A economia nas nossas mãos
– Epílogo à Rede de Economia Solidária do Porto
A acção desenrola-se à volta de uma mesa. Num arranjo sobre uma toalha florida, frascos de iogurte caseiro estão dispostos lado-a-lado com as famosas compotas da Vó Guida. Por gentileza, alguém deixou um molho de malaguetas sino-de-natal para quem quiser levar. Outro trouxe uma amostra de conserva de cogumelos pleurotus em azeite e convida as pessoas a provarem e opinarem sobre a nova receita. Duas jovens «hortaleiras» e um cão acabam de chegar com cabazes de hortícolas e aromáticas fresquinhas. As marmitas estão quase prontas: só esperam ser embaladas pela mesma pessoa que espalhou jarros com mudas de alface e couve-flor pela sala. Cheira a especiarias e a pão no forno. O tom de convivialidade junta diferentes idades, sotaques, ofícios, partilhas, e encontra uma caixa-de-ressonância neste lugar.
Ao longo de mais de um ano, os encontros semanais de «prossumidores» da Associação para a Manutenção da Economia de Proximidade (AMEP) foram uma das faces mais visíveis da ECOSOL no Porto – a rede de economia solidária que tinha ganas de criar uma alternativa concreta à economia vigente. A AMEP era um grupo autónomo de produção, consumo e distribuição de alimentos e outros bens essenciais, que utilizava a moeda social ECOSOL como ferramenta para facilitar as trocas. Ao contrário de outros grupos de consumo, na AMEP todos os consumidores eram convidados a serem também elementos produtivos para um mote comum: a rede de economia solidária do Porto.
Seria esse o maior desafio, uma espécie de provocação ao sujeito passivo: o que pode cada um de nós fazer de realmente útil para a comunidade?
ECOSOL: origem e primeiros passos
A ECOSOL nasceu como colectivo informal em finais de 2013 «para reflectir e praticar a economia solidária». A vontade surgiu no seguimento das Feiras de Trocas das Virtudes, onde se promovia as trocas directas entre feirantes e visitantes. A partir dessa experiência, sublimaram-se as óbvias limitações do modelo: o «toma-lá-dá-cá» da troca directa deixava a economia refém da oferta e procura coincidente entre somente duas pessoas. Era preciso alargar as possibilidades de troca através de relações multi-recíprocas.
Surge então a ECOSOL (cuja auto-definição sempre oscilou entre rede e movimento). Inicia-se um período de estudo sobre as «outras economias», com a projecção de documentários e a organização de debates em diversos espaços associativos do Porto. Enquanto se preparavam as bases para o lançamento de uma moeda local, aprendia-se sobre feiras de trocas, moedas locais, economias alternativas, cooperativismo, consumo, transição, tecnologias, redes globais, e mais…. Pelo caminho, iam-se fortalecendo laços entre pessoas que (mesmo que nem sempre concordassem em tudo) tinham algo em comum que as ligava: a vontade de ver florescer a economia solidária no Porto.
Após meses de incubação, em meados de 2014 a moeda ECOSOL – exclusivamente virtual – entrou em circulação. Recorrendo à plataforma Cyclos, que permite gerir comunidades de trocas de forma gratuita, abriu-se um «mercado» alternativo online. Em dois anos, a ECOSOL passou de cerca de 20 membros para mais de 300, trazendo consigo centenas de produtos e serviços à rede – desde roupa, alimentos, produtos de higiene e instrumentos musicais, a aulas de dança, de línguas, baby-sitting, massagens, carpintaria, costura, transportes, etc.
Processo solidário em curso
«A economia solidária não é tanto um modelo de organização económica, mas sim um processo de organização da economia; não se trata de uma visão, mas de um processo activo para criar a visão em colectivo.» (Miller, 2009)
Mais do que a economia em si que a ECOSOL tentava gerar, o processo de auto-organização para fazê-la acontecer era talvez o lado mais emancipatório que a rede tinha.
As assembleias eram o momento de convergência e reflexão sobre a evolução da economia solidária do Porto. Faziam-se pontos de situação dos vários grupos de trabalho, discutiam-se novas propostas e definiam-se metas para as feiras e semanas vindouras.
Os grupos de trabalho funcionavam de forma autónoma e serviam para dar andamento aos expedientes mais rotineiros da ECOSOL, como a comunicação, as questões «administrativas» (da plataforma online e de tesouraria), e o acolhimento de novos membros.
Havia também o grupo da economia – responsável por reportar trimestralmente as finanças da rede e o balanço de dívidas/acumulação em «ecos»; o grupo internacional – responsável por estabelecer pontes com iniciativas irmãs além-fronteiras (como a Cooperativa Integral Catalã); e o grupo de consumo cultural – dedicado a trazer para a rede livros, filmes e música do circuito independente; para além da AMEP – o grupo que seguia com a economia de proximidade em riste, dando vida, corpo e (literalmente) alimento ao movimento.
Não destronou o sistema capitalista, mas sempre deu para poupar uns trocos. E tatuou uma experiência de autonomia que – a quem a viveu – ninguém pode apagar.
O silêncio da dissolução
Foi de forma cerce e silenciosa que a rede de economia solidária do Porto deixou de pôr em prática a utopia a que se propunha.
A oitava e última assembleia tomou lugar no dia 22 de Novembro de 2015, e foi marcada pela presença maioritária de novos elementos que tinham chegado através de uma sessão de Dragon Dreaming. Dinamizada umas semanas antes, a metodologia participativa para a «co-criação» de processos colectivos tinha o objectivo de fazer um «balanço e relançamento do projecto com nova Energia, foco, motivação e espírito de grupo». De algum modo, as expectativas elevadas que dali saíram 1não só não tiveram respaldo, como potencialmente terão tido um efeito inibidor na concretização do passo seguinte, que seria «[transformar os sonhos] em acções concretas, grupos de trabalho com objectivos, metas, prazos e responsabilidades». À oitava assembleia ECOSOL seguiu-se um ano de funcionamento não-assembleário, com encontros pontuais e parca participação em eventos.
A ausência de práticas serviu de testamento para o fim da rede de economia solidária do Porto, confirmando a máxima de Linebaugh: «there is no commons without commoning».
A AMEP cessou actividades em Março de 2016, fruto da indisponibilidade e/ou saturação dos organizadores voluntários, que nunca conseguiram de facto implementar o sonho da auto-gestão, ou a responsabilidade rotativa da coordenação do grupo de «prossumidores».
Vários outros factores terão contribuído para o movimento esmorecer, desde a emigração de membros particularmente proactivos – el@s própri@s vítimas de vidas precárias, sem perspectivas de futuro e propens@s ao estabelecimento de relações temporárias – à falta de iniciativa daqueles que ficaram – sempre à espera que um «facilitador» ou «gestor» surgisse para vir tomar as rédeas da situação – ou até (não menos importantes), as habituais deficiências de comunicação em colectivos desta natureza: os e-mails inflamados, as assembleias sofridas, o domínio pela palavra, o controlo da informação. A resiliência falhou.
Ou talvez – só talvez – alguém simplesmente se tenha esquecido de convocar a próxima assembleia?
UTOPIAS CONCRETAS
// Arquipélago Comum
*«Somos miles de islas, hagamos archipiélagos.»
La Casa Invisible, MálagaDas brandas serranas às hortas urbanas, são cada vez mais os palcos do quotidiano onde há pessoas que se juntam para tentar criar soluções práticas para o seu sustento, fora da lógica mercantilista e da competição. São iniciativas com a «função performativa» 2 de ensaiar o comum – esse espaço de possibilidades que se abre quando existe uma comunidade, um ou mais recursos partilhados, e uma forma de lidar com a sua governação 3.
Esta rubrica surge na tentativa de mapear evidências dessas «outras economias» 4 em Portugal, ilustrando casos concretos de iniciativas de autonomia e modos de vida de base comunitária que (muitas vezes de forma dispersa, modesta, precária, e quase invisível) estão a semear práticas emancipatórias e solidárias, preocupadas com o bem-comum.
Pretende também contribuir para a desambiguação de termos, numa altura em que se multiplicam os qualitativos da economia – das armadilhas neoliberais da economia da partilha, ao institucionalismo patriarcal da economia social – e que podem causar confusão. Discerniremos pelas utopias concretas, pelos processos de emancipação que questionam as estruturas de poder e de decisão.
Texto de Sara Moreira [saritamoreira@gmail.com]
Notes:
- Um resumo da sessão Dragon Dreaming – Sonhar a Economia Solidária, ainda pode ser consultado em: https://pt.slideshare.net/ecosolporto/apresentao-ecosol-dragon-dreaming-sonhar. ↩
- Serge Latouche, o teórico do decrescimento, numa entrevista à revista Avvenire, em 2012 («Abbondanza frugale: ricetta anticrisi»): http://www.avvenire.it/Cultura/Pagine/abbondanza-frugale-.aspx. ↩
- Ostrom, E. (1990). Governing the Commons: The Evolution of Institutions for Collective Action (Political Economy of Institutions and Decisions). Cambridge: Cambridge University Press. ↩
- Castells, M., Banat-Weiser, S., Hlebik, S., Kallis, G., Pink, S., Seale, K., … Varvarousis, A. (2017). Another economy is possible. Cambridge: John Wiley and Sons. ↩
[…] publicado no Jornal Mapa nº 19 (Fevereiro-Abril […]