A ilusão da avaliação ambiental
De há um ano para cá foi efectuada uma ampla revisão da legislação ambiental portuguesa. À margem de qualquer debate, o novo quadro legal parece obedecer somente à agilização dos licenciamentos económicos ligados à indústria e ao turismo. A ocasião pede que avaliemos, afinal, o que é isso de Avaliação Ambiental.
No seu percurso de mais de duas décadas, a chamada Avaliação de Impacto Ambiental (AIA) 1, determinou a um conjunto de obras públicas e privadas, por motivos ambientais, culturais e de ordenamento territorial, todo um conjunto de procedimentos que passam pelos Estudos de Impacto Ambiental (EIA) – a apresentação técnica de todos os impactos significativos dos projectos, negativos ou positivos, e das medidas de minimização – à sua análise por uma Comissão (nomeadas pela Agência Portuguesa do Ambiente ou pelas CCDR, Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional), que emite sob despacho governamental uma Declaração de Impacto Ambiental (DIA), a qual ora é favorável, favorável condicionada ou desfavorável. Prevista está ainda uma fiscalização no âmbito de processos de pós-avaliação às medidas impostas, o que nunca ou muito raramente acontece.
Estes processos envolvem um rol de especialidades técnicas (da biologia, arqueologia à sociologia, engenharias, etc.) resultando numa ferramenta que legitima os empreendimentos em causa e que, sobretudo, pretende mediar e justificar esses projectos perante as populações através de um proclamado processo de participação pública. Uma etapa burocrática num momento em que os estudos estão concluídos e nada volta atrás a não ser no campo das medidas mitigadoras. Uma participação limitada, em jeito de pró-forma em que apenas entidades providas da mesma linguagem e engrenagem técnica acabam por participar, nas ténues fronteiras de uma dita consulta pública. Em Junho de 2013, a Quercus apontava a enorme dificuldade dessa participação “já que, das seis entidades que conduzem o processo administrativo [a APA e as CCDR] (…), apenas três disponibilizam toda a documentação necessária à participação responsável por parte dos cidadãos” 2.
A avaliação, definida como “instrumento de carácter preventivo da política do ambiente” deve antes ser lida como “de carácter preventivo da política”. Às objecções ambientais ou às resistências populares a determinados projectos, a AIA acaba sempre por justificar tecnicamente esta ou aquela opção e “minimizar” como um hábito paliativo o que é negativo 3. Tamanha mediação não acalmou, porém, o “empreendedor económico” e cedo foi o mesmo aliviado de questões ambientais ou dos trâmites públicos que se via obrigado a custear. Nascem com José Sócrates em 2005 os PIN – Projectos de Interesse Nacional – uma via verde no licenciamento ambiental; e em 2007 surge a Avaliação Ambiental Estratégica (AAE) de planos e programas que permitiu atalhar a implementação de projectos.
Instituída como um mero “aval” ambiental, a AIA vê-se reduzida e imersa na lógica burocrática do papel e do carimbo: feitas “as contas”, o único e assumido mal a ultrapassar em nome da agilização económica. O que importa é a celeridade dos processos, pressa, muita pressa, não vá alguém reparar o que está para lá da cortina. Esquecida sempre esteve qualquer ponderação ambiental, se esta não servir à imagem verde empresarial, ao marketing da “sustentabilidade” ou aos ganhos da “gestão ambiental”.
Foi nesse sentido que, no início de 2014 4, o advogado e professor universitário em matéria de legislação ambiental, João Pereira Reis, manifestou a sua satisfação com o novo quadro legal da AIA, promulgado em Novembro de 2013. Em suma, o novo regime de AIA introduz a diminuição dos prazos e uma revisão dos limites – agora mais folgados – das indústrias e infraestruturas sujeitas a avaliação. Já em Agosto do ano passado 5 João Pereira Reis fazia votos de uma revisão em matéria de planos de ordenamento territorial, os quais deveriam “aligeirar os procedimentos e os conteúdos materiais e documentais”, “tornando este «instrumento» mais consentâneo com os tempos de austeridade que actualmente vivemos e mais “amigo” do investimento privado”, referindo-se nomeadamente ao sector turístico. Na nova AIA os seus anseios foram escutados, pois apesar se tratar de avaliação, esse processo pode decorrer em simultâneo com o procedimento de licenciamento da construção/instalação do empreendimento. Mais ainda, face às “limitações” dos planos de ordenamento territorial (o que levou a muitas alterações de PDM ou planos de urbanização ou de pormenor), a nova lei permite agora que “a desconformidade do projecto com os instrumentos de gestão territorial aplicáveis não condiciona o sentido de decisão da DIA”, ou seja, que a força de lei seja moldada a um qualquer projecto. E, se tal não for suficiente, outra novidade é anunciada: a “entidade acreditada”, figura de natureza privada que poderá vir a substituir incumbências da administração pública, como na certificação da conformidade do EIA. Se actualmente nenhuma empresa que elabora EIA os faz em sentido contrário ao seu cliente, no mesmo sentido a criação de entidades privadas facilitará ainda mais a certificação desses interesses…
E, exemplificando, destaque-se a forma como o Plano Estratégico Nacional para o Turismo, no período 2013-2015 (PENT), aprovado em Abril de 2013 e que previa precisamente a “simplificação de processos e a redução de custos”, se cruza tão afavelmente com o novo regime jurídico de AIA, em mais uma demonstração de Portugal como um território-cheque em branco aos investimentos turístico-imobiliários sem freio. Desta feita, no cenário geral de uma diminuição do número de projectos submetidos a AIA, os aldeamentos turísticos com área igual ou superior a 5 hectares, que até aqui estavam sujeitos a AIA, passam agora para a fasquia de 10 hectares, o mesmo sucedendo com os estabelecimentos hoteleiros, que passam de 200 para 300 camas.
Todo o processo de Avaliação Ambiental será, pois, no mínimo um jogo de faz-de-conta. Mas é mais do que isso: reflecte a forma pós-moderna de fazer politica e gerir os territórios e a natureza. Nenhum decisor politico e empreendedor económico –passe os eufemismos – dispensa as “boas informações técnicas” e a chancela ambiental indispensável no seio do catastrofismo de um fim de ciclo capitalista em modo de reinício. Se essa percepção é hoje mais evidente sob o cair da máscara da política representativa, resta ainda a máscara da representatividade da decisão técnica, da avaliação técnica – dos doutores e engenheiros – que a generalidade da população não dispensa. A mera delegação neste corpo técnico, e logo nos promotores que custeiam os processos de AIA, distancia-nos de igual forma, ou ainda mais, das tomadas de decisão e do nosso território. Por acréscimo, igual noção deveria ter quem um dia estuda o encanto do ambiente e dos seus valores, para depois ir a soldo justificar o seu desaparecimento.
Notes:
- http://goo.gl/1TQfYX ↩
- http://goo.gl/3pYpCX ↩
- Consultado o histórico da APA, entre 1995 e 2012 foram emitidas 77 declarações a reformular, 106 desfavoráveis, 3 favoráveis e 1060 favoráveis condicionadas. ↩
- http://goo.gl/yy874y ↩
- http://goo.gl/HDOdSF ↩