COMPORTA: Entre os Espíritos da terra e do turismo
A história da Herdade da Comporta, a maior propriedade privada do país, é profundamente reveladora de como a transformação de um território moldado em nome das elites, traduz desigualdades sociais que comprometem o lugar e a vida de quem aí nasce. A história de um país alicerçado na subalternidade às grandes famílias detentoras da terra e ao suor de quem nelas nasce. A posse e o uso da terra nos últimos 60 anos da família Espírito Santo nas sete aldeias da Comporta, deixaram marcas profundas.
Ana Duarte, do Museu do Arroz da Comporta, referia como este é «um espaço em que as relações de dominador/dominado actuam, o que, no caso da Comporta, deixou marcas muito profundas e indeléveis»i. A história deste território passou de um Sado agrícola, do arroz e da pesca, a um Sado onde a paisagem e as gentes são produtos mercantilizados ao serviço do consumo turístico. Desígnios determinados não pelas comunidades, mas em planos estratégicos orquestrados pela finança, cujas metas de lucro tão imediatas quanto possível conduziram ao próprio colapso dos Espírito Santo. Hoje resta questionar se outras expectativas e a coesão dessas mesmas comunidades permitem que elas mesmas revitalizem a Comporta deixando de lado a vassalagem que as moldou.
De terras inóspitas a arrozais
No estuário do Sado, a Herdade ocupa, entre Alcácer do Sal e Grândola, 12500ha de pinhal, várzeas, arrozais e 12km de costa. O clima insalubre não lhe reservou condições para aí se estabelecerem grandes comunidades ao longo dos milénios. Fora a presença sazonal e abrigo dos pescadores e salineiros, com pequenos amanhos da terra, a ocupação apenas ganha fôlego na época Moderna sob o peso da escravatura negra. Já os grandes senhores das terras eram os principais proprietários de escravos no Alentejo. Pelo séc. XVI e XVII a maioria encontra-se ao longo do Sado pois demonstra uma maior resistência ao paludismo. As sezões colhem, no séc. XX, os trabalhadores rurais que se juntavam sazonalmente aos “pretos de Alcácer” e à mestiçagem dos “carapinhas do Sado” nos arrozais cobertos de mosquitos.
Na verdade este território litoral manteve-se praticamente selvagem e despovoado até ao aparecimento dos arrozais dos inícios do séc. XX. Os caminhos para Troia, o único lugar “insular” que manteve uma ocupação secular, apenas passavam por charnecas e pântanos. A Coutada Real de Pêra e Comporta, conhecida pelas madeiras para a construção naval, assim como couto de caça, fora incorporada no séc. XVII na Real Casa do Infantado. Em 1836 passa para a Companhia das Lezírias do Tejo e Sado, fundada a fim de as arrematar conjuntamente. A crise num reino descapitalizado após as invasões francesas e as guerras liberais levaram D. Maria II a vender o património fundiário das lezírias. É iniciada a orizicultura numa escala reduzida, por ser necessário proceder ao «esgotamento de pântanos no Paul da Comporta» de elevados custos.
Apesar das dificuldades da Companhia, e já após a implantação da República, prosseguem os investimentos, chegam de Inglaterra as máquinas a vapor para o arroteamento do Sado e inicia-se a florestação do pinhal. Os investimentos são marginalizados face à lezíria do Tejo, mas a Companhia «apesar dos lamentos dos accionistas» nunca deixou de distribuir lucro ao longo da agitada conjuntura da 1ª República. Em meados dos anos 20, os assaltos a padarias e a agitação social contra a carestia de vida reflectiam a reiterada recusa de melhorar as condições dos rurais a favor «de melhores dividendos anuais» dos accionistas. Nesse afã «até ao advento do Estado Novo, vender-se-ão vastas extensões das lezírias» e a Comporta é vendida por 3000 contos à inglesa Atlantic Company em 1925.ii
A principal antropização do território natural da Comporta surge nessas primeiras décadas do Estado Novo. A Atlantic Company lança-se na inovação da orizicultura, animada desde 1934 pela política agrícola de Rafael Duque, um “neo-fisiocratismo” na senda da industrialização que procede à «entrega ao capital industrial do controlo das actividades complementares da produção agrícola»iii. As povoações da Comporta, Carrasqueira, Torre e Carvalhal crescem com trabalhadores agrícolas, que aqui chegam para as mondas ou para a construção do «muro da maré», dique com 22 km de comprimento que drena 600ha de sapais. Erguem-se armazéns, oficinas e as casas de alvenaria da administração, em contraste com as barracas de colmo dos que aí se vão fixando vindos de Alcácer do Sal, Santiago do Cacém, Santo André ou acolhendo ranchos temporários de “algarvios”, “ratinhos” e “caramelos”. Como refere o historiador João Madeira «foi à sombra do arroz e da poderosa Atlantic que se fez a Comporta». A herdade conquista terreno após terreno ao Sado e de 430ha em 1925, passam para quase 700 um quarto de século depoisiv.
[1955 – 1975] Espírito Santo
Em 1955 a família Espírito Santo adquire a Comporta à companhia inglesa hipotecada com os investimentos feitos. Prossegue a drenagem do sapal e a conjugação do industrialismo dos anos 50 que, com a actividade financeira, levará ao implemento de toda a cadeia de produção do arroz. Surge a fábrica de descasque e aumenta a massa trabalhadora pelas sete aldeias da herdade: Carrasqueira, Possanco/Cambado, Comporta, Torre, Brejos da Carregueira, Carvalhal e Lagoas/Pego. Concretiza-se o discurso industrialista oficial dos Planos de Fomento de 1953 e inícios dos anos 60, apoiados pelas políticas hidráulicas de obras públicas. Na transformação da paisagem dá-se o aumento em 822% do pinhal iniciado com a Companhia das Lezíriasv.
A evocação desses tempos recorda como a «Comporta foi madrasta para os seus. Sem dó nem piedade cobrava a toda a hora o necessário rendimento. Em tempos, todos viviam em função do trabalho na Herdade da Comporta. O trabalho era duro e a recompensa pobre»vi. Consolidam-se as aldeias, constroem-se três escolas e bairros que substituem as cabanas de colmo por alvenaria para os trabalhadores fixos. Os ranchos sazonais dormem nos armazéns. Os Espírito Santo recordam «o início de um processo de melhoramento da vida da população, que irá acompanhar a gestão da Herdade até hoje»vii. Mas a gestão em tudo se assemelhava a um feudo. Todo o dia-a-dia decorria nos seus limites, pesando sobre quotidiano uma vida controlada, ao ponto de ser relatado que era cobrado quem quisesse casar com alguém fora das suas terras, tal era a dominação social exercidaviii.
Nas cantinas da Herdade era a casa mãe que geria e lucrava com os bens de consumo alimentar e outros. A escola era sol de pouca dura nas curtas infâncias: «geralmente as pessoas começavam a trabalhar quando atingiam a idade de uns 9 anos, às vezes até mais cedo, nuns casos após terem ido à escola primária», recorda o Mestre Chico nas suas memórias. «Era tudo de boca, as pessoas não eram contratadas eram mandadas! Se o patrão gostasse do trabalho ficavam, se não gostasse à noite rua. Se houvesse zaragata, ofensas ao patrão, o gajo chamava logo a guarda»ix. Por outro lado «o padre era muito protegido», pelo que não admira que sejam as recordações do padre Silveira que são resgatadas na componente social do relatório de «sustentabilidade» da Herdade da Comporta de 2006 para falar das colónias de férias das crianças de Alcácer que as famílias das aldeias vinham às portas ver passar para o veraneio.
Como é relatado num ensaio antropológico sobre as «grandes famílias», uma das suas características é precisamente fazer da caridade um modo de vida, funcionando como «o contraponto moral da riqueza». Por esse motivo declarava uma das filhas Espírito Santo que «a primeira medida que o pai tomou depois de ter comprado a Herdade da Comporta foi mandar construir casas (…), escolas e mandou vir professoras primárias (…). A mãe mandou logo trazer um padre para a aldeia, começaram logo a dar catequese e baptizaram toda a gente. Tiveram que lhes ensinar tudo: a comer, a cumprimentar e a vestir-se»x. A gestão dos Espírito Santo define-se entre a exploração e a subserviência laboral e o paternalismo católico, escudada no controle das esferas da administração, do padre, das professoras, da Guarda e dos espaços de lazer. Quando é criado o Clube Recreativo da Comporta é a Herdade que nomeia a direcção da associação.
Por fim, os Espírito Santo tiram proveito dos braços e das esperanças do povo aí nascido. Em 1964 estabelecem uma relação de arrendatários das terras da Comporta: «um plano de entrega de dez hectares a cada família pelos quais estas se tinham de responsabilizar». Esta “benesse” é fruto de uma estratégia do capitalismo agrário que substitui a tradicional relação senhorial terratenente, mas é também uma resposta ao grande êxodo rural alentejano para a margem sul fabril. Mas tinha sobretudo o intuito de beneficiar os trabalhadores permanentes com as terras mais pobres para as reconverter com o seu esforço em terras mais proveitosasxi.
25 de Abril e a distribuição das Parcelas
A revolução de 1974 abriu a possibilidade da inversão do statu quo político do país, mas sobretudo abriu caminho para que as pessoas ousassem moldar o seu território – terra e relações sociais – de forma oposta àquela que toda uma vida lhes fora ditada. Os Espírito Santo são postos fora da Comporta e do país e a Herdade torna-se palco das opções e das dinâmicas que decorrem do processo revolucionário. A questão da terra, da sua posse e uso colectivo é a agenda de uma Reforma Agrária movida pelo controle e gestão estatista (nacionalizações e expropriações), estratégia porém logo abalada pela imediata expressão dos rurais na tomada autogerida das terras. É na esfera da primeira opção da intervenção estatal, e não pela ocupação de terras e a sua colectivização pelos trabalhadores, que a Herdade da Comporta se vai enquadrar, o que decorre em parte pela nacionalização dos bens dos Espírito Santo, pilares da economia do regime derrubado.
Em 1975 a Herdade é nacionalizada, ficando a Atlantic Company com a parte não cultivada. A relação de rendeiros existente na Comporta situou a questão, seja no debate da nova Lei do Arrendamento Rural, seja na disputa pelo posicionamento dos rendeiros pelas forças políticas em jogo na Reforma Agrária. A luta contra o latifúndio resultará essencialmente no ganho de posição dos arrendatários da Herdade. Mas no âmbito das acesas discussões em torno do modelo de propriedade da terra (colectivizada ou privada) e da sua gestão (socializada ou mantendo a matriz do capitalismo agrário), o desenrolar das relações entre o campo destes pequenos e médios agricultores rendeiros e o campo dos trabalhadores agrícolas organizados em torno das Unidades Colectivas de Produção acabará num afastamento entre as partes. Não é pois de estranhar que a partir de 1980 o governo da Aliança Democrática proceda na Herdade da Comporta à “entrega de terras”xii, aquela que é a expressão mais conhecida do processo da Contra-Reforma Agrária de Sá Carneiro visando deliberadamente tirar benefício do fosso aprofundado entre os pequenos agricultores familiares e os trabalhadores agrícolas acantonados nas UCP.
Nesse processo consolidou-se a relação arrendatária de gerações de famílias, tendo como resultado mais relevante permanecerem 90% dos terrenos agrícolas da Herdade com esses pequenos agricultores, com usufruto de cerca de 820ha das boas terras antes geridas directamente pela Herdade. Fernando Oliveira Baptistaxiii, Ministro da Agricultura dos anteriores IV e V Governos Provisórios, é, apesar disso, crítico da distribuição das parcelas. Aponta as limitações do rendimento familiar de cada uma destas explorações “exclusivamente orizícola” que não evitaria «que as famílias agricultoras sejam obrigadas a vender força de trabalho fora da exploração». A crítica assenta numa análise de ordem produtivista, na qual as limitações da exploração individualizada das terras acentuavam-se por não ser considerada uma forma de gestão conjunta do regadio. Quer o olhar crítico, quer as opções tomadas, não procuraram outra perspectiva para o modelo arrendatário (ou de produção agrícola), a não ser a própria continuidade no tipo de relação estabelecida anteriormente de uma agricultura de feição industrial e da maximização produtiva das culturas. Isso implicou que a coordenação na gestão orizícola conjunta se tivesse mantido inalterada e condicionada a uma gestão de larga escala (hidráulica e no processamento do arroz) externa aos rendeiros. Uma situação estrutural que não foi assim rebatida num qualquer novo tipo de gestão colectiva em alternativa (ou sequer concorrente) ao capitalismo agrário que estava estabelecido.
O regresso dos Senhores
Não demorou para que entre 1989 e 1991 devolvessem as terras aos Espírito Santo que, conta-se, pagava na hora a quem atestasse por escrito serem eles os donos daquilo tudo. A família levará a cabo uma restruturação no processo do descasque do arroz, deslocando-o para fora da aldeia e com a diminuição drástica da mão-de-obra e consequente impacto nas relações de trabalhoxiv. A antiga fábrica virará restaurante museu e até a antiga igreja vira balcão bancário do BES.
A economia e a vida agrária conhecem novas regras com a entrada na CEE e nos anos 90 com a Política Agrícola Comum. Firma-se a morte dos campos em nome da crescente dependência alimentar externa. É nesse quadro que em 1991 os Espírito Santo regressam com uma nova perspectiva para o território: um «Projecto Global de Desenvolvimento Integrado» com a «valorização e requalificação do património natural, urbanístico e agrícola». A indústria turística. De imediato vendem cerca de 3000ha a familiares e amigos, aumentando a aposta no ramo imobiliário apenso umbilicalmente ao turismo.
Sucede-se toda uma reorganização empresarial no Grupo Espírito Santo (GES). Em 2003 a Herdade passa a designar-se “Herdade da Comporta, Actividades Agro-silvícolas e Turísticas” e em Fevereiro de 2004 a Atlantic Company põe termo aos seus 90 anos de existência. O GES, desde 1994 com Carlos Manuel Espírito Santo Beirão da Veiga à frente da Comporta, surge agora na imobiliária Atlantic Company (Portugal) – Turismo e Urbanização (criada em 1988) e na Atlantic Meals S.A.. Esta é uma associação entre o GES e a Portalimpex-Certejo (da orizicultura do Sorraia após o desaparecimento das cooperativas agrícolas) que terá desde 2010 como parceira a Monte da Barca. Mantém a produção agro-florestal (1100ha de arrozais e 7100ha florestais), o Vinho da Comporta, alguma horticultura e viveiros para a plantação de relvados. Mas o Projecto Global da Comporta tem os pilares em diversos fundos de investimento imobiliário que em 2013 correspondem aos activos imobiliários das áreas de Desenvolvimento Turístico da Comporta (ADT2, Comporta), Comporta Dunes (ADT3, Carvalhal), Aldeamento da Área Turística de Lagoas, Loteamentos Casas da Encosta (C12, C13 em Carvalhal-Lagoas) e Loteamentos no Possanco.
Comporta: um território Resort
O novo território delineado nos anos 90 ganha plena expressão na primeira década do século XXI. Como já tivemos ocasião de referir no Jornal MAPAxv, a Comporta junto com a Troia da Sonae é a ponta de lança da visão oficial do desenvolvimento para o Alentejo: um território de vocação turísticaxvi.
A Comporta tornar-se-á o cenário por excelência do regabofe BES que continua a defraudar o erário público. Um embuste que assentou nesse processo de “desenvolvimento” em marcha que transforma o Alentejo em “território resort”. As baixas densidades populacionais e o desemprego continuam a querer justificar na política nacional e local a excessiva ou total dependência do turismo. O peso da restauração na Comporta é disso exemplo quando somado ao quadro envelhecido dos agricultores. E a profunda transformação deste território observa-se no seu tecido social, ou nos novos padrões com que são agora tecidos a antiga relação de servidão entre criados e grandes famílias. Do antagonismo dos trabalhadores rurais com os senhores da Herdade, passamos para a clivagem entre as populações e os novos ranchos jet set de turistas e novos ricos que “descobrem” a Comporta.
Um testemunho local em 2010 não deixava sombra para dúvidas sobre a clivagem social que se operava: «A cultura é coisa que tem raízes e história, não é uma visão importada por um “chique” que a viu algures numa das suas viagens patrocinadas por um qualquer cartão (visa). Ser comportense começa a parecer ser uma espécie rara, à semelhança dos algarvios nas décadas de 70 e 80 do século passado. (…) Se recuarmos uma década para trás, conseguimos lembrar-nos dos postos de trabalho que se extinguiram em nome do progresso. O mesmo progresso que é lucrativo para uma minoria e está a deslocar para longe a maioria (os netos e filhos) daqueles que desbravaram e ergueram a pulso esta terra chamada Herdade da Comporta”xvii. O “Projecto Global de Desenvolvimento Integrado” da Comporta levou à substituição de uma boa parte do sector primário pela hotelaria, comércio e restauração. A administração local aplaudindo, numa relação de subserviência tal como antes às mãos dos Espírito Santo.
Orlando Ribeiro descrevia como as antigas aldeias alentejanas «foram crescendo, ávidas de terra, afogadas no latifúndio, servindo-o com a sua população de ganhões ou trabalhadores assalariados». A apropriação do espaço envolvente – do território – levou essa população no 25 de Abril, como refere Oliveira Baptista, a vencer «no espaço social das aldeias e das vilas»: «Retomaram-se estradas e caminhos tradicionais que os grandes domínios haviam fechado arbitrariamente. Abriram-se logradouros, fez-se recuar o limite dos campos cultivados e alargaram-se assim as áreas onde as gentes viviam o quotidiano»xviii. O que se passa na Comporta é precisamente a inversão dessas conquistas, em que o processo de transformação turística do território passa pela asfixia do espaço social conquistado.
Com os investimentos imobiliários, chega uma vaga de vedações, cancelas, câmaras de vigilância, cartões de acesso limitado, avisos, proibições e penalizações por todo o lado. Em 2011 o “caminho da madame”, como é conhecido na Comporta, foi um dos primeiros caminhos para as praias a ser encerrado. A reacção oscilou entre o queixume servil («pois nós os habitantes desta terra e desta Herdade sempre soubemos ocupar o nosso lugar») e a embirração pelos de fora, esses «descobridores dos anos 90 [que] quando chegaram à Comporta não deram pela falta de uma ETAR, para ajudar a tratar a merda que vieram fazer»xix. A revolta com a situação soa mais a resignação do que a outra coisa, ainda que cresça a revolta nas vozes ligadas sobretudo ao Bloco de Esquerdaxx.
Em 2013, a tirada de Cristina Espírito Santo de vir para a Comporta para «brincar aos pobrezinhos», trouxe a lume a atitude desde há muito notada pelos habitantes. Já em 2010 as elites e as “pessoas de bem” eram retratadas tratando «as crianças e animais por você e os empregados por “tu”»xxi. Na terra «onde as tradicionais casas de colmo chegam ao mercado a preços entre 160 a 300 mil euros (…), depois da história dos “pobrezinhos” passou a dizer-se que «o colmo no verão arde melhor»xxii. Um confronto surdo abafado por uma imprensa servil da enorme operação de marketing e imobiliária da Comporta. Esta anuncia antes o destino “eco chic” descrito pelo New York Times como o próximo hit de férias, onde desfilam títulos e vaidades desde que se tornou terra dos Espírito Santo há 60 anos: de Américo Thomaz que aí caçava, passando pelo rei Juan Carlos, até às linhagens plebeias ou nobres de Sarkozy e Carla Bruni, à realeza da Jordânia, do Mónaco, etc., e sendo um claro ponto de encontro de todos os grandes nomes da finança, seguindo as pegadas dos banqueiros Rothschild e Rockefeller que aqui chegaram logo nos anos 50.
Por tudo isto, fiel à tradição das grandes famílias, é criada em 2004 a Fundação Herdade da Comporta, não fosse a já referida caridade e as obras públicas os meios tradicionais por excelência na sociedade portuguesa de combate às crises de trabalho e de conflituosidade social. Em Setembro de 2011 apresenta um Projecto Social visando a colaboração com várias entidades para regularizar as habitações da Herdade «onde vivem atualmente famílias carenciadas em regime de comodato e/ou ex-trabalhadores da Herdade e seus descendentes». Mas as dificuldades na regularização das casas de gerações tornam claro o objectivo de afastá-las da Comporta. Casos de Leonilde e José Maria dos Brejos da Carregueira, a quem o jornal i dava voz em Agosto de 2014. Casal idoso a viver a reforma na sua casa construída quando eram centenas as famílias vizinhas. Hoje sobram quatro, a quem a Herdade da Comporta entregou um cartão para abrir a cancela com videovigilância. «Vivem lado a lado com retiros luxososos, sabem que os querem expulsar dali». Já em 2015 é tornado público que nos Brejos da Carregueira, 1945m2 de casas da família Espírito Santo, incluindo a de Carlos Beirão da Veiga, foram construídas sem licenças. Mas pese as evidências, mais frequente continua a ser a vassalagem: «eles oferecerem trabalho à gente e nós sustentarmos as famílias, que foi sempre o que aqui aconteceu. Eles tinham aí projetos bons, e isso era importante por causa do emprego, mas agora parou tudo»xxiii.
A queda dos Espírito Santo
2014 ficou na história como o ano da queda da família Espírito Santo. A Comporta tropeça no Projecto Global do Grupo Espírito Santo (GES), cujos passos trocados na complexa rede de activos e de entidades financeiras perdem a capacidade de iludir, levando ao seu desmoronamento. Nesse emaranhado da teia Espírito Santo, a Herdade da Comporta agregava-se à Rio Forte, controlada pela Espírito Santo International, sociedade da cúpula do GES. A Rio Forte actuava a nível mundial no campo do turismo, imobiliário, agro-pecuária e no mercado petrolífero e energético. Criada em 2009 no Luxemburgo, é declarada insolvente em 2014. É aqui que entra a Comporta como um dos activos mais cobiçados, num processo de que pouco se sabe. A participação do Áman Resorts, diz-se, transitou para enigmáticos fundos russosxxiv, mas as obras do Hotel e do Resort com golf (cuja despesa diária custaria mais de 3000€xxv) pararam quando ecoavam ainda os elogios feitos um ano antes por Paulo Portas ao «maior investimento turístico da década» ou o prognóstico de Álvaro Santos Pereira sobre o «primeiro projecto turístico do pós-crise».
As promessas de desenvolvimento eram um nado-morto, como declarou à Comissão de Inquérito do caso BES em Janeiro de 2015 o presidente executivo da Rioforte, João Rodrigues Pena, que disse acreditar que a empresa estava «infelizmente condenada desde o começo». Em finais de 2014 os ativos da Comporta estariam avaliados em 140 milhões, e é-lhe mesmo feita a oferta de 400 milhões, recusada por Beirão da Veigaxxvi. Até que em Maio de 2015 a Procuradoria-Geral da República determina o arresto da Comporta, dos bens das pessoas e empresas ligadas ao “universo Espírito Santo”, cujo processo judicial prossegue. É suspensa a venda anunciada da Comporta pelos liquidatários da Rio Forte no Luxemburgo, numa altura em que os jornais falavam do interesse de grupos americanos, chineses, finlandeses e brasileiros, do Reino Unido e de outros países europeus.
O ambiente que hoje se vive na Comporta é de apreensão. Há um pensamento que não dá descanso aos cerca de 3000 habitantes da Herdade: “O que será a Comporta sem eles?”. Um questionar de hábito amestrado e enraizado, como bem o expressa a desorientada Junta de Freguesia. Mas há também o questionar revoltado que ecoa sobretudo pelos cerca de 200 rendeiros que restam. Estes voltam a colocar na ordem do dia o direito a decidir o destino do território numa incerteza, porém, consumida pela sua própria condição arrendatária e pela incerteza quanto à renovação dos contratos a ter lugar entre 2016 e 2018 com os futuros proprietáriosxxvii. Francisco Jones é uma das vozes que alerta para o «problema social de consequências imprevisíveis» que se avizinha pois «se eles não quiserem renovar os contratos é porque não querem aqui agricultura nenhuma, só querem casas e espaços verdes. E isso não, a gente não come casas».xxviii
Na verdade, a marca Comporta não assistiu a uma diminuição da procura imobiliária em busca do local “snob et sauvage” como é conhecida. Veiga Beirão e os demais Espírito Santo apenas procurarão atravessar as adversidades judiciais em curso, mantendo o rumo o resort com novos actores. Mas por agora são as rendas dos concessionários e dos agricultores que pagam os 20 dos outrora 50 empregados da Herdade da Comportaxxix. A construção civil e o imobiliário ressentiu-se e a Comporta volta a investir na agricultura em 2016 com o projeto Hortícola da Herdade da Comportaxxx, com a conversão de áreas florestais (pinhal e eucaliptal) em produção hortícola de regadio em 965haxxxi. Na hora do aperto parece querer-se apontar à opção óbvia. Mas para rendeiros e para a Associação de Agricultores de Setúbal essa solução era já bastante clara. Como referiam em 2013, o prisma seria: «acabar com o mito sobre o futuro da agricultura passar pelos grandes produtores». Isto é «virar as políticas agrícolas aos mais pequenos e à agricultura familiar, que representam a maior parte das explorações agrícolas no país»xxxii. Na Comporta estas ocupam grande parte dos terrenos agrícolas da Herdade sob a labuta de gente sulcada na idade como nos percalços da agricultura da região. Ainda persistem teimosamente em não render-se ao desígnio turístico, afinal não tão divino assim como o Espírito Santo, que foi imposto à sua terra e ao seu território.
Fotos de Lana Almeida
i Duarte, A. (2006) “Memórias do arroz contributos para a programação de um museu na comporta” Revista da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas,18, Colibri: http://goo.gl/1nOkEQ
ii Madaleno, I. M. (2006) “Companhia das Lezírias – O passado e o presente” Hispania Nova. Revista de Historia Contemporánea, 6: http://goo.gl/qvlz4w
iii Piçarra, C. (2008) “As Ocupações de Terras no Distrito de Beja 1974-1975” Edições Almedina
iv http://goo.gl/4Vgplk
v “Herdade da Comporta – Documentos de Sustentabilidade”(2006):http://goo.gl/TbyHXw
vi http://maiscomporta.blogspot.pt/ (2008-2013)
vii http://goo.gl/TbyHXw
viii http://goo.gl/qbqLMr
ix Ao Blog Mais Comporta em 2010
x Lima, M. A. P. de (1999) “Grandes Famílias Grandes Empresas. Ensaio antropológico sobre uma elite de Lisboa”, ISCTE (tese)
xi Dos 15,1 mil ha da Herdade, nas vésperas do 25 de Abril, «1100 há são de regadio (arroz) e repartem-se por 100 hectares de “terras fracas, turfosas, dispersas”, cuja exploração era efectuada por centena e meia de pequenos rendeiros, e mil hectares de boas terras dos quais a companhia, à data da nacionalização, arrendava 60 ha e cultivava 940 ha directamente»: Baptista, F.O. (2010) “Alentejo, a questão da terra”, Castro Verde.
xii Em 1981 são desanexadas ainda partes urbanas da Herdade a favor dos Municípios de Grândola e Alcácer do Sal.
xiii Na Comporta «o critério seguido para a distribuição de terras – as mulheres recebem metade dos homens – levou à seguinte repartição em termos esquemáticos e genéricos: 42 explorações com área média de 9,15 há, correspondendo à situação de tanto o homem como a mulher serem trabalhadores permanentes; 56 explorações com 6,15 há (média) e 31 com 3,00 (idem) correspondendo, respectivamente, a trabalhadores permanentes, homens e mulheres. Deve-se notar que para além destas áreas (…) a maioria dos trabalhadores dispunha já de pequenas parcelas quase sempre inferiores a 1 há que cultivava como horta familiar»: Baptista, 2010.
xiv Duarte, 2006
xv http://goo.gl/H3JfxB
xvi A escolha de Manuel Pinho, Ministro da Economia e Inovação de Sócrates (2005/2009), à candidatura nacional da Comporta à competição mundial de golf, Ryder Cup de 2018, quando ainda parte dos campos de golf se construíam, é um episódio ilustrativo de como o GES voltara, depois de décadas com Salazar, a ocupar a cadeira do poder económico e político. Manuel Pinho era o Ministro que viera das administrações do BES, o mesmo que dera à Comporta as facilidades dos projectos PIN, o mesmo que baixara o IVA do golf para 6%. Por fim o mesmo que irá regressar ao BES para receber em 2013 um salário mensal bruto de 39 mil euros e que com a queda do BES em 2014 instaura um processo judicial contra o BES para receber a reforma antecipada que lhe terá sido prometida por Ricardo Salgado num valor superior a dois milhões de euros.
xvii A Metamorfose dos Parasitas de C.L.C em Comporta-Opina em 24.08.2010: http://goo.gl/Ckgqly
xviii Baptista, 2010
xx O Bloco de esquerda questionara o autarca de Alcácer do Sal em Fevereiro 2010: «Nós não pedimos para apostar no turismo, não pedimos para aprovarem aldeamentos turísticos e apart-hoteis que nada têm a ver com a nossa terra. Nós não pedimos para transformarem o nosso rio e os arrozais (que sustentaram várias famílias) numa suposta marina (que dizem que irá até ao Carvalhal). Nós não temos culpa dos erros dos outros e apenas pedimos uma oportunidade de adquirir um terreno a um preço acessível para podermos morar na terra que nos viu crescer. Sempre vivemos aqui, sempre cá estivemos, porque temos que sofrer as consequências dos erros dos outros?»: http://goo.gl/SKtykk
xxii http://goo.gl/KS2i4V
xxiii Observador: Agosto de 2014
xxiv http://goo.gl/gqlHPU
xxv Visão: 6.8.2015
xxvi Idem
xxvii O acosso à produções dos rendeiros começara anos antes. Em 2002, para não recuarmos mais, foram sucessivas o protesto para exigir o pagamento da produção de arroz pelo preço de intervenção estabelecido pela União Europeia, face às propostas menores da Atlantic Company. Sem secadores e silos próprios a Comissão de Rendeiros da Comporta declarava-se “nas mãos dos industriais”. A partir desse ano a Associação dos Agricultores de Setúbal (AADS), obtêm a cedência do Centro de Secagem da extinta EPAC em Alcácer do Sal, porém em Fevereiro de 2012 – com as obras dos resorts em grande – é anunciada a venda destes centros de secagem. Travada a venda e o controle da APARROZ – Agrupamento de Produtores de Arroz do Vale do Sado, que a AADS acusa de “defender e acautelar os interesses de um punhado de abastadas famílias”. Também em Março de 2010 os rendeiros encaminham os tractores para a zona onde estava a decorrer as provas internacionais hípicas do Atlantic-Tour 2010, obrigados a voltar para trás pela GNR. Em causa a recusa em manter os contratos de arrendamento rural com centenas de rendeiros, pretendendo fazer contratos de campanha, não tendo permitido a renovação automática dos arrendamentos.
xxviii Declarações à Visão: 6.8.2015 e à Lusa em Maio de 2015.
xxix Visão: 6.8.2015
xxx A Atlantic Meals saíra às portas da implosão da Comporta em Julho de 2014, passando a Monte da Barca a ser a única accionista.
xxxi http://goo.gl/FZUFM1
xxxii declarações de Avelino Antunes da AADS: https://goo.gl/RVlVOR