Demolições na Caldeira de Tróia

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A história da península confunde-se com o percurso da indústria turística desenvolvida por gigantes como a Sonae ou o grupo Pestana

Texto de Carlos Rebelo
Ilustração de Miguel Fidalgo

Diversas habitações na zona norte da Caldeira de Tróia têm os seus dias contados já que serão em breve demolidas, de acordo com o projecto de construção de um eco-resort da Sonae, disponível no site da empresa. A demolição é o culminar de 13 anos de um processo em tribunal que opunha diversas famílias, moradoras e utilizadoras das habitações à Sonae, proprietária de diversas infraestruturas de turismo de luxo na península.

O início do problema remonta a 2003, quando surge a primeira tentativa directa de despejo das casas, alegadamente levada a cabo pela própria Sonae. Na altura os donos das casas conseguiram, pelas suas próprias mãos, impedir os despejos e iniciou-se um processo em tribunal que durou até 2016. A apresentação, por parte dos moradores, de uma autorização assinada pelo proprietário faz com que o caso se arraste. Também em tribunal, as famílias alegam o direito de usucapião mas deparam-se com um autêntico “cheque-mate judicial” da parte dos advogados da Sonae. O isco é o IMI relativamente aos imóveis, que, não tendo sido pago pelos moradores, é agora exigido, totalizando um valor irrealista e impossível ser pago pelas famílias.

Manuela, nome fictício, ex-moradora, conta que no decorrer do processo surgiram episódios de violência e pressão sobre os moradores. Em Julho de 2003 um misterioso incêndio teve lugar justamente nas casas das famílias ameaçadas. O fogo atingiu todas as habitações e terrenos adjacentes, sendo que duas casas foram totalmente destruídas. Os moradores conseguiram extinguir o fogo e mais tarde reconstruir os prejuízos causados na pequena comunidade. Maria sublinha que tudo isto decorreu enquanto algumas construções ilegais (aos olhos da lei), na zona sul da Caldeira, estavam já a ser demolidas pelas máquinas e trabalhadores da Sonae. Quando evocado na sala de audiências, o episódio do fogo acabou por terminar numa suposta fuga de gás de um fogão.

Manuela avança para uma outra história. Certa noite, em Maio de 2006, as famílias acordam sobressaltadas com barulho nos seus quintais (recorde-se que na Caldeira apenas se ouve a natureza) e deparam-se com várias dezenas de homens fardados, já dentro dos seus quintais, a levar violentamente todas as coisas que ali estavam. “Enquanto estes homens começavam a ameaçar as pessoas que, apanhadas pelo choque, tentavam lidar com a situação, pelo lado da praia já estava formado um cordão de outras dezenas de homens que bloqueava a entrada e saída de qualquer membro destas famílias” recorda Manuela. “Por sorte, ou obra da Nossa Senhora de Tróia, apareceu um jipe patrulha da GNR que, ao deparar-se com esta situação, e depois de se aproximar pelas chamadas de auxílio das pessoas, percebe que se trata da equipe de seguranças da Sonae. O agente da GNR apenas manda os homens reporem as coisas e irem para casa pensar no que fizeram”.

As habitações em causa, a cerca de 1.500 metros do casino de Tróia, foram construídas durante a actividade de exploração da ostra na Caldeira, na década de 60 nas terras de Agostinho Silva, ex-patrão de muitos dos actuais moradores que, na altura, trabalhavam na apanha da ostra entre a Comporta e Alcácer, e habitavam o espaço com autorização do mesmo. Esses e essas trabalhadoras mariscaram ali toda a sua vida e muitos acabaram por viver e constituir família naquelas casas. Manuela não só pariu a sua filha naquela casa como já viu a sua neta “tornar-se mulher” na mesma. As famílias e amigos que ali habitam vivem, dão vida e mantem laços com a região há várias gerações. Na Caldeira dos anos 50, várias famílias e amigos, maioritariamente ligados à pesca ou ao mar, conviviam entre si e ali passavam os seus Verões em casas auto-construídas de madeira com telhado de colmo, como ainda se podem ver algumas na zona da Comporta e Carrasqueira.

Quando terminou a exploração da ostra na zona, devido ao esgotamento da espécie, a empresa Torralta, cujo principal acionista era o próprio Agostinho Silva, despeja, através de uma ordem judicial, as casas de madeira existentes na Caldeira. Nos anos 70, a Torralta toma conta de Tróia, mas após a sua falência, deixa-a ao abandono juntamente com os seus novos blocos de cimento maciço por terminar em cima das dunas. As finanças cobram a dívida e o Estado passa a ser o novo senhor de Tróia, até a Sonae assumir o seu controlo em 1999.

Em 2008 o complexo turístico Tróia Resort é inaugurado pelo então ministro da economia Manuel Pinho. Mas até à ocupação da península de Tróia pela indústria turística, esta era um local privilegiado para as populações setubalenses que mantinham ali uma zona de lazer de livre acesso e uso. Em 2009 o livro “Quando a Tróia era do povo”, editado por uma turma do 9º ano da escola secundária D.João II, recupera e compila inúmeras histórias e relatos da relação dos setubalenses com a zona de Tróia e a Caldeira, pela boca dos mais velhos.

ilust_mapa_caldeiraNo entanto, desde há muito que a realidade da zona se cruza com a indústria do turismo. Em finais de 1999 a Assembleia Municipal de Grândola aprova o Plano de Urbanização de Tróia (PUT), no âmbito do qual se divide a península em nove Unidades Operativas de Planeamento e Gestão (UNOP). Na zona denominada UNOP 1, o centro nevrálgico da indústria turística da península, pode ser encontrado o famoso Casino, a marina e o Tróia Design Hotel erguidos depois de anos de obras e da famosa demolição das antigas torres da Torralta, em 2005. Na altura as demolições ficaram conhecidas pela população de Setúbal não apenas pelo fantástico espectáculo de demolição mas pela densa nuvem de poeiras que atingiu a população que assistia dos miradouros de Setúbal. Um episódio sem grande gravidade mas que antevê a natureza da relação entre a indústria do turismo e as populações locais e o território em si.

A casa da senhora Manuela fica dentro da UNOP 4, zona que abrange a Caldeira de Tróia, com uma área de 264 ha. De acordo com a página da Sonae-Turismo, para esta zona estão previstas a edificação de 125 moradias turísticas, um centro equestre, um centro de interpretação ambiental e arqueológico e um hotel de charme junto às ruínas romanas de Tróia. Numa entrevista ao semanário Setúbalmais, João Madeira, director-geral do Tróia Resort, afirma que “uma das medidas previstas é que as construções sejam feitas em cima de estacas de modo a preservar toda a vegetação“. Em relação às Festas da Caldeira, João Madeira comenta que “teremos de trabalhar em conjunto com a comissão que a promove, para permitir que o espaço esteja mais organizado e disciplinado“. Resta saber que tipo de medidas de controlo vão realmente adoptar, visto que prevêem atingir mais de 15 mil visitantes.

Junto à Estrada Municipal 253-1, entre Tróia e a Comporta, está também prevista a construção de um centro desportivo, que, de acordo com o Relatório de Conformidade Ambiental (RECAPE) para a zona de Junho de 2015, é dedicado à realização de estágios de futebol de equipas profissionais do Norte da Europa. O documento estabelece, no entanto, a relação evidente entre as diversas infraestruturas de lazer na zona ao afirmar que o “centro contribuirá para contrariar a forte componente sazonal da ocupação turística na península, já que os pacotes de estágio serão comercializados em parceria com os estabelecimentos hoteleiros do Tróia Resort e será nestes que as equipas ficarão hospedadas”.

No entanto estão em marcha diversas outras construções em outras zonas da península. Talvez a mais mediática seja o condomínio privado Pestana Eco Resort & Residences a ser construído na UNOP 5, na costa oceânica, zona esta que é contígua a UNOP 4. Recentemente, o empreendimento turístico esteve sob o foco do jornal Público depois da publicação de uma peça sobre a interdição do acesso da população em geral às praias concessionadas ao Resort. Neste caso é o próprio empreendimento que, sendo totalmente privado, impede o acesso à praia. A peça deu origem a uma resposta por parte do grupo Pestana que se defendeu, alegando a requalificação dos acessos a reboque das obras do projecto, a fragilidade ambiental da zona envolvente, classificada com Reserva Ecológica Nacional, e a construção de um parque de estacionamento que visa “minimizar as condutas impróprias e danificadoras da duna”. O empreendimento, com um investimento de 80 M€, contempla um hotel com 150 apartamentos e 118 moradias de diversas dimensões numa área de 100 ha.

A indústria turística mostra, na península de Tróia, a pior das suas facetas. Com a aposta em empreendimentos megalómanos, de elevado impacto ambiental e social, vai-se alastrando e condenando toda uma região à uniformização decorrente da imposição do turismo como única actividade económica e profissional possível. Inevitavelmente, apenas grandes grupos económicos como a Sonae, o grupo Pestana ou o grupo Amorim (proprietária do Design Tróia Hotel no Tróia Resort) têm capacidade de realizar investimentos da ordem de milhões de euros. Nos primeiros nove meses de 2015, a Sonae SGPS, empresa mãe do grupo Sonae, registou lucros de 146 M€ e a Sonae Capital, empresa que através da Sonae-Turismo proprietária do Tróia Resort, registou um lucro de 3 M€, contrastando com um prejuízo de quase 8 milhões no ano anterior. Por sua vez, também em 2015, o Pestana Hotel Group registou receitas de 334 M€, dos quais 172 resultam do negócio da hotelaria.

O processo que a península de Tróia atravessou nos últimos 30 anos é um processo de privatização e ocupação do espaço e destruição da natureza levado a cabo por grupos económicos que olham para a terra, as dunas, as praias e o território como investimentos que dos quais poderão gerar lucros. Francisco, um jovem setubalense que cresceu entre Setúbal e a Caldeira, e cujo avô foi mariscador naquela zona, considera claro o que se passar naquela zona: “por mais que a Soane tente esconder a sua prepotência e a sua violenta forma de agir, está claro para todos que é de ocupação deliberada de território por parte de empresários sem escrúpulos que se trata. Estes mentem deliberadamente enquanto se justificam com estudos ambientais encomendados e vão construindo casinos em cima de dunas. A Tróia foi irremediavelmente transformada colocando em causa as inúmeras recordações e pontes geracionais que muitos setubalenses, e não só, mantinham com aquele espaço. O que sentimos é que o povo já não é mais bem-vindo nas terras dos seus avós”.

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