Extraordinárias formas de vida?

14 de Outubro de 2016
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Uma leitura dos documentários Catálise e Que Estranha Forma de Vida
Alexandre Ferreira (ferreiralex2016@gmail.com)

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Recentemente vieram a lume dois documentários, de seus nomes Catálise- Processo em Curso (1), de Patrícia Santos, e Que Estranha Forma de Vida (2), de Pedro Serra, que nos apresentam 10 iniciativas de «extraordinária forma de vida» (3). Este texto que ora vos é apresentado visa contribuir para a leitura desses projectos e da «extraordinária forma de vida» para a qual os mesmos apontam. Uma primeira abordagem é feita a partir da experiência prática e consequentes reflexões do seu autor. Como tal, sujeito a insuficiências de diversa ordem, para as quais se agradece reparo (4).

O documentário Catálise apresenta-nos seis iniciativas, todas elas mapeadas online na Rede Convergir (RC): a Associação 1000Lides; Escola-Casa Floresta Verdes Anos; Quinta do Alecrim; Associação Mais Cidadania; Centro de Convergência de Telheiras e o Círculo de Sementes Dente-de-Leão. Por seu lado, o Que Estranha Forma de Vida dá-nos a conhecer quatro iniciativas, duas delas igualmente mapeadas na RC (comunidades de Cabrum e Tamera), uma terceira que se trata de Rui Vasques, um «eco-designer e empreendedor social», e uma quarta iniciativa que é a Cooperativa Integral Catalã (CIC), fora do âmbito territorial português da RC.

As iniciativas apresentadas são de diversa índole, bebendo essa diversidade nas próprias categorias existentes na RC: Permacultura; Gestão da Terra e da Natureza; Ferramentas e Tecnologias; Saúde e Bem-Estar Espiritual; Uso da Terra e Comunidade; Transição; Espaço Construído; Cultura e Educação; Economia e Finanças e outras. Apesar da diversidade, transversal a essa actuação está o desejo de «contribuir para uma sociedade equilibrada e uma vida humana em harmonia com o meio envolvente» (5). Em relação às duas iniciativas que não estão mapeadas, perfilham as mesmas de semelhantes objectivos, embora as diferentes formulações não sejam, provavelmente, despiciendas. A CIC afirma na sua página web que é uma «iniciativa em transição para a transformação social desde as bases, mediante a autogestão, a auto-organização e o trabalho em rede» (6). Rui Vasquez afirma que «nós podemos criar o nosso futuro» (7) e visa «o bem-estar da humanidade e do meio ambiente» (8).

extraordinarias-formas-de-vida-2O que partilham?

Perante esta diversidade que aponta desejos comparáveis, que leitura poderemos fazer? Como dar um sentido que enquadre as várias iniciativas, tendo em vista a «transformação social desde as bases» e «sociedade equilibrada e (…) em harmonia com o meio envolvente» que afirmam desejar?

Propõe-se, como um primeiro enquadramento para este breve artigo, que se inscreva a actuação de cada iniciativa num conjunto de questões que surgem como relevantes para a concretização dos desejos manifestados. Assim, há que saber se a iniciativa:

1. Defende os próprios interesses, sejam estes laborais, educativos, culturais, afectivo-sexuais ou outros, ou defende interesses alheios, como sejam a causa ambiental, animal, a caridade, etc?

2. Tem actividade sobretudo pós-laboral (como o são diversos tipos de voluntariado) ou insere-se na actividade laboral dos seus membros (com exemplo clássico nas cooperativas)?

3. Integra estruturas colectivas de apoio e entreajuda material, sejam verticais ou horizontais, como o são diversas cooperativas, mútuas, caixas económicas ou de socorros mútuos, sindicatos, etc?

4. Está integrada na actuação de outros colectivos do território, através de diversas redes, como por exemplo a Rede Social Concelhia, os Grupos de Acção Local do ProDer ou o PROVE?

Cada uma das respostas implica mais-valias e insuficiências para a prossecução da «transformação social desde as bases», e do «bem-estar da humanidade e do meio ambiente», pelo que há que ponderar onde se inscreve a nossa iniciativa em cada uma delas e quais as repercussões expectáveis. Assim sendo, uma iniciativa cujos membros se movimentem principalmente em regime pós-laboral, voluntário, incorre no risco de precariedade e descontinuidade de actuação, reduzindo assim o seu impacte expectável, para além do risco de incoerência entre actividades associativa e profissional. Por outro lado, uma associação que se oriente principalmente pela satisfação das necessidades dos seus membros incorre no risco de corporativismo, ao sobrepor os seus interesses pessoais aos interesses de outrem. Uma iniciativa que preze sobretudo a organização colectiva incorre no risco de descurar o bem-estar de cada indivíduo ou vice-versa, uma que preze principalmente o bem-estar individual incorre no risco de não criar estruturas de apoio que, de forma organizada, assegurem a existência material dos seus membros. E por aí fora.

extraordinarias-formas-de-vida-3Alguns pontos para tomar a iniciativa

As iniciativas que nos são apresentadas nos documentários Catálise e Que Estranha Forma de Vida, lidas à luz das questões acima descritas, com base na curta informação que os referidos transmitem, e perante o horizonte de transformação social manifestado, ficam situadas em quatro grandes grupos de actuação, a que convencionaria chamar Cooperativo Integral, Cooperativo Tradicional, Liberais Comprometidos e Pós-Modernos Militantes.

Como potenciais insuficiências das iniciativas há a assinalar uma ênfase no indivíduo ou em grupos restritos (excepção feita à CIC e ao Centro de Convergência de Telheiras), com reduzida integração em estruturas de entreajuda material (excepção da CIC e, talvez, da Verdes Anos). Estas insuficiências não permitem romper, no meu ponto de vista, com a actual fragmentação e desigualdade social, mantendo as iniciativas reféns de nichos culturais e sociais, e os intervenientes dependentes, para a sua própria sobrevivência, da vitalidade económica de cada momento e/ou das suas capacidades individuais. As mais-valias que a prazo se poderão verificar surgem, no caso da CIC e do Centro de Convergência de Telheiras, de uma abordagem territorial abrangente, com interacção de vários actores locais e (potencial) satisfação de alargado leque de necessidades humanas. No caso das restantes iniciativas, parecem ser identificáveis a satisfação e enriquecimento pessoais que advêm da participação dos respectivos membros.

Regressando uma última vez aos desejos de transformação social, sociedade equilibrada e bem-estar da humanidade e do ambiente, estamos em crer que na maioria das iniciativas referidas tais desejos dificilmente se concretizarão para além da esfera de contacto pessoal dos seus membros e, com algum optimismo, do respectivo nicho social. O alcançar dos desejos parece surgir como mais provável com as duas referidas iniciativas mais integradas territorialmente, que parecem ter (e concretizar já em parte) a capacidade de diálogo inter-classe, inter-associativa e inter-cultural.

Notas:
(1)
Documentário e projecto disponíveis em http://redeconvergir.net/catalise
(2) https://goo.gl/xWklHm e https://goo.gl/NFdSsM
(3) Que Estranha Forma de Vida, 33’25”
(4) O desenvolvimento e comentários ao artigo irá constar no site do Jornal MAPA.
(5) http://www.redeconvergir.net/sobre
(6) http://cooperativa.cat/
(7) Que Estranha Forma de Vida, a partir do 52’21”
(8) https://goo.gl/SXT2Ol

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