A ditadura dos dados

18 de Maio de 2017
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A ditadura dos dados (1)

O colectivo de escrita convivial Ippolita (2) reflete há anos sobre a Californian Ideology (3), a estranha confluência de ideais que guia o pensamento neoliberal na implementação do Web 2.0. A sociedade do conhecimento propagandeada pelo variadamente chamado capitalismo imaterial, ou anarco-capitalismo, ou turbo-capitalismo, assenta num ingénuo optimismo tecnológico, para o qual o progresso dos meios informáticos de comunicação de massa levaria automaticamente ao progresso social e cultural dos netizen (net + citizen) da aldeia global. Os membros de Ippolita convidam-nos a reflectir de forma crítica face esta ideologia tecno-determinista, desvendando os interesses escondidos atrás do evangelho da transparência total, os perigos advenientes deste, tentando remediar mediante técnicas de auto-defesa digital, e sobretudo, mediante um cuidado de si e das relações com os outros que trave a colonização do espaço tanto íntimo quanto comum por parte de multinacionais e instituições políticas.

Com acutilante denego de qualquer tipo de postura tecnófoba, Ippolita convida-nos a não abdicar da compreensão e uso consciente das tecnologias digitais, a não delegar aos tecnocratas e aos Evangelists da boa novela 2.0 a escolha das modalidades de relacionamento entre as pessoas. Pois é preciso reconhecer como as chamadas redes sociais, e as outras formas de conexão digital entre indivíduos, não são neutras, nem sequer proeminentemente técnicas, mas representam antes um conjunto de comportamentos e hábitos que incidem nas funções cognitivas e emotivas de cada um, modificando a nossa identidade, quer individual quer colectiva.

Reparem, por exemplo, que a prática do profiling é um dispositivo que deriva da criminologia, agora estendido a todas as pessoas, cuja pegada digital é aglomerada pelos detentores dos Big Data de forma a obter uma ficha detalhada dos actos e opiniões, dos interesses e relações de cada um. Se por um lado estas informações, que disponibilizamos voluntária e gratuitamente, são um recurso que proporciona lucros aos seus exploradores na economia de mercado, por outro lado podem igualmente ser cedidos a regimes ditatoriais. Desde a publicidade e outros serviços personalizados à repressão personalizada, o passo é curto, como foi denunciado por Eugeny Morozov (4) entre outros.

Além do facto de a censura na Web ser uma realidade, assim como a guerra informática é parte das estratégias militares não convencionais, a ideologia da partilha digital da democracia 2.0, na qual o que é publicado se torna propriedade de empresas privadas coniventes com governos, militares e serviços de segurança, torna-se de forma latente numa espécie de cibertotalitarismo ou maoismo digital (Jaron Lanier) (5), devido ao facto de “transformar a delação dos comportamentos dos outros numa prática social aceite e encorajada, e a auto-delação em regra dourada” (Ippolita).

A socialização digital promove o culto da pertença a uma massa indiferenciada em que a dissidência é dificultada à partida (reparem como no Facebook existe um botão “gosto”, mas não um que diga “não gosto”; além do facto que é menos problemático, em termos cognitivos e emotivos, partilhar com um “gosto” uma imagem de guerra). Ippolita analisa as dinâmicas de exclusão e de auto-censura advenientes da pressão social que age nas psique dos utilizadores das redes digitais, narcisos que ao dedicar-se ao “exibicionismo masturbatório” e à “pornografia emotiva e relacional” moldam a sua identidade à imagem de parâmetros pré-fabricados e de expectativas externas, seguindo modalidades expressivas unidirecionais que empobrecem o espírito reflexivo. Além disso, a rapidez das trocas comunicativas digitais, que na sua fragmentação absorve uma quantidade sempre maior do dia-a-dia das pessoas, impossibilita os esforços e a demora necessários à gestação e construção de um pensamento crítico. Ainda, a existência de programas informáticos (bots dedicados ao sentimental analysis e ao opinion mining, por exemplo) injectados nas redes sociais e noutros serviços digitais ao fim de estudar e influenciar o comportamento dos utilizadores/consumidores, torna-os alvos inconscientes de técnicas de engenharia social, de estratégias mercantis e de controlo político. Default power é o termo técnico que exprime a capacidade de mudar as formas de vida online de milhões de pessoas ajustando poucos parâmetros. À já suficientemente pertinaz tendência conformista de que os seres humanos tem dado prova, acrescentam-se estes meios personalizados de manipulação de massa, quase que aos avanços da inteligência artificial corresponda um proporcional desenvolvimento da estupidez artificial.

Apesar disso, os muros para abater erguem-se na política, na sociedade e na cultura fora dos ecrãs. O panóptico generalizado, implementado pela “religiosidade tecnofascista” (Ippolita) dos evangelistas dos Big Data, não é inevitável. A nossa é, como sempre foi, uma “servidão voluntária” (Etienne de La Boétie, 1576). Com Ippolita, acreditamos que opor-se ao avanço do deserto é possível, e que há sempre margens de manobra para práticas de resistência: cuidar do nosso presente é também uma responsabilidade perante o futuro. Analisar e denunciar as derivas monopolistas e totalitárias subjacentes ao Web 2.0; dar-se ao trabalho para se emancipar de um uso passivo e conformista que contribui para a exploração de todas as relações sociais na economia de mercado; combater com acções de boicote e desobediência civil; tornar a criptografia de uma suspeita excepção numa medida precaucional generalizada; construir redes cibernéticas autónomas que proporcionem alternativas viáveis. Para finalizar, dedicar-se à criação e manutenção de espaços conviviais auto-geridos nos quais a identidade individual se desenvolva na articulação com a identidade dos outros, estimulando a empatia e a maturação através vivências comuns e um cuidado recíproco, de forma a construir dinâmicas locais de aprendizagem e expressão que possam dignificar a nossa humanidade, e, sobretudo, a dos mais novos. Cabe a nós fertilizar o tecido rizomático da vida, de forma a fazê-lo frutificar; cabe a nós reduzir o virtual a uma esfera residual apropriada a momentos estrategicamente escolhidos; cabe a nós apoderar-nos do virtual, sem que ele, ou melhor, os seus actuais detentores, se apoderem de nós.

Notas:
(1)
Expressão usada por V. Mayer-Schönberger e K. Cukier em Big Data: A Revolution That Will Transform How We Live, Work, and Think (2013).
(2) Open non è free. Comunità digitali tra etica hacker e mercato globale (2005); Luci e ombre di Google. Futuro e passato dell’industria dei metadati (2007); Nell’acquario di Facebook. Viaggio nella resistibile ascesa dellâanarco-capitalismo (2012); La Rete è libera e democratica – FALSO! (2014); Anime Elettriche (2016)
(3)
Expressão cunhada por R. Barbrook e A. Cameron a 1995: http://www.imaginaryfutures.net/2007/04/17/the-californian-ideology-2/
(4) Morozov denuncia a crença, que ele chama iPod liberalism, de que a inovação tecnológica promova a liberdade. Vejam-se, por exemplo: The Digital Dictatorship ou Political Repression 2.0, acesso disponível em Wikipedia, ou os livros The Net Delusion: The Dark Side of Internet Freedom (2012) e To Save Everything, Click Here: The Folly of Technological Solutionism (2014).
(5) J. Lanier, You are not a gadget (2011) e Who Owns the Future? (2014).

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