O cibertotalitarismo que vem

18 de Maio de 2017
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Em 2001 a administração Bush, secretamente, ordenou à NSA (Nacional Security Agency) que interceptasse as comunicações electrónicas dos cidadãos americanos, isentando-a da necessidade de obter os mandados previstos pelo direito penal dos Estados Unidos. O governo coloca em prática este programa clandestino justificando-se numa concepção extremista do poder executivo: para tutelar a segurança do país, o presidente pode desvincular-se de qualquer norma jurídica, eludindo os sistemas de tutela e garantia dos direitos civis e o dever de transparência. Interessante será recordar que uma das questões que levou à independência dos EUA. foi a luta contra a invasão da privacidade operada pelas autoridades britânicas: em consequência desta história, a constituição norte-americana sancionou, na sua quarta emenda, a inviolabilidade da privacidade, proibindo as rusgas e sequestros arbitrários. No entanto, já na primeira metade do século XX, o Bureau of Investigation (primeira encarnação do FBI) interceptava as comunicações telefónicas e telegráficas, vigiava o serviço postal e contratava informadores para controlar aqueles que contestavam as políticas do governo. Nos anos 70, uma investigação conduzida por Frank Church demonstrou que o FBI tinha registado como potenciais subversivos 500 mil cidadãos, que eram vigiados por causa das suas convicções políticas.

O FISA Amendments Act, a actual norma que rege as práticas de vigilância da NSA, aprovada por um congresso bipartidário e no rasto do escândalo das intercepções não autorizadas da Administração Bush, tornou legal aquelas práticas inconstitucionais, ilibando a agência norte-americana da obrigação de obter mandados do tribunal para poder proceder a operações de espionagem. Este estado de excepçãotornado norma reduz os indivíduos a apólidas digitais.

Um dos documentos secretos revelado por Edward Snowden demonstra a existência de um programa chamado PRISM, uma parceria secreta entre a NSA, agência estatal, com nove das maiores empresas privadas de serviços telemáticos, tais como a Microsoft, PalTalk, AOL, Facebook, Yahoo!, Apple, Google, Skype e Outlook. Quando a Yahoo! se opôs, em sede judiciária, a permitir o acesso directo às suas bases de dados, o tribunal obrigou à sua colaboração no PRISM, defraudando os seus utilizadores aos quais garantia o respeito pela privacidade.

O objectivo de esmagar a dissidência e impor a obediência é uma característica comum a todos os regimes de poder: em reacção aos protestos populares das primaveras árabes, os regimes da Síria, Egipto e Líbia têm modernizado as suas próprias tecnologias de vigilância, adquirindo-as de empresas como a italiana AREA SPA, a francesa AMESYS ou a israelita CAMERO.

Perante tais práticas generalizadas de abusos de poder, esfumam-se as clássicas distinções entre regimes democráticos e ditatoriais, conluiados pela mesma ambição de controlo total (Reino Unido, Canadá, Nova Zelândia e Austrália são as nações que mais estreitamente colaboram com a NSA, formando uma aliança denominada Five Eyes).

No place to hide, Edward Snowden, the NSA and de U.S. surveillance state (Glenn Greenwald, 2014) revela um sinistro retrato do jornalismo oficial: a imprensa, como por exemplo o New York Times e o Washington Post, obedece as leis não escritasde vassalagem, manipulação e censura por parte do governo, traindo assim a sua missão de quarto poder. As políticas autoritárias, belicosas, inconstitucionais e contrárias aos direitos humanos têm sido umas vezes propagandeadas e outras ocultadas, e em qualquer caso legitimadas por uma máquina de produção de consenso ideológico que tem implementado, sob o comando do governo, uma estratégia de tensãomediática através de notícias perturbadoras ansiogénicas, exacerbando as ameaças terroristas e criando na opinião pública um estado de fobia patológica, induzindo-a a aceitar apaticamente tanto guerras de agressão quanto um regime policial de detenção, tortura e assassinato de americanos e estrangeiros, ramificado internacionalmente e desvinculado de qualquer procedimento de supervisão jurídica.

Este estado de excepçãogeneralizado exibe a real natureza da soberania, desmentindo a retórica cidadanista dos democráticos. Assim como os migrantes são passíveis de ser alvo de dispositivos coercivos sem procedimentos jurídicos e sem ter cometido crime algum, e portanto apólidas tanto quanto os judeus e outras minorias na alvorada da II Grande Guerra, todos os indivíduos da comunidade virtualnão são formalmente cidadãos, nem pessoas, sendo este um conceito jurídico, mas apólidas digitais reificados: peças e mercadorias, controláveis, geríveis, substituíveis e elimináveis na engrenagem totalitária.

A espectacular guerra ao Terrorismo não abrange apenas operações militares contra os Estados Canalhasmas implica também a renúncia dos direitos políticos e civis fundamentais. No clima de alarmismo retórico, em nome da segurança nacional, o jornalismo tem-se submetido ao poder executivo, a cuja censura deve sujeitar a informação de que tem conhecimento: quando tal não acontece, como no caso Snowden, quer o denunciante quer o jornalista são perseguidos penalmente.

Não só o crime de opiniãocontinua a vigorar e o espírito crítico a ser ostracizado, como ainda a divulgação de factos históricos e informações objectivas é considerada crime que atentam contra a manutenção do status quo dominante.

O que é premente salientar para caracterizar a novidadeda nossa época é a ubíqua presença de tecnologias informáticas, que torna possível uma monitorização total e indiscriminada da vida das pessoas. Não só a internet se tornou, para muitos, o ar que respiramos, vital nas suas multimediais funcionalidades comerciais, sociais e cognitivas como, através da proliferação de gadgets como os IP-Phones e as IP-Cameras (IP é o código identificativo dos dispositivos telemáticos), das próximas novidades do mercado ligadas à expansão da chamada Domótica (instalação de dispositivos informáticos nos mais variados electrodomésticos) e da monitorização informática dos espaços públicos (como é exemplo o projecto Future Cities, em desenvolvimento no Porto (1), a recolha, arquivamento e utilização de dados (conteúdos) e meta-dados (localização, hora, remetente, destinatário) de indivíduos insuspeitos de qualquer crime, tornar-se-á omnipresente. A transformação da realidade em dados acarreta uma forma de ditadura impessoal, automática, sistémica, infra-estrutural. Impossível escapar ao temor da instauração de uma forma de cibertotalitarismo planetário, capaz de influenciar as consciências e as identidades individuais e colectivas. Abundam estudos de psicologia que mostram como o comportamento das pessoas muda no momento em que estas se sabem ou sentem observadas: nesta situação as pessoas tendem a fazer aquilo que se espera delas, não ultrapassando os limites impostos, não tendo as condições para manifestar a sua própria autonomia de decisão e capacidades críticas. Apenas no respeito da privacidade podem garantir-se autênticas possibilidades de escolha assim a satisfação implícita do ser si próprios.

Desde sempre o poder limitou e controlou a liberdade de escolha dos indivíduos, fazendo-os sentir-se observados através dos mais diversos dispositivos culturais, desde os espíritos do xamanismo ao deus único do monoteísmo, que nos vigia na mais profunda intimidade do nosso ser. O que hoje em dia parece ser novo não são as grotescas perversões humanas quanto os instrumentos tecnológicos para realizá-las. Conhecendo a plasticidade das estruturas das nossas mentes ao imprinting e experiências que nos ocorrem e reconhecendo a função educativaque os media e as tecnologias informáticas desempenham na era da atomização social, e a sua sempre maior invasividade, não é injustificado perguntar-se a que tipo de (des)umanidade poderão levar as actuais tendências tecno-políticas. Nesse sentido a privacidade e o seu esmagamento no actual panóptico digital é hoje em dia uma questão de relevância não só política e social mas também antropológica.

NOTAS
(1)
ver artigo MAPA nr. 9

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