Os ventos ocultos da energia eólica
1‒ Breve história das turbinas eólicas
O aproveitamento da energia eólica remonta aos primórdios da humanidade, mas só no final do século XX se tornou, para o vigente sistema económico, competitivo como forma de produzir electricidade 1.
A partir de 1995 e até ao corrente ano de 2014 2 deu-se a instalação maciça de aproveitamentos eólicos devido à conjugação, por um lado, do aumento do consumo energético com o esgotamento dos combustíveis fósseis e consequente aumento do preço da energia, e, por outro, da consciencialização para as alterações climáticas materializada no Protocolo de Quioto, que determina limites para as emissões de gases com efeito de estufa. Este cenário favoreceu os recentes desenvolvimentos e a expansão dos parques eólicos, que hoje já pesam 10% na electricidade europeia 3, estimando-se que venham a pesar 20% em 2030.
A maioria destes empreendimentos está localizada nas cumeadas florestais. Juntam-se aqui as condições ideais: baixo valor monetário dos terrenos, vento abundante e afastamento das populações. Mas, em contrapartida, altera-se a paisagem natural para um cenário industrializado e invadem-se os últimos redutos da vida selvagem. A avifauna mais ameaçada, como as águias, grifos, corvos, cegonhas ou morcegos, fica particularmente exposta a este perigo inusitado.
Segundo inúmeros estudos de monitorização, as turbinas eólicas são comprovadamente nefastas para os habitats protegidos. Está demonstrado que a mortandade é uma consequência de as turbinas serem colocadas nos habitats avifaunísticos de nidificação, repouso, caça ou como barreira nas rotas habituais. Como os cumes das serras já eram irresistíveis para os empresários e políticos, a investigação académica 4 e a indústria 5 reforçaram esta tendência. A pesquisa e o desenvolvimento de soluções fora-de-costa têm provocado problemas ainda mais graves 6 e as soluções tendentes à implantação de eólicas em ambientes industriais ou de baixa pressão urbana não passam de pequenos devaneios de ordem estética 7. No entanto, estas seriam as localizações mais adequadas, tendo em conta os impactos geológicos e geomorfológico nos recursos hídricos, na ocupação e capacidade de uso do solo, na flora, fauna e biótopos, na paisagem, no ambiente sonoro, sem incumprir os instrumentos de ordenamento territorial nem destruir o património e, de maneira geral, sem aumentar a pegada humana no planeta.
E assim se chegou à situação actual: os aerogeradores parecem uma boa ideia e são apontados como tendo o mais curto retorno da energia despendida e o menor impacto ambiental 8 face a qualquer outra opção. No entanto, a sua implementação tem-se revelado desastrosa para a natureza: mortandade directa da avifauna por choque ou por barotrauma (hemorragias internas provocadas pelas ondas de pressão), efeito barreira, perda e fragmentação de habitats, alteração dos padrões migratórios, redução do número de aves, diminuição da reprodução, maior intrusão humana com impactos na fauna e flora e impactos cumulativos das suas linhas de alta tensão 9.
2 ‒ A situação de ilegalidade actual
Avisa-se desde já que estamos a entrar num território sem lei. Em primeiro lugar, por estarmos a falar da mudança do paradigma energético de base fóssil para o renovável, ou seja, o fim do motor de combustão e a emergência do rotor elétrico 10. Além disso, até agora não se impunha discutir o direito de propriedade do vento ou do sol. Mas a partir do momento em que estes se tornam bens valorizados, passa a haver discussão sobre a sua posse. Esta mudança levanta questões legais imprevistas, por onde circulam os poderosos grupos do sector energético.
Este é o cenário global, mas há uma grande diferença entre o caso norte-americano e o europeu. Nos Estados Unidos da América a propriedade dos recursos naturais é, por norma, atribuída ao dono dos terrenos, ao passo que na Europa é o Estado que habitualmente detém a posse sobre os recursos naturais. Esta é a principal causa apontada para que a rejeição dos empreendimentos eólicos seja mais acentuada na Europa, onde já existem mais de 600 pequenos grupos de oposição, que crescem dia após dia 11.
Na Europa, ainda assim, existem algumas diferenças de país para país 12. Na costa norte da Alemanha, desde os anos 80 promove-se a energia eólica recorrendo a projectos privados, cívicos e cooperativos que remuneram os próprios habitantes dos locais afectados. Neste caso, foi o resto do país que reagiu contra a densa paisagem energética, falando-se de «loucura eólica», como noticiou o semanário Der Spiegel.
Em Portugal é o Estado que centraliza as decisões. A promoção das energias renováveis derivou sempre da cúpula do poder, especialmente em 2005 (Resolução do Conselho de Ministros nº 169/2005), ano em que se determinou a aposta fundamental na energia eólica. Os concursos públicos trazem decisões previamente detalhadas e isso transformou os estudos de impacto ambiental em meros instrumentos políticos 13. Desde o início da corrida ao vento, em mais de 200 casos só 5 projectos foram travados por questões ambientais. Os estudos de monitorização ficam abaixo do exigível. As medidas de mitigação, quando existem, são irrisórias. A Avaliação Ambiental Estratégica está inquinada pelas mesmas orientações 14.
Em todos estes casos existe sempre o mesmo binómio entre quem promove e quem se sente prejudicado com a decisão. Os urbanistas chamam-lhe ironicamente «fenómeno NIMBY (Not in my backyard)», reacção de oposição às obras públicas com benefícios difusos e prejuízos locais. Este fenómeno pode ser ligeiro, moderado ou arrastar-se nos tribunais durante anos. Pode ter uma base de desconfiança, de ignorância, de justiça, de egoísmo ou uma mistura personalizada destes vários aspectos. As turbinas eólicas repetiram este clássico fenómeno reactivo, acentuado pela falta de informação ou diálogo e pela pressa com que tudo tem sido feito. Assim, à medida que a energia eólica ganha terreno, é natural que cresça a contestação, pois a paisagem é fruto de um processo social aberto ao desenvolvimento e cruzamento de pontos de vista, locais e distantes, de pessoas e instituições, de tecnologias e práticas administrativas 15. Ter opinião, expressá-la, defender direitos ou condenar comportamentos inaceitáveis, é uma parte legítima desse processo.
3 ‒ O que devemos fazer agora
Não cabe aqui questionar o papel das energias renováveis no paradoxo energético global. O padrão de desenvolvimento das sociedades ditas «civilizadas» tem-se pautado pela delapidação dos recursos naturais e isso continua a ser a norma, também no verde campo das fontes de energia renováveis: os biocombustíveis levantam sérios problemas, inerentes às monoculturas transgénicas, a biomassa florestal prepara-se para arrasar os últimos recursos para regeneração dos solos, as hídricas, as fotovoltaicas e as eólicas tenderão sempre a esticar a corda do lucro e dos impactos ambientais 16. Esta problemática tem origem no elevado nível de consumo energético promovido durante um século de petróleo barato e a solução terá de passar pelo decrescimento energético pessoal, com ou sem crise a «ajudar».
Mas enquanto não se alcança a utopia do consumo responsável, devemos acautelar que não se ameace ainda mais a vida selvagem.
Deve-se exigir a definição de zonas de exclusão 17 de aproveitamentos energéticos, por forma a garantir que a fauna e a flora em risco não tenham aqui a sua extinção. A monitorização deve ser a regra habitual e deve ter credibilidade científica. Deve ser exigida a publicação dos resultados, que interessa a todos, por forma a reduzir a erosão da confiança social nas instituições e, simultaneamente, a criar histórico para ampliar o conhecimento e melhorar as práticas.
Finalmente, todos devemos despertar para a vigilância diária dos nossos bens públicos e diligenciar para que todos os projectos sujeitos a Estudos de Impacto Ambiental respeitem a obrigação de operar apenas durante o tempo previsto e reponham as condições naturais após o seu desmantelamento – condição inerente a qualquer projecto sob Avaliação de Incidências Ambientais.
A história da energia eólica, longe de ser verde, lembra-nos outros ecocídios cometidos no século XIX, quando se dizimaram os tigres de Bengala para tapetes, as martas para casacos ou os elefantes para marfim. Nessa altura não se soube defender a vida selvagem. Agora, dois séculos depois, são as águias que estão em perigo. É nosso dever individual agir para que a história não se repita e para que esta mensagem se propague: energia eólica sim, mas longe das águias e dos habitats de preservação da vida selvagem. Talvez então esta história possa ter um final feliz.
José paulo Ramalho
Notes:
- Ver «Wind Power, na Wikipedia. ↩
- Consultar, por exemplo, dados da EWEA – European Wind Energy Association. ↩
- Idem, EWEA. ↩
- Ver Teresa Esteves, Base de dados do potencial energético do vento em Portugal – Metodologia e desenvolvimento, 2004, ou Paulo Costa, Atlas do potencial eólico para Portugal continental, 2004. ↩
- Ver os sites Enercom, Vestas, Gamesa ou Nordex. ↩
- Os custos iniciais dos investimentos off-shore obrigam a uma escalada de potência e impacto dos parques. Os efeitos nefastos na vida marinha, nas rotas migratórias e na navegação marítima são amplamente conhecidos. ↩
- A título de exemplo veja-se a incipiência do estado-da-arte no site www.urbanwind.org, galardoado pela U.E. ↩
- William Cameron Weimar, Land Use, Land Conservation, and Wind Energy Development Outcomes in New England, 2011. ↩
- Travassos et al., 2005. ↩
- A este respeito, recomenda-se a leitura do livro de Thom Hartmann, As Últimas Horas da Antiga Luz do Sol (Sinais de Fogo, Lisboa, 2002). ↩
- EPAW – European Platform Against Windfarms. ↩
- Nadai et al., Une comparaison de l’émergence de paysages éoliens en France, Allemagne et Portugal, 2010. ↩
- Susana Amaral, Análise comparativa da avaliação de parques eólicos em Portugal, 2009. ↩
- Veja-se, a título de curiosidade, a omissão de matérias ambientais em Avaliação Ambiental Estratégica do Programa Operacional Competitividade e Inovação, Fevereiro de 2014. ↩
- Nadai, 2010. ↩
- Leia-se, a este respeito, sobre o conceito de energetic sprawl (disseminação energética), que se debruça sobre a necessidade crescente de espaço para captação de energia. ↩
- Weimar, op. Cit. ↩