Salvo-conduto I

27 de Março de 2013
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Há não muitos anos, quando um qualquer cidadão tinha algo a tratar, uma conta para pagar, algo para reclamar, dirigia-se a uma repartição pública ou a um balcão de atendimento, por detrás do qual um empregado, remunerado pela respectiva entidade, preenchia um formulário e prestava-lhe serviço. A fila de espera podia ser longa, o empregado incompetente, a resposta morosa ou deficitária – mas, na era da burocracia, ainda se era atendido por pessoas (ou servidores de carbono).

A era da tecnocracia é um pouco mais perversa. Quando se é atendido, é por máquinas (ou servidores de silício, Silicon Valley). Se um cidadão qualquer quiser agora resolver algum assunto, dirige-se ao website da entidade, a qual, embolsando vários milhares, despediu o antigo funcionário do atendimento e trocou-o por um software (uma despesa de manutenção sumária, prestando um serviço igualmente sumário), e coage agora o próprio cliente a desempenhar as funções de preencher o formulário, digitalizar documentos, redigir declarações, e, depois de todo esse trabalho não remunerado, ainda paga por isso e pela ligação de Internet, da qual está cada vez mais dependente. É por isso que todas as empresas de cariz tecnológico querem que se forneça um e-mail e que se abra uma conta online e que se adira à factura electrónica, para que se passe automaticamente a ser empregado delas e o parolo ainda paga e tolera aumentos descabidos de preço. Nem sequer se pode dizer que tenha granjeado algum desconto nas contas pela sua colaboração para o lucro empresarial, antes acolheu responsabilidades que o obrigam a consumir recursos (tempo, energia, material) sem receber um centavo como contrapartida. Os custos burocráticos, que anteriormente recaíam sobre a entidade passaram agora para o lado dos clientes: papel, tinteiros, agrafos, clips, electricidade, desgaste e manutenção do material, etc. A antiga fila de espera, à porta da repartição, foi substituída pelo tempo de carregamento de uma impessoal página web (quando o excesso de tráfego não a bloqueia), o cliente agindo em causa própria tornou-se num empregado muito mais eficiente, enquanto que o pedido obtém a resposta automática de uma máquina ou, não raras vezes, perde-se num poço sem fundo e fica sem resposta. Tudo cai no poder do intermediário: o cliente é um serviçal, o receptor não está lá. O atendimento pessoal e o posto de trabalho do antigo empregado foram sugados por este entre-meio tecnológico. Esta meso-região de electricidade engana, parece calorosa, mas, na realidade, é glaciar, uma placa de gelo, sem pingo de humanidade, desumanizadora e desanimadora. Quando o cidadão paga todos os meses a “sua” factura de Internet – incluindo todos os períodos gastos em serviços “por conta de outrem” – consente obedientemente em pagar pela sua escravidão às facilidades digitais, sujeita-se à teia (web) da aranha universal. Assim, o homem comum das sociedades informatizadas passa cada vez mais tempo em frente do écran, agarrado à máquina que o sedentariza, à medida que crescem e se avolumam as tarefas digitais de self-service para as quais ele é requisitado: consultar extractos, pagar facturas, fazer transferências, requerer licenças camarárias, solicitar certidões de registo, comprar online, etc., etc. Tudo centralizado numa só pessoa. O novo escravo tecnocrático: um só indivíduo passa a acumular parte das funções dum ex-empregado de Banco, dum ex-empregado de repartição pública, dum ex-empregado de serviços municipalizados, dum ex-empregado de balcão de loja, dum ex-empregado de… De borla.

A tecnocracia procede ditatorialmente. Por exemplo, uma pessoa é obrigada a comprar um aparelho por causa de uma mudança tecnológica que não requereu: TDT. Paga tudo: as infra-estruturas, o aumento na factura, o aparelho conversor, a nova antena, a taxa audiovisual… E fica pior servida, com um sinal e imagem muito mais inconstante e vulnerável. Outro caso frequente: uma pessoa pede um empréstimo ao Banco e taxam-na três vezes mais (e ainda tem de domiciliar o ordenado e adquirir um seguro) do que a taxa de juro que recebe se for ela a emprestar dinheiro ao Banco. Dois pesos e duas medidas. Ou ainda: uma pessoa pede um esclarecimento a uma repartição pública via e-mail, para ser mais rápido e económico conforme proclamam, e, em resposta, solicitam-lhe que vá pessoalmente à delegação para lhe responderem ao e-mail. Há vias que só foram implementadas para servir um dos lados, unilateralmente. Além disso, a tecnocracia pode desdobrar-se numa longa verborreia sem eficácia, como no episódio verídico que se reproduz a seguir. Uma pessoa é obrigada a ligar para um número não gratuito para cumprir com a obrigação imposta por outrem de mudar de fornecedor de electricidade (do mercado regulado para o mercado “livre”, eufemismo) e é uma gravação de atendedor de chamadas que a atende ou, pior, que a não atende, mas faz gastar chamadas em vão: «Autoriza que esta chamada seja gravada? Se não, marque 1. Se sim, marque 2. [A pessoa marca 1.] Contacte-nos pelos meios alternativos na Internet. [Sem pré-aviso, a chamada é automaticamente desligada. A pessoa tem de ligar outra vez para o tal número não gratuito, ouvir o mesmo início, e é obrigada a aceitar ser gravada. Depois, o processo continua.] Se é… [parvo], marque 1. Se é… [totó], marque 2. Se é… [tolo], marque 3. Se é… [pacóvio], marque 4. Se é… [patego], marque 5. Se é… [palerma], marque 6. Para falar com um Assistente, aguarde. [Dez minutos à espera a ouvir uma música irritante…] Devido ao número elevado de chamadas em espera, não nos foi ainda possível atender a sua chamada. Deseja aguardar? Marque 1. [Dez minutos à espera a ouvir uma música irritante…] Não nos vai ser possível atender a sua chamada nos próximos trinta minutos. Se desejar fornecer o seu número, para ligarmos para si logo que nos seja possível, marque 1, se não, tente mais tarde».

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1 Comentário
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  1. […] (Continuação da edição anterior) […]

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