitas vezes dando origem a um terceiro ecossistema. As costas marítimas são um fervilhar de vida. A zona intermédia entre a floresta profunda e a pradaria é o refúgio perfeito para os veados.
A permacultura propõe uma série de princípios para interagir com o meio-ambiente físico, que podemos aplicar nas áreas sociais e de desenvolvimento pessoal que nos estejam a inquietar. Usar esse mesmo tipo de observação no nosso dia-a-dia pode ser algo como observar o curso de um projecto (como se de água se tratasse, pensando nas categorias que associamos a esse trajecto) e ver de que maneira se comportam as zonas e seres vivos que existem à sua volta. Trata-se de imaginar como interiorizar estes princípios e aplicá-los noutras margens, descobrindo nos nossos contextos quando devemos corrigir, replicar, cooperar.
Corrigir desequilíbrios pode acontecer com a técnica de implementar mais daquilo que desejamos, tal como fazemos ao introduzir joaninhas para acabar com uma praga de cochonilhas, em vez de deitar pesticidas tóxicos em cima de plantas que vamos comer. Permitir-nos ver esta solução prática como uma metáfora ganha um novo sentido quando aplicada noutros problemas do dia-a-dia e leva-nos a perguntas híbridas: Qual é o predador natural que vai acabar com a praga dos Bancos?
Replicar um padrão de ramificação de veios, como o de uma planta – que serve para dispersar, concentrar, fazer chegar, circular – num projecto educativo, por exemplo, pode ter a consequência prática de contrariar a separação entre a matemática e o português, entre a ciência e a arte, que passariam a ser inter-dependentes e ligados pelo mesmo caule.
Cooperar é a base dos ecossistemas, o apoio-mútuo é o padrão da Natureza. Sim, a competição existe. O conflito existe. Não é preciso ignorá-lo mas também não é preciso assumi-lo como padrão. A grande maioria dos sistemas de vida tem dinâmicas de cooperação, algumas delas bastante inspiradoras. Redes vivas de 8km de fungos ligam subterraneamente, em certas florestas, as raízes das árvores umas às outras, transmitindo nutrientes e sabe-se lá que mais informação. Poderá este exemplo suscitar em nós novas imagens de comunidades alargadas?
Pensando nas tais áreas marginalizadas ou em tensão, podemos procurar padrões que se repetem nos movimentos/grupos sociais que nos são próximos, mesmo correndo o risco de generalizar. Exemplos? O jornal MAPA é maioritariamente escrito por homens e tem tido uma abordagem inconsistente às questões de género. Os movimentos de Transição parecem não estar a sair de nichos e estratos sociais.
A Identificação das áreas-margem da nossa vida pode trazer a descoberta que as suas intersecções com áreas “centrais” não estão a ser aproveitadas. O sagrado tende a ser marginalizado, escondido. Talvez porque as grandes religiões causam morte, destruição e ódio e muitas de nós, perante isso, conotamos a espiritualidade como uma questão somente do plano individual, não deixando muita credibilidade à sua exploração colectiva.
Mais além das marginalizações a que nos dedicamos – imigração, prisões e outras segregações sociais – como poderemos estar a não aproveitar outros sub-produtos deste sistema em que vivemos, como por exemplo, os terrenos baldios entre dois bairros? Estaremos a descurar o potencial da sexualidade como motor de relações? É certo que cada pessoa terá um olhar diferente sobre isto, mas também é certo que podem surgir novas perspectivas quando se cruzam estas questões com as das segregações sociais de que normalmente falamos.
Os Mantras
“Usa os limites, valoriza o marginal” é um dos mantras inspiradores. Mas há outros, como por exemplo, “o problema é a solução, tudo é um recurso“. Na palestra que serviu de ponto de partida para este artigo, Starhawk dá o exemplo de como as barricadas que afastavam os manifestantes da área do congresso da Organização Mundial do Comércio, à qual queriam conseguir chegar, foram a solução para o problema, quando retiradas do seu sítio numa acção colectiva e depois usadas como escudos, que permitiram aos manifestantes defenderem-se da polícia. Soluções simples e eficazes. É outro dos mantras.
Aplicar e replicar aquilo que é possível ser observado como fenómeno de sucesso. A diversidade traz resiliência. Mais um mantra, ou princípio extraído directamente da observação da Natureza, facilmente aplicável e referido quando falamos de hortas, mas também usado em relação à natureza humana. A diversidade traz mais defesas, mais inteligência e criatividade. Ou seja, se olharmos em relação, quem defende ou pratica a exclusão social ou étnica, afirma assim a sua fraqueza e monotonia.
Esta proposta de olhar em relação pode conter o inexplicável e formular teorias para o desconhecido. Dar lugar ao acaso, ao mágico, ao intuitivo, ao imaginário e ao caótico. Porque o mundo é uma teia viva de relações, que não podemos compreender no todo mas na qual podemos participar. Partir para a zona limite das nossas próprias tensões à procura de alargar as soluções criativas. Pôr mais amor no anarquismo, mais luta na Transição. Contagiar a espiritualidade com política. Já existe o sócio-económico ou o sócio-ambiental. Que outras intersecções nos seriam úteis?
Considerando-nos a nós próprias como um pequeno-grande ecótono, podemos tirar prazer do facto de que não nos conseguimos dedicar a uma só actividade. Que a intersecção entre as nossas várias áreas de interesse possa dar origem a um novo ecossistema, único e mais rico, talvez o grande projecto criativo das nossas vidas – encontrar o nosso próprio modo de abolir a dualidade entre sermos nós próprias e saber-nos em relação com tudo.
Estas reflexões terão mais sentido para quem considere o planeta Terra como um sistema vivo, do qual fazemos parte, no qual necessariamente intervimos e não simplesmente como o sítio onde vivemos. É provável que alguém considere estas linhas e estas intersecções um desperdício. Mas como propõe a permacultura, o lixo é um recurso. E cada um@ que crie novos mantras.
Nota
(1) Não havendo neste artigo espaço para explicar cada uma destas áreas, recomenda-se o visionamento da Palestra, disponível em https://goo.gl/TJy0ZL