Psiquiatria 2.0: a tecno-colonização da mente

18 de Maio de 2017
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Quando, em 1952, José M. R. Delgado publicou os seus primeiros artigos científicos sobre a implantação de eléctrodos no cérebro, a lobotomia, desenvolvida pelos cirurgiões americanos como aperfeiçoamento da leucotomia pré-frontal (inventada em 1936 pelo A. Egas Moniz e que lhe valeu o prémio Nobel a 1949), era uma das técnicas médicas mais difundidas para tratar comportamentos definidos como doenças mentais, tais como a depressão, a esquizofrenia, os distúrbios obsessivo-compulsivos, entre outras. Uma das muitas vítimas desta abjecta prática foi Rose Marie Kennedy (irmã do presidente Kennedy) cujas mudanças de humor e livres relações com os homens impulsionaram as queixas do pai aos médicos que, em 1941, a mutilaram, constrangido-a a um estado vegetativo: a olhar para o vazio, incontinente e dizendo palavras sem sentido. Vis instituições e clínicas do terror continuaram com estas atrocidades até meados dos anos 80. Entretanto, querendo dar a sua contribuição ao progresso, Delgado implantava os seus stimoceiver em cérebros de chimpanzé, gatos, touros e humanos, demonstrando que é possível telecontrolar tanto as reacções motoras quanto as emotivas: foi-lhe possível induzir medo, raiva, luxúria, hilaridade, loquacidade e há um vídeo na internet com as imagens de uma tourada em 1963, em que Delgado toureia com um dispositivo telemático nas mãos. Um dos seus pacientes, que tinha tentado resistir aos estímulos, afirmou que a electricidade controlada pelo doutor era mais forte que a sua vontade. Chamado de technological wizard pelos colegas, Delgado concentrou a sua atenção no controlo da agressividade e na cura da epilepsia em sujeitos refractários aos fármacos. Acerca da primeira afirmou: “The old dream of an individual overpowering the strength of a dictator by remote control has been fulfilled, at least in our monkey colonies1. Em 1969, publica Physical Control of the Mind: Toward a Psychocivilized Society no qual afirmou que a conquista da mente irá produzir um humano melhor, menos cruel e mais feliz. Em 1970, os investigadores F. Ervin e V. Mark, em Violence and the Brain, sugeriram resolver por estes meios o problema das revoltas dos afro-americanos nos centros urbanos e em 1972, R. G. Heath tentou mudar através da estimulação eléctrica, a orientação sexual de um homossexual. Desde os anos cinquenta Heath, financiado tal como Delgado pelo exército, levou avante experiências com afro-americanos da penitenciária de Louisiana, que serviram como cobaias humanas. Ainda em 1972, numa audição perante o Congresso, o psiquiatra Peter Breggin, que combate até hoje os abusos da psiquiatria e da indústria farmacêutica, com especial atenção à medicalização das crianças, acusou estes cientistas de estarem a criar uma sociedade onde quem se desvia da norma é mutilado, definindo Delgado como o maior apologista do totalitarismo tecnológico. Em 1974, Delgado foi convidado a ajudar a organizar a escola de medicina da universidade de Madrid, e aí dedicou-se a métodos menos invasivos, como a alteração de estados emotivos através de capacetes dotados de eléctrodos. O seu último livro, de 1989, chama-se Happiness.

Na sequela do projecto BRAIN Initiative (Brain Research through Advancing Innovative Neurotechnologies), lançado em 2013 pelo governo Obama e financiado com 300 milhões de dólares cada ano para dez anos, a DARPA (ver Mapa n.8 Dez.2014/Fev.2015) destinou 70 milhões de dólares à universidade da Califórnia de São Francisco (UCSF) e ao hospital geral do Massachusetts, para desenvolver implantações neuronais capazes de controlar as emoções dos pacientes psiquiátricos. Esta nova linha de investigação tem sido chamada “affective brain computer interfaces. Um dos investigadores assoldado é José Carmena, que depois de ter adestrado por anos macacos a mexer braços robóticos com a mente (mediante eléctrodos espetados no cérebro), convida-nos a imaginar a possibilidade de um mini dispositivo telemático interceptar os nossos impulsos neuronais, para por exemplo bloquear o desejo de álcool. Como explica Justin Sanchez, manager do programa da DARPA conhecido como Subnets (Systems-Based Neurotechnology for Emerging Therapies), os EUA estão a sofrer uma epidemia de doenças psíquicas e o aumento de três a quatro vezes no número de suicídios. Os veteranos de guerra que apresentam distúrbios pós-traumáticos (PTSD) também poderiam ser alvo de intervenção tecno-médica, sendo as crises de pânico de que sofrem ligadas à amígdala, área cerebral conexa às memórias emocionais. Influenciando as emoções e as percepções, os tecnocratas querem controlar o comportamento. O gigante dos dispositivos médicos Medtronic e a startup Cortera Neurotechnologies, uma spin-out do laboratório wireless da UC de Berkeley, fornecerão a tecnologia necessária, que, nos primeiros anos, será experimentada nos animais. Entretanto, o mercado dos estimuladores eletrónicos, tanto internos quanto externos ao cérebro, está em crescimento. Mais do que cem mil doentes de Parkinson já têm sido tratados com dispositivos da Medtronic e há dois anos a Food & Drugs Administration (FDA) aprovou a comercialização por parte da Neuropace de uma implantação para controlar as convulsões epiléticas. A facturação anual dos estimuladores neuronais vai à volta de 2.6 biliões de dólares. E com a injecção de dinheiro que vem da BRAIN Initiative, começou uma nova época de frenesim em torno das tecnologias, e desta vez o alvo são as nossas emoções, desejos e pensamentos.

No âmbito europeu, o Human Brain Project responde à corrida ao armamento neurológico americano. O seu decenal objectivo, financiado com um bilião de euros, é a criação de um supercomputer replica of the human brain. Coordenado pelo israelita Henry Markral, este projecto foi alvo de uma petição assinada por mais de seiscentos cientistas e investigadores europeus (há um ano atrás) que, além de denunciar a falta de transparência na gestão do orçamento, protestam pelo facto desta iniciativa ter surgido como uma decisão tomada do alto, embora implique uma participação de cinquenta por cento dos custos por parte dos Estados singulares. Para os cientistas indignados, não é honesto propôr a construção do supercomputador como uma solução para os problemas concretos da saúde pública, ainda por cima faltando bases científicas consistentes.

A ciência, sendo um empreendimento humano, sempre foi e sempre será alvo de controvérsias e brigas de poder. Vigiar a actividade da comunidade científica é uma tarefa política. Uma crítica da economia política da investigação científica é o mínimo que se pode fazer quando somos obrigados a pagar impostos e a ser afectados e arrastados pelas consequências das inovações tecnocientíficas. Vigiar e denunciar os abusos é a fase inicial de um processo de apoderamento do conhecimento e da sua organização social. Ficar na paranóia conspiratória é que não presta. Antes pelo contrário. Conspiremos em resposta às intrigas do poder. A ideologia transhumanista está a infiltrar-se nas instituições, influenciando o imaginário e explorando o trabalho de muitos. Por isto, não se podem aceitar, sem mais, as palavras do Delgado que dizia: “Pode-se evitar o conhecimento? Não se pode! Pode-se evitar a tecnologia? Não se pode! As coisas seguirão em frente apesar da ética, apesar das crenças pessoais, apesar de tudo”.

Denunciar o enredo e o emaranhar actual de ciência, indústria, mercado, militares e política é uma maneira de salvar o potencial emancipador da ciência, contra os mitos, a arrogância e a ignorância opressora.

1 O velho sonho de um indivíduo que domine a força de um ditador por controlo remoto foi concretizado, pelo menos nas nossas colónias de macacos.

Texto de κοινωνία
Ilustração de José Smith Vargas

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