Não desligam os fumos
Foi o que disse a minha filha de quatro anos quando lhe explicamos que não podia ir ao parque de Serpins por causa dos incêndios. Vieram os helicópteros, aviões e os bombeiros, e instaurou-se um cenário quase militar contra o fogo. Toda a resposta inspirava segurança: parecia tão no início. Mas com as nuvens negras a aumentar de tamanho, tal como outras famílias com crianças, decidimos sair. Da estrada vimos o país a arder, e as povoações sob nuvens de fumo que pareciam furacões. Conseguimos chegar são e salvos, e só pensei na injustiça tremenda das populações mais rurais sofrerem isto e as urbanas não. Mas os fogos aproximaram-nos a todos. As pessoas a 75 km que me ligaram para saber se estávamos bem são aquelas a quem ardeu a casa. O fogo entrou pelas vilas e pelas cidades, e andou pelas ruas, pelos quintais, pelas hortas, pelas sebes. Entrou dentro de casas, desabitadas e habitadas. Entrou dentro de fábricas abandonadas e ocupadas. Entrou nos currais e matou animais. Entrou em Oliveira do Hospital e levou à evacuação forçada de hospitais. Como terá sido o esvaziamento dos acamados? Regressei e começamos a ver os danos e a ouvir os relatos dos vizinhos. E passaram na ponte os carros dos bombeiros de Santiago do Cacém, Almada, e um desfile de lugares a sul. E passei no caminho da floresta onde apanhava cogumelos e medronhos com a minha filha. Dias antes tínhamos visto um sacarrabos. Para onde terá ido? E os veados? E os javalis? E os sapos? E os peixes? E a garça? Ouvi os corvos. O caminho da floresta é um lugar novo. Parece uma paisagem lunar. Toco numa pedra e rolo-a encosta abaixo, fá-lo sem esforço libertando uma nuvem gigantesca de poeira e cinza. Árvores caídas e a cair. Os eucaliptos são puro negro e cinza, os pinheiros deixam pinhas, e as oliveiras e carvalhos arderam por dentro com a folhagem quase intacta. Imensas bolotas no chão. Quase parece que seriam capazes de cuidar do seu futuro se as deixassem.
O que me incendeia com raiva são os fragmentos que nos chegam das notícias. Todo o medo e os discursos do costume impedem que as pessoas aceitem a realidade de que as plantações florestais nas condições sócio-ambientais de Portugal são extremamente perigosas. Que o fogo entrou e andou impune pelas vilas porque o interface urbano-florestal é uma passadeira vermelha à sua passagem. Negar a existência do perigo é permitir que em Portugal a indústria da madeira e da pasta do papel custe vidas humanas. Quantas vidas humanas serão necessárias sacrificar para aumentar a nossa segurança face às plantações de eucalipto? E quantas mais para que em vez de florestas zombies possam surgir outros modos de vida? Podemos e devemos apostar na prevenção e melhorar a proteção civil, mas nunca haverá bombeiros suficientes quando meio país arde em dois dias.
Continuam a não desligar os fumos e não nos deixam ver depois do fogo. É importante ver a terra queimada, ver as pessoas sem casa, sem luz, sem água, sem comunicações e sem documentos, sem sustento, enlutadas. É importante ver, saber onde estão e quem são para responder às suas necessidades, mas também para aceitar que o perigo é real e não um delírio imaginário.
Quem não aceita o perigo vive com medo. E o cheiro do medo é o cheiro do fumo. O cheiro que enfrento todos os dias para chegar a casa. O cheiro que nos diminui porque apesar dos esforços e entreajuda dos vizinhos para salvar as casas dos que estavam fora, ajudar os idosos e os mais vulneráveis, fomos incapazes, como comunidade, de proteger a terra que habitamos. Porque não chega ter salvado o nosso quintal quando se vê a extensão da desolação e se somam os relatos dos que perderam tudo. Não responder ao seu sofrimento envergonha-nos e diminui-nos como espécie humana.
Neste momento está a ocorrer uma gigantesca onda de solidariedade silenciosa entre familiares e amigos. É silenciosa porque ainda temos esperanças de que o Estado possa também ser solidário e compensar as perdas económicas. Se não o fizer, poderá ocorrer outra tragédia: o agravar das desigualdades e da vulnerabilidade social, a perda das magras poupanças para uma vida digna.
O fogo entrou nas nossas cabeças para ficar. É trauma? Claro que sim. Trauma coletivo que tentamos digerir com o esforço de retomar a normalidade. Mas para as populações mais rurais, o fogo é mais um ataque violento a somar-se à perda de serviços públicos, encerramento de escolas e de serviços de saúde, encerramento de linhas de comboio e metros sempre adiados. O fogo é mais uma mensagem de que melhor seria que saíssem dali, que fossem para um núcleo verdadeiramente urbano como toda a gente, onde a natureza não os ataca porque está mais suprimida.
Aceitar e responder ao fogo requer coragem. A coragem de aprender o seu comportamento, e esperar a sua presença. Entrar em negação leva-nos a dois extremos: culpar as ignições e rezar para que chova. As soluções estão no meio: nem controlamos tudo nem somos totalmente impotentes. Mas é preciso mais do que cortar os matos. O fogo pode ser uma oportunidade de aproximar as pessoas dos seus baldios, de diversificar as florestas e os usos do solo, em vez de concessionar tudo para plantação de eucalipto, na urgência de tapar a terra queimada.
Rita Serra
17 de Outubro de 2017
O Pinhal de Leiria depois do grande incêndio
https://youtu.be/k2e29Pz9_MM