Em Transição
Fotos de Vladimir Vilzborov (Tavira em Transição)
A Transição é um movimento e uma linguagem que surgiu nos últimos dez anos enquanto “movimento consciente e motivado de passagem entre a situação actual e o futuro ideal que ambicionamos”. Fora esta expressão de sonho, a definição mais concreta que regra geral encontramos é o objectivo de criar comunidades locais mais resilientes e com uma cultura humana saudável. Não saímos de generalizações. Mais ainda, quando afinal Transição pode ser isto e aquilo conforme as necessidades e soluções de cada local.
Acabamos por perceber que, nascido de preocupações ambientais, é no sentido da comunidade local – da vizinhança da aldeia ao bairro – que temos que entender aquilo que é uma Iniciativa em Transição. E quando alguém se junta para “agir como catalisador” da Transição, não o faz sem antes se vir a questionar a si próprio num processo de Transição Interior. Mas é o pressuposto horizontal e da confiança mútua destes grupos que marca diferença e assinala um novo tipo de dinamismo associativo.
Cruzámo-nos com a Transição Portugal (1), uma plataforma horizontal que porém credencia as iniciativas a integrar a rede mãe inglesa da Transition Network (2), e através da mesma lançámos por escrito algumas perguntas para melhor entender este movimento que conta com dezenas de iniciativas inscritas na plataforma, entre outras tantas de Norte a Sul de Portugal (3). Partilham as suas impressões André Vizinho e Sara Serrão, formadores dos Cursos de Transição. Vivem no concelho de Odemira e Sara Serrão, junto com Carmen e Sérgio Maraschin fazem parte da Transição São Luís (4). Mais a sul, Ângela Rosa pertence ao grupo Tavira Em Transição (5), e da cintura de Lisboa, Fernando Oliveira – também ele da equipa da Transição Portugal – fala-nos da Iniciativa Linda-a-Velha em Transição (6).
Este artigo convida assim a conhecermos o que é isso de Transição. A impressão à partida poderia ser de que se trata de algo demasiado vago e inócuo ou de algo em aberto e potenciador – conforme o olhar crítico que poderíamos optar. Veremos no fundo que não há um modelo da Transição, mas sim processos em construção movendo-se por diferentes campos. Áreas interligadas, como os textos que podemos encontrar neste número do MAPA, com destaque ao de M. Lima em torno das intersecções entre a ecologia, o sagrado e o político, ou as leituras dos documentários Catálise, Que Estranha Forma de Vida e A Selva Estreita e ainda a entrevista aos gregos da Nea Guinea.
Comunidades Resilientes
A Transição tem uma palavra-chave: resiliência. O termo mais pesquisado no dicionário online Priberam nos acessos a partir de Portugal em 2015. Sara Serrão explica-nos que “a resiliência se traduz pela capacidade de retomar o equilíbrio depois de um embate. Considerando as alterações climáticas como esse “embate” a que estamos todos sujeitos no presente histórico da sociedade global, e além e aquém das alterações climáticas todo o impacto destrutivo da humanidade no planeta Terra e nos ecossistemas locais que nos nutrem e mantêm. A Transição surge como o processo de procura e de construção do equilíbrio necessário. A primeira parte do processo é tomar consciência do embate. É olhar e ver a degradação da natureza e o que isso representa, emocionalmente, para cada um/a de nós individualmente. A percepção inclui, assim, entender fenómenos externos – de que forma a conjuntura social, política e económica impacta nos sistemas ecológicos dos quais dependemos – e identificar as crenças e dependências internas que nos fazem compactuar e perpetuar esta conjuntura. No movimento para o equilíbrio, a Transição traz uma série de ferramentas e de histórias de sucessos e de insucessos, que inspiram, apelam à acção e apoiam todas aquelas e aqueles que procuram uma nova história. Assim, o objectivo da Transição é menos propor um modelo e mais criar uma rede de aprendizagem e apoio mútuo, na passagem para a sociedade onde desejamos viver”.
Na origem deste movimento há essa percepção ambientalista, já com pelo menos meio século de discussão. É o colapso da ideia de bem-estar generalizado das sociedades industrializadas, dependentes dos recursos fósseis e sobretudo de um sentido de desenvolvimento à medida do aumento exponencial do consumo energético. Perante esse cenário, o movimento de Transição surge a partir das referências fundadoras de Rob Hopkins (7), do plano de redução do consumo energético para a cidade de Kinsale, na Irlanda, e na primeira iniciativa em transição em Totnes, no Reino Unido, em 2005. O que o move é, antes de mais, essa preocupação ecológica inerente à escassez de recursos, mas igualmente uma crítica a uma economia cada vez mais global e menos local. O sonho é transitar para modelos de vivência comunitária assentes na redução do consumo energético e na dinamização das economias locais.
A Transição em Portugal
O movimento de Transição é recente na sua origem anglo-saxónica como em Portugal. Em 2010, germinaram os primeiros encontros de um conjunto de projectos que traduziam já em parte a inspiração da Transition Network, cujas primeiras adesões portuguesas foram nesse ano as Iniciativas de Paredes e de Pombal. Por essa altura já o projecto do grupo ecologista GAIA, a residir na Aldeia das Amoreias (Odemira), tornava-se o caso mais exemplar em meio rural (8) a fazer eco da Transição e em meio urbano haveria que mencionar, desde 2013, o Centro de Convergência de Telheiras, Lisboa (9).
A rede social online ‘Transição e Permacultura em Portugal’ (10) funcionou desde 2009 como primeiro agregador de interessados no movimento, mas veio a ser excluída das iniciativas da Transição Portugal e da Transition Network, sendo-lhe apontada a tentativa de obter uma estrutura hierárquica para controlar o movimento. Criada a Plataforma das Iniciativas de Transição, esta tem desde meados de 2013 cerca de 20 iniciativas registadas. Nesse ano, dos dois primeiros grupos em 2006 (Kingsale e Totnes) estavam já registadas na Transition Network 1116 Iniciativas em mais de 43 países. Esta ONG internacional, secretariada em Inglaterra, anuncia-se como movimento auto-organizado de base em que as iniciativas de transição surgem espontaneamente, de forma gratuita e descentralizada e juntam-se à Rede num processo de credenciação, através de plataformas nacionais associadas. Caso da Transição Portugal.
Carmen e Sérgio Maraschin, do grupo de cerca de 20 pessoas do Transição São Luís, que surgiu em 2013, recordam a época em que participaram no movimento de transição em Totnes. Como a “Transition Network foi desenhada essencialmente como uma rede de troca de informações após a explosão viral de Iniciativas em todo o mundo. Um passo lógico, útil e necessário”. Ao qual se seguiu “na percepção da necessidade de assegurar uma certa coerência através de um processo de credenciação, questionamentos acalorados sobre a contradição interna causada por essa imposição, o que seria para alguns sinal evidente de cristalização e assimilação do movimento pelo “sistema”. O que temos hoje é uma credenciação voluntária onde o requisito mais importante é a participação no curso básico de transição por uma ou mais pessoas do grupo. O consenso é que isso possa assegurar um mínimo de coerência em termos de processo, mas sem interferir em forma, decisões, objectivos e resultados das iniciativas”.
Carmen e Sérgio acreditam por isso “que a imposição de uma estrutura vertical à escala nacional, alinhando e padronizando múltiplas iniciativas, conceito esse já debatido e rechaçado em Portugal, sinalizaria o começo do fim do movimento de transição”. Falando pela Transição Portugal, André Vizinho, igualmente a viver no Alentejo litoral de Odemira, ilustra como a rede se “estrutura neste momento como um apiário em que as diferentes plantas, hortas, pomares ou florestas são as diferentes iniciativas de transição. Neste contexto, a Transição Portugal tem abelhas (pessoas) e colmeias (grupos) que ajudam a promover a polinização e comunicação entre as plantas, hortas, pomares e florestas, ou seja entre as iniciativas de transição. Mais especificamente, a Transição Portugal é uma plataforma em que as várias iniciativas de transição em Portugal se fazem representar através de pessoas. Estas pessoas juntam-se em grupos de trabalho que ajudam a fazer o promover a Transição em Portugal e a criar os espaços de encontro e comunicação que fazem desta, uma comunidade de aprendizagem. Estas acções são a criação de um site, de mailing lists internas, a organização de encontros, a organização de formações, a promoção da comunicação, seja os média ou a Transition Network, ou ajudar a dar a conhecer o trabalho das várias iniciativas umas às outras”.
Fora isso considera que “o movimento de transição é algo que pode ser considerado mais lato do que a Plataforma das Iniciativas. Uma aproximação deste movimento de transição mais lato pode ser encontrada no site da Rede Convergir (11) onde se destacam, além as iniciativas de transição, um grande número de iniciativas que se associam à Permacultura e depois um número grande de iniciativas que abraçam domínios específicos de actuação mas sempre procurando implementar soluções sustentáveis, alternativas e inspiradoras nos domínios da educação, bem-estar, saúde, construção, gestão da terra, comunidade, etc.”.
Como tal questionado sobre que lugar existe na formulação da Transição para outras referências e inspirações, nomeadamente processos locais ou momentos da história portuguesa, para lá do trabalho da Transition Network, André afirma que “a actividade das iniciativas de transição necessitam de ir buscar referências a muitas fontes e muitos domínios. Sendo claro que a Permacultura é um domínio claramente inspirador e mobilizador para as várias iniciativas, sabemos que tal como os materiais produzidos pela Transition Network, estes são apenas conceitos agregadores onde juntamos imensas actividades e experiências que nos inspiram de uma ou outra forma”. É-lhe difícil “afirmar quais os momentos históricos em Portugal que constituem inspiração para todos nós. Penso que o 25 de Abril pode indubitavelmente ser considerado um desses momentos mas acima de tudo tenho dificuldade em falar em nome de todos para dizer quais são as referências colectivas de inspiração. Não sei mesmo se ao nível local de cada iniciativa tal seja possível. Sendo o objectivo a inclusão de toda a comunidade numa visão colectiva e positiva de futuro, então temos de assumir que diferentes pessoas têm diferentes referências”.
O Tavira em Transição formou-se no final de 2011 e apenas no ano passado se integrou na rede Transição Portugal. Começou com cerca de 20 elementos e hoje conta com aproximadamente 60 pessoas, num crescimento exponencial ao envolvimento do grupo nas lutas contra a exploração do gás e petróleo no Algarve. Ângela Rosa conta-nos como se encontram “num ponto de reorganização, de revalidação de princípios para dar início a uma nova etapa ainda mais consolidada e fortalecida dentro dos elos de confiança dos membros, de forma a que possamos abrir e integrar muitas e mais pessoas dentro da substância já criada”. Essa substância não tem um padrão estanque entre os diversos grupos da Transição, inscritos ou não na Transição Portugal. “Cada sítio, cada grupo de pessoas, cada movimento e circunstâncias cria e ganha características únicas. E isso é do mais válido e rico, sejam elas quais forem, desde que sejam sustentáveis e positivas, funciona. A questão é essa mesma, de não padronizar as coisas, e deixar que cada iniciativa encontre as suas fórmulas e construa os seus padrões dentro de uma mesma perspectiva que é a da transição”, afirma Ângela Rosa.
Um movimento cidadanista sem apelos revolucionários
Se os objectivos da Transição podem ser assim partilhados no vasto leque de movimentos de cariz ambientalista e de desenvolvimento local, há dois aspectos cruciais que parecem poder vir a marcar a distinção, e por isso mesmo bem mais relevantes do que a mera introdução de uma nova linguagem que de tempos a tempos readaptam velhas formulações. Em primeiro lugar, uma forma de adesão distinta, que privilegia o pequeno grupo no seu território/bairro, que se aproxima por uma visão comum de comunidade local, em vez de ser uma organização grande, com um modelo de hierarquia piramidal. Em segundo lugar, por trazer esse reportório de metodologias e ferramentas de acção coletiva que fogem da contestação típica das margens esquerdistas ou mesmo anarquistas, ou das cartilhas do ativismo ambientalista, para não falar do partidarismo delegado na gestão de poder local.
Para Fernando Oliveira, da iniciativa de Transição de Linda-a-Velha, que surge no final de 2010 e hoje com um grupo estável de 14 pessoas, é esse o grande desafio. “Estruturas horizontais, lideranças desinteressadas e com o objetivo de serem abandonadas entre outras formas de governança, são formas que fogem ao padrão educacional e nos obriga a repensar a nossa forma de estar em comunidade. É um trabalho muito pessoal, conhecido por Transição Interior, que nos coloca disponíveis para entrar nesta nova aprendizagem de estar em que, cada um ao seu ritmo vai abraçando aquilo em que se sente confortável. Estes processos são lentos e permitem que se criem laços entre os intervenientes, gerando confiança e autonomia a quem lidera um processo”.
A linguagem política e o léxico clássico das ideologias revolucionárias surgem assim claramente afastadas do discurso da Transição. Mas foi na verdade esta tomar da terminologia política dominante a concepção comum da cidadania, o que nos levou a questionar se haveria lugar nesse envolvimento das Iniciativas em Transição com as entidades instituídas e com as comunidades locais para rupturas e alternativas para lá da mera “gestão do existente”.
André Vizinho acentua que “o desafio da Transição é antes de mais o de construir uma visão positiva e participada para cada local. Consideramos que isto é bastante inovador (ao invés de usar a palavra ruptura) pois implica juntar as pessoas de um local para parar e sonhar como gostariam que fosse a sua comunidade, o seu bairro, a sua cidade, a sua rua. Em vez de estar a olhar para as alternativas que já existem, os partidos e as ideologias e os modos de governança que já existem, antes de mais procurar sonhar com o ideal. E depois procurar todas as ferramentas e recursos dentro e fora da comunidade para fazer a transição para essa visão”. Mas ruptura sim, enquanto “ruptura clara com algumas coisas que vemos actualmente, como seja o facto de em vez de criarmos uma organização para falar em nome dos outros, criar espaços onde todos tenham voz. E isto pode ser feito a todas as escalas. Fazemos também uma ruptura com algumas formas de comunicar como por exemplo a de termos certezas sobre aquilo que fazemos e o nosso modelo de sociedade: temos princípios e sonhos e ferramentas mas não sabemos se isto vai funcionar! Por isso precisamos de ser inclusivos e abertos e trabalhar em conjunto para podermos construir visões partilhadas e soluções flexíveis que se vão melhorando ao longo do tempo. Quanto mais forem participadas e inclusivas as soluções, melhor. Fazemos também uma ruptura com a necessidade de recebermos os louros e os créditos por todas as acções que daqui resultarem na comunidade”.
Para André, o esforço de ser inclusivo não diminui a voz das comunidades e dos grupos em expressar as suas necessidades e direitos. “Pelo contrário, como membros plenos das comunidades onde nos inserimos, sentimo-nos confiantes para, em conjunto com os nossos conterrâneos, defender o território para que ele possa ser gerido de forma ecológica, socialmente justa e economicamente viável. Precisamente por pertencermos e nos entregarmos ao território, em cada local procuramos debater para encontrar as soluções e não deixar que agentes externos degradem o território ou a comunidade sem respeitarem as pessoas e todos os seres vivos que nele habitam. Mas procuramos que tudo comece com um exercício criativo e inclusivo de criar uma visão positiva para a nossa comunidade”.
Também para Sara Serrão “há lugar para a ruptura com o status quo, e com muita frequência. A primeira ruptura é passarmos, individualmente, do comodismo para sermos activos na nossa comunidade, dentro dos temas que nos tocam e nos apaixonam”. E não deixa de observar que “na interacção com as autoridades locais, os indivíduos que lá operam também desejam novas formas de estar em sociedade”. Daí que não creia “que a cooperação com instituições implique a institucionalização do movimento, tal como não creio que colaborar em plataformas de contestação do sistema coloque a Transição numa atitude co-destrutiva. Através da Transição vejo a possibilidade de dialogar e cooperar com a maior diversidade possível de agentes no território. Existe uma visão ideal de uma sociedade em equilíbrio, logo existe um posicionamento que não deixa de ser político. E tudo isto coexiste. O desafio abraçado pela Transição é, precisamente, como abraçar pontos de vista diferentes quando, no terreno, todos nós ambicionamos uma comunidade saudável e resiliente?”
Assim, conclui Sara: “a Transição apresenta-se como o processo, o salto de um paradigma indesejado para uma sociedade desejada, e assim sendo não congela as fronteiras das suas concepções políticas, sociais, económicas, antes propõe metodologias de diálogo e integração de vontades, procurando apoiar os aportes específicos de cada indivíduo e de cada entidade, no nível onde esta actue. Assim sendo, também o diálogo com as entidades de gestão territorial, como a autarquia, é necessário para se implementarem ideias que tenham por âmbito esse território. Se, pelo contrário, o tema a ser trabalhado concerne apenas um grupo social específico, o poder de decisão e de acção concentra-se numa escala mais pequena. É o chamado princípio de subsidiariedade da Transição”.
Agindo localmente
Nitidamente posicionados à margem da conflituosidade declarada ao sistema, os grupos de Transição assumem uma dimensão local não institucional de co-construção como referido nas suas formações. Esse sentido cidadanista formula-se assim apolítico nessa vontade inclusiva não centrada em ideologias, mas não foge à prática política na co-construção com os actores institucionais. E aqui inevitavelmente dois tipos de actuação acabam por se cruzar, mais tarde ou mais cedo.
Para Fernando Oliveira, “por um lado a estrutura formal e hierárquica de uma associação, liga, cooperativa, e por outro a estrutura horizontal e não formal sugerida pela Transição, obriga os intervenientes a utilizarem a criatividade para conciliar estas duas realidades. E os resultados quando atingidos geram um grau de satisfação enorme”. Como em Linda-a-Velha, foi-se criando “um vínculo de confiança entre a Iniciativa não formal e o poder local”, exemplificado em projetos autárquicos como uma Quinta Urbana Pedagógica (12) ou a recuperação/conversão de um Mercado num espaço social e cultural. Assim, afirma que “a questão da formalização surge por necessidade e não é necessariamente uma “coisa má””, não sem deixar antes de destacar que “uma das grandes mudanças é o facto de as pessoas terem a mesma ou mais credibilidade que as instituições e essa é a grande mensagem a passar aos agentes locais. Acreditar nas pessoas é um processo mais directo que acreditar numa instituição mas estamos educados a valorizar o contrário”.
Carmen e Sérgio explicam como, desde o seu início, “o grupo Transição São Luís optou por ser um movimento de pessoas interessadas em revitalizar a Freguesia e aldeias, através da prática de uma cidadania participativa, sem hierarquias ou rótulos ideológicos cansados, estimulando assim a auto-organização, a criatividade e a responsabilidade colectiva em propor e implementar soluções ao nível adequado”. Como tal, “o movimento de transição parece que se tornou também uma espécie de “linguagem” de conexão entre movimentos associativos e outros grupos de atuação local. Isso é significativo pois, em vez de fundar mais uma associação distinta e legalmente separada, o grupo pode trabalhar – com a humildade necessária – como conector dentro do tecido vivo já existente na freguesia”.
É nesse âmbito que o grupo participa nas Comissões Sociais Inter-Freguesia, na revisão da Carta Educativa e do PDM (Plano Director Municipal) de Odemira, e desde o início no Orçamento Participativo, incluindo a formulação da proposta “Aldeia Solar” aprovada em 2012, a qual trará quatro unidades de micro-geração de energia eléctrica para as entidades públicas de São Luís. Ao mesmo tempo, participa em grupos de debate e cooperação informal, que se vão desenvolvendo entre várias comunidades e quintas ecológicas na região, como é caso da RECO – Rede Cooperar (13), mas igualmente a nível nacional com o movimento ecologista, da permacultura e da economia social e plataformas de consciencialização, como as Sementes Livres, Transgénicos Fora ou a resistência ao TTIP. Isso sem deixar de apoiar e retomar “iniciativas de coesão social tradicionais, como as festividades locais e os mercados de produtos hortícolas” ou criando novas propostas como foi o evento das Montras – Mostra de Artistas e Artesãos de São Luís (14) – que em 2015 se associou às festividades de verão locais e envolveu os criativos residentes na freguesia, os proprietários das lojas, voluntários e todas as entidades públicas locais culturais e de turismo local.
O movimento de Transição é, como diz claramente Fernando, “de base local e apenas sugere metodologias para se alcançar um fim. Como sugestões que são, grande parte são testadas pelas iniciativas, umas adoptadas e outras adaptadas ou abandonadas. Cada localidade, bairro ou mesmo rua, tem a sua identidade e o seu percurso histórico e serão estas as condicionantes para o sucesso da iniciativa”. Uma palavra torna-se fulcral em Linda-a-Velha: vizinhança. “Tudo acontece quando estão estabelecidas relações estruturadas de vizinhança e para nós esta é a chave de tudo. Recuperar os laços de vizinhança, criar confiança e vontade de estar juntos leva a que grande parte dos projetos surjam à mesa do café. Para nós, que fizemos uma análise dos sucessos e insucessos do nosso passado, apesar de curto muito rico em experiências, concluímos que é nesse bem-estar pessoal e coletivo que está a fórmula da transformação social”.
A preocupação central de actuar em e com a comunidade transparece do mesmo modo em Tavira. Diz-nos Ângela Rosa que “a nossa abordagem em relação a muitos assuntos e áreas determinadas é generalista, transversal”. A forma de actuar distinta dos modos institucionais e clássicos do associativismo explica o que considera ser “essa magia que nos fez em pouco tempo (4-5 anos) fazer tanto e tão fenomenalmente. Somos todos voluntários, todos população, sem fins lucrativos, sem grandes convenções, até aqui aprendemos por nós mesmos. Sabíamos que o que queríamos era um mundo, uma localidade mais sustentável, comungámos do mesmo amor pela natureza, pela comunidade”. Assim, conclui: “Os nossos simples princípios e motivações foram o nosso sucesso e o facto de serem simples e reconhecidos facilmente nos outros fizeram com que criássemos tantos eventos e actividades com tanta facilidade, porque qualquer pessoa se sentia parte e se revia neles como cidadão activo em prole e defesa do bem colectivo da comunidade”.
Em Tavira, essa motivação traduz-se em “vários grupos de curta e média intervenção para elaborar as muitas atividades e iniciativas que desenvolvemos”. Desde sessões de eco-cinema, uma horta escolar, programas na rádio, “assim como outros que permaneceram, como o grupo das artes, o grupo de canto e música, o grupo da imprensa, o grupo contra as “estufas”, e agora mais recentemente o grupo da saúde e o grupo media. E há outros grupos em perspectiva, como o grupo da terra ou o grupo da economica circular”. Destaque ainda para o trabalho de reflorestação na mata nacional da Conceição e a parceria pedagógica com a escola secundária de Tavira. Não admira por isso que “os miúdos já tenham feito dois vídeos sobre a questão do fracking, sendo que neste momento andam pela cidade a fazer um estudo ao mesmo tempo que informam a população sobre o fracking”. Ângela acentua mesmo como perante “a ameaça da exploração de gás e petróleo, de fracking, assim como a “plastificação da paisagem” através da proliferação descontrolada de estufas para agricultura intensiva e “exótica”, a nossa envolvência nestes temas e com a restante população de Tavira, do Algarve e do país, assim como com a autarquia, tem-se revelado surpreendente”. No evento pelo clima no dia 29 de Novembro, a propósito da COP21, Tavira em Transição reuniu no centro de Tavira 600 pessoas, contribuindo para que os autarcas locais e da região se posicionassem finalmente ao lado dessa luta.
Sara Serrão resume enfim o modo de operar da Transição: “Uma pré-disposição para a construção positiva da comunidade “ideal” – baseada numa visão partilhada para o mesmo território – que inclua a diversidade de agentes locais, indivíduos e entidades. A meu ver esta postura inclusiva da Transição é inovadora, ao invés da separação pela etiquetagem: ecologias, activistas, economistas, empresários… Somos um grupo de pessoas motivadas para cooperar e superar as fronteiras conceptuais que, muitas vezes, nos separam em indivíduos ou grupos de indivíduos distintos. Assim sendo, considero que existe muito espaço e permeabilidade na formulação teórica e na aplicação prática do movimento para entrecruzar referências e modelos”.
Comunicar e comungar em comunidade
Se a formulação teórica da Transição é deliberadamente um campo vago ou aberto, existem efectivamente nas tais ferramentas de acção coletiva, alguns conceitos complexos e metodologias com nomes “estrangeiros” (world café, dragon dream), o que na prática requer alguma atenção em como são apresentadas nas comunidades.
Tavira em Transição replica logo à partida não ser “um movimento com linhas muito académicas, mas sim um movimento com uma aprendizagem original e orgânico, fiel à sua espontaneidade, prática, experiência e história. Sim, usamos recurso a alguns desses conceitos, mas temos preferido criar dinâmicas por nós mesmos e dessa maneira temo-nos introduzido junto da comunidade com uma linguagem natural, espontânea e autêntica”. Exemplo do programa semanal na rádio local coordenado por Ângela, mas aberto a participações: “um programa de eco-cidadania, o eco-ponto da transição”.
Em São Luís, diz-nos Sara: “optamos por, deliberadamente, não usar estrangeirismos. Por cá temos Café do Mundo, Espaço Aberto, Sonhar do Dragão (15)… Enquanto grupo, temos uma atitude de aplicação prática dos princípios da Transição e assumimos trabalhar à escala das nossas possibilidades. Para desenvolvermos consciência sobre a economia local realizamos um mercado; para as energias alternativas propomos o orçamento participativo “Aldeia Solar” em conjunto com a Junta de Freguesia e a Casa do Povo; para políticas de ordenamento do território juntamo-nos ao colectivo de propostas para o PDM; para estimular a cooperação comunitária lançamos as Montras. Há uma escolha consciente de actividades pró-activas e positivas que se coaduna com a comunidade prática de São Luís. Organizamos ainda uma vez por mês uma Conversa sobre um tema relevante, aberta a todas as pessoas que gostam de debate mais conceptual”.
Fernando chama-nos à atenção de novo como “tudo tem sido um processo e uma aprendizagem. Esta nova forma de estar e de nos organizarmos em comunidade, que nos trouxe também uma série de metodologias para auxiliar essa abordagem”. E no decorrer disso “a base está na escuta. Escutando o que alguém tem para oferecer e redireccionar de modo a que essa proposta vá ao encontro do objetivo colectivo. No fundo, todos nós temos a nossa rede de confiança, constituída por aqueles que nos são mais próximos e acreditam em nós e nas nossas intenções. Ora se cada um de nós motivar três pessoas para a iniciativa, o movimento ganham uma dinâmica de crescimento. Claro que isto é teoria e nem sempre acontece, mas a nossa experiencia local valida esta forma de estar”.
Transição Interior
Os aspectos mais práticos associados à dimensão social e a ambiental não são pois suficientes para definir a Transição sem a interligação com a dimensão pessoal. O desígnio da Transição surge assumidamente assente num plano ético. Caberia então perguntar como é que se interligam as propostas mais fáceis de assimilar da dimensão social e ambiental com as propostas da chamada transição interior, cujo apelo e adesão pessoal tropeça não poucas vezes na dificuldade (ou perigo) de submeter a uma visão comum de espiritualidade, visões e vontades individuais distintas.
Sara diz-nos precisamente que “o que a Transição me traz de novo e me faz sentir em casa é a parte interior e o foco nas relações interpessoais. Haver lugar para o desenvolvimento pessoal e poder trabalhar de forma concreta e consciente nas minhas crenças internas, com isso impactando a minha postura e a minha concepção da realidade, tem sido o grande ganho pessoal”. Atenua-nos em seguida o tom crítico da nossa pergunta: “Dentro do movimento de Transição não existe uma visão comum de espiritualidade. Curiosamente em São Luís as propostas da Transição Interior têm sido as mais bem aceites e as mais participadas pela comunidade local, o que pode pôr em questão onde está a “facilidade” e a “dificuldade” do envolvimento individual. Precisamente por não haver uma visão comum de espiritualidade, as pessoas que participam demonstram vontade para encontrar um espaço colectivo de bem-estar, no seio do qual podemos compreender os desafios individuais e ousar mudar hábitos quotidianos”.
Estes processos são igualmente simplificados no entender de Fernando: “A Transição interior é um processo contínuo e de adesão espontânea e normalmente não surge como uma proposta mas como uma necessidade identificada pelo próprio em que cada um no seu momento e ao seu ritmo entrará em processos de transformação pessoal”. Depois “tudo isto se passa inserido num grupo de pessoas que vai suportando o processo, que não tem propriamente de acontecer em formatos de reunião. Muitas vezes é um processo acarinhado num convívio ou à mesa de um café não perdendo a sua eficácia por isso”.
A economia solidária e a relação produtores-consumidores é outro aspecto central à Transição, inerente à harmonia holística almejada entre preocupações ambientais e a economia quotidiana local. Joga aí um papel crucial o estabelecimento de um novo tipo de relações de proximidade. Porém, nessa prática o posicionamento anti-capitalista (e estamos a pensar no capitalismo verde) parece ausente. De facto, as iniciativas em Transição reflectem ainda na relação a propor com o dinheiro e o consumo enquanto grupo comunitário ou se enquanto grupo pretenda ou não criar uma economia comunitária, trocar serviços, criar empregos ou mesmo vender produtos.
Fernando frisa uma vez mais o posicionamento abrangente: “A nível local o entendimento não passa por vincar uma posição contra o que quer que seja, porque consideramos que todas as realidades são válidas e numa comunidade existem argumentos para defender tudo. Se passo a passo formos envolvendo pessoas no processo que acreditamos de favorecimento à economia local e produção de proximidade, aos poucos a localidade torna-se pouco atractiva para as grandes empresas assentes em padrões de capitalismo, acabando estas por abandonar a sua atividade dando ainda mais espaço para novas oportunidades inovadoras e socialmente sustentáveis, caminhando assim para a “tal” resiliência”.
Nesse sentido o tema é devolvido à comunidade onde se inserem, pois como referem Carmen e Sérgio, contrastando com o “adoptar e seguir cegamente rótulos ideológicos já preparados”, uma nova economia “terá maior probabilidade de germinar se resultar de um processo emergente a partir de movimentos comunitários diversos e independentes mas trabalhando em rede. Pensamos que a relação produtor-consumidor não é linear mas circular. A vivência na aldeia mostra que essa troca tende a ser recíproca… Acreditamos ser necessário pensar em termos mais abrangentes do que somente “produtores” ou “consumidores”, termos esses que cabem bem em qualquer discurso de economia neoclássica”. Ao nível local, “a economia solidária passa por uma relação de confiança mútua (tipo olhos-nos-olhos) entre os membros da comunidade, onde a distinção entre produtores e consumidores frequentemente não se aplica. Quando a situação aperta, o pessoal da aldeia tende a achar soluções próprias e engenhosas que nascem espontaneamente. É interessante notar que as relações familiares têm aqui um papel importante nessas situações mas há também um sentimento de solidariedade para além do círculo familiar que nos surpreende”.
Como tal, concluem Carmen e Sérgio, “a transição não tem uma receita pronta para essa nova economia. Aquilo com que a transição pode contribuir é um processo para identificar aspirações e esboçar caminhos. A frase pode soar simplória mas é aquilo que realmente sentimos. Nas nossas conversas em grupo sobre essa nova economia sugerem noções de co-dependência, resiliência a todos os níveis, confiança mútua e reciprocidade, além de valores éticos e limites ecológicos. As nossas pretensões são de ajudar a revitalizar a economia local, assim como trocar serviços e gerar empregos que se alinhem numa (futura) economia solidária. Mas isso passa também por educação, capacitação e requalificação pessoal, assim como projectos que revertam o fluxo de pessoas para os centros maiores”.
Em Tavira, Ângela refere como a questão dos aspectos económicos criou um pequeno impasse. “Todos nós, na grande maioria, à parte do movimento somos profissionais na área da sustentabilidade (hotelaria bio, eco turismo, agricultura bio, terapias alternativas, arquitectura paisagística, comércio local e bio, educação integral, etc.) e por tal nunca envolvemos esse aspecto pessoal. Há pouco tempo, e muito por conta de algumas sugestões de redes socio-económicas que o Rob Hopkins e a Transição oferecem, o movimento viu-se numa encruzilhada, e neste momento estamos a discernir as coisas e a tentar ser autênticos com o que realmente queremos e nos trouxe até aqui. E é preciso ter coragem tanto para mudar como para ser original. E por tal estamos numa fase decisiva na qual não poderemos desconsiderar o passado e o respeito a tudo o que criamos e como criamos”. Ângela não identifica “a transição como uma mercadoria em si, muito menos a comunidade, e isso, desde que o grupo cresceu acima das 50 pessoas, foi tema de grande debate aqui. O Tavira em Transição emancipa de uma maneira geral e comunitária, não de uma maneira específica. Agora pessoalmente, sim, o eco-capitalismo é mais real do que se pensa, numa perspectiva de lucros acima das pessoas, é para mim inadmissível! E eco-capitalismo com a chancela da Transição é simplesmente triste e frustrante na minha óptica, sentir-me-ei como se tivesse sido usada para os outros tomarem oportunidade para lucrarem sobre mim”.
Para Fernando, de Linda-a-Velha, “o dinheiro como ferramenta de troca será sempre uma solução desde que assente em conceitos de uma economia justa e partilhada”. Mas tal como nos restantes, “enquanto grupo ou iniciativa local não nos ocorre a necessidade de criar empregos ou vender produtos mas, potenciar uma economia comunitária apoiando a criação de empresas (associações ou cooperativas) locais que trabalhem para uma economia de proximidade e eticamente justa será o caminho que optamos seguir. Este será um passo muito importante para se conseguir criar sustentabilidade financeira aos intervenientes nesta nova forma de estar, podendo estes fortificar no seu próprio trabalho o caminho sonhado por uma iniciativa de Transição”.
Claramente, esta dimensão social e da economia definida a partir da dimensão ambiental primordial às iniciativas de Transição não é um aspecto de fácil resolução perante o espírito largamente inclusivo que é a espinha dorsal do movimento, avessa que é ao determinismo ideológico. A ausência desses compromissos poderão, de um ponto vista crítico, acabar por reverter essa energia do movimento na sua própria paralisia cidadanista e do processo de transição. Porém a dimensão pessoal e ética e nesse compromisso de uma visão comum à comunidade da vila, da aldeia e do bairro, parece ser uma robustez de toda a ordem que dará ao sonho a sua maior conquista: a imprevisibilidade. Atenta que esteja essa força à horizontalidade das relações manifestada pela Transição, este é certamente um movimento e um debate que não se ficarão por aqui.
NOTAS:
(1) transicaoportugal.net
(2) transitionnetwork.org (Fundada em 2007)
(3) Aldeia das Amoreiras, Aveiro, Benfeita, Cascais, Coimbra; Covilhã, Beja (Eco-Comunidades na Planície), Eco-aldeia de Janas (Sintra), Gaia em Harmonia (Évora), Lagoa, Linda-a-Velha, Madeira (Funchal), Olivais Encarnação (Lisboa), Portalegre, São Brás de Alportel, São Luís (Odemira), Telheiras (Lisboa), Transição Universitária na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa (Lisboa), Vila Nova de Famalicão. Para além destas Iniciativas à data no site da Transição Portugal, outras mais são anunciadas na Rede Convergir ou na Rede Permacultura Portugal: Tavira, Alverca, Monchique, Serpa, Santarém, Famalicão, Azambuja, São Miguel (Açores), Pombal, Faro, Corroios, Figueira da Foz, Paredes, Sintra, Oeiras.
(4) transicaosaoluis.wix.com
(5) facebook.com/tavira.emtransicao
(6) transicaolav.blogspot.pt/
(7) Activista ambiental e a figura emblemática do movimento de Transição, é autor dos livros The Transition Handbook (2008), The Transition Companion (2011), The Power of Just Doing Stuff (2013) e 21 Stories of Transition (2015) (mais em https://goo.gl/KlAjfp)
(8) centrodeconvergencia.wordpress.com
(9) vivertelheiras.pt
(10) permaculturaportugal.ning.com
(11) redeconvergir.net
(12) facebook.com/quintaurbanapedagogica.lav
(13) Artigo no Jornal MAPA sobre a Rede Cooperar em http://goo.gl/v5dfCg. Mais em redecooperar.blogspot.pt
(14) montrassaoluis.wordpress.com
(15) Espaço Aberto/Open Space é uma técnica que permite que grupos (pequenos, grandes ou enormes) se auto-organizem para discutir vários assuntos de forma simultânea, que os próprios participantes escolhem e gerem com muita liberdade. O papel dos facilitadores é o de ajudar a que o grupo de participantes co-desenhe a própria dinâmica. Esta técnica permite que os grupos se formem por interesse e que as pessoas possam dividir o seu tempo em vários grupos;outras metodologias grupais são o Café do Mundo/world Café – processo de diálogo em grupos nos quais participantes se dividem em diversas mesas em torno de uma pergunta central e circulando entre os diversos grupos – ou Sonho do Dragão/ Dragon Dreaming, ferramenta que assenta na leitura e reconhecimento dos padrões de comportamento, na análise e estudo de milhares de sonhos-projectos fracassados e bem sucedidos (dragondreamingpt.blogspot.pt/).