A extorsão legalizada

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Dirigi-me, não inocentemente, a um bar de um amigo na margem sul do Tejo e acabei por ter uma muito boa conversa sobre tudo isso que tanto se fala em todos os estabelecimentos comerciais desse Portugal fora: turismo, facturas, ASAE, impostos e cobranças. Para Arménio Rocha, nome fictício, estas questões estavam todas à flor da pele. Contou-me, então, que o sector da hotelaria, em Portugal, atravessa uma reformulação. Em geral, interessava-lhe descrever o contexto em que esta reformulação tem lugar. Segundo as suas palavras, trata-se de «tornar Portugal num grande Resort turístico para ricos e dominado pelas grandes empresas”. A razão desta reformulação, através da entrada em vigor de novas leis, novas taxas e novos procedimentos, prende-se com a crescente importância deste sector, já que no futuro ocupará uma grande parte da economia nacional. O empresário acrescenta ainda que «há uma necessidade de reformular todas estas actividades que decorrem ou têm uma relação directa com o turismo no sentido de favorecer o Estado e alguns intermediários sanguessugas». O objectivo, para já, é definir as bases em que nos próximos anos se desenvolverão as actividades hoteleiras em Portugal. Aponta então alguns exemplos: «Por um lado surgem modernas escolas de hotelaria em vários locais e, por outro, nascem empresas de implementação de HACCP (sigla, em inglês, para Análise de Perigos e Pontos Críticos de Controle) tipo cogumelos. Este código de conduta e boas praticas de higiene e segurança alimentar, aparentemente inocente, é um sistema desenvolvido pela NASA para a segurança dos astronautas no espaço, ou seja, para baixar o risco de contaminação até zero para uma pessoa que se encontra a milhares de quilómetros da Terra. O que a ASAE faz é aparecer nos cafés e restaurantes a pensar que está numa nave espacial para controlar este sistema. Isto cria um círculo vicioso entre a criação de empresas especializadas na implementação deste sistema e a fiscalização efectuada pela ASAE. Por um lado, vá de pagar às empresas privadas para instalar o sistema que do outro lado nos vão dizer que está mal instalado para assim cobrarem multas». Os desígnios de tornar Portugal num paraíso turístico traduzem-se numa estandardização da actividade hoteleira, ou seja, numa pré-definição do que se deve vender a um turista que venha a Portugal. Para além disso, essa uniformização de procedimentos alimenta a actividade de entidades paralelas do Estado que geram riqueza a partir da formação, taxação e da cobrança de multas e impostos. Neste contexto, Arménio diz que «Não existe nenhum problema em servir às mesas, tirar imperiais, lavar pratos e fazer camas. O problema surge quando essas são as únicas actividades que nos restam para fazer e, para além disso, sujeitam-se à existência de regras predeterminadas, à subserviência e à hierarquia rígida. Estes princípios são aqueles que são ensinados dentro do mundo da hotelaria e, especialmente, nas escolas de hotelaria… e é um problema também que, hoje em dia, a única coisa importante é formar mão-de-obra barata para alimentar toda esta indústria».

O Estado tem um grande interesse na hotelaria por ser este um sector que tem mais potencial para gerar grandes receitas. «É tipo máfia, essencialmente as Câmaras Municipais, as representações locais do Estado a nível fiscal, a própria polícia e até entidades privadas como a SPA (Sociedade Portuguesa de Autores) e a passmusica (empresa cobradora dos direitos conexos), juntam-se com o objectivo de obter a maior parte possível dos lucros da actividade hoteleira, movimentando-se, muitas das vezes, em zonas cinzentas da lei. Mas no entanto somos sempre nós que somos considerados culpados até ser provada a inocência”.

Para muitos pequenos negócios, não existe nenhuma benesse passando a existir apenas deveres. Assim, põe-se em risco a sobrevivência da grande maioria destes pequenos negócios, em detrimento das grandes empresas, que passam a poder ocupar todo o espaço.

Uma das transformações verificadas na hotelaria recentemente, tem que ver com o método de facturação e as medidas de controlo a que esta está sujeita. Arménio clarifica-nos mais uma vez: «Com a necessidade que este governo (e todos os outros que lhe seguirem) tem de suprimir os buracos dos milhões de euros que se verificam nas contas públicas, resolveram recorrer ao ramo da hotelaria, por ser um ramo que, tal como em muitos outros, se regista fuga ao fisco». A questão está nas verdadeiras intenções destas medidas. «O valor dessa fuga não se aproxima minimamente do valor dos buracos, e ao aplicarem um controlo tão cerrado, em termos de leis e taxação sobre este sector, querem, na verdade, poder taxar o dinheiro que é realmente declarado, ou seja, os lucros dos pequenos empresários para poder tapar o buraco dos milhões de euros que os bancos e os políticos nos roubaram”.
O objectivo geral é assegurar, desde já, um controlo total sobre o volume de negócios esperado no futuro, quando se estabelecer de forma hegemónica a indústria do turismo sobre as outras actividades económicas, para então os bancos, o Estado e as entidades paralelas de cobrança conseguirem facturar quantidades muito maiores do que aquelas que actualmente facturam
Arménio troca-nos por miúdos este novo sistema de facturação: «Nesta primeira fase do novo sistema, por cada produto vendido num estabelecimento é necessário a recolha de um número de contribuinte e do nome do cliente que será posteriormente introduzido num ficheiro electrónico. Esse ficheiro tem de ser criado por um software certificado pelo Ministério das Finanças e é registado nas bases de dados das finanças. A partir dessa base de dados, vê-se o tipo de produtos que as pessoas consomem, quem consome, a que horas consome, quanto pagou, como pagou, quanto recebeu de troco e que gorjeta deixou». Acrescenta ainda que «isto é uma tentativa brutal de controlo social sobre as pessoas».

Mas não é tudo ainda. O plano total consiste em ligar cada máquina registadora nos estabelecimentos, através da Internet, ao computador do Ministério das Finanças, para assim cada venda ser registada automaticamente, ou seja, em tempo real. «…É uma espécie de i-Salazar, um Estado Novo high-tech».

«A partir de agora eu sou sempre responsável por pedir o número de contribuinte e dar a factura ao cliente, mas não sou responsável pelo cliente não me dar o número de contribuinte dele nem recusar a factura. Se ele recusa, eu ponho a factura no lixo, mas eu sou obrigado a este procedimento (…). É ridículo… mas pronto… na prática somos nós todos, que aqui vamos ficar no futuro, que teremos de decidir se aceitamos, ou não, este futuro de merda. Se isto se tiver de reflectir em que as pessoas, de facto, se recusem a dar o seu número de contribuinte ou que dêem o número de contribuinte dos ministros, então que seja, mas espero que a coisa vá muito mais longe que uma batalha por facturas».

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