Sê tudo o que podes ser
“O futuro já chegou;
mas não está uniformemente distribuído.”
William Gibson
Joel Garreau, com o seu Radical Evolution (2007), tenta fazer-nos abrir os olhos para as possíveis consequências das tecnologias GRIN – Genética, Robótica, Informática e Nanotecnologia. Ao ser entrevistado no documentário francês An monde sans humain (?), diz-nos que encontra sérias dificuldades em partilhar com os seus leitores a actualidade, a relevância e o alcance do fenómeno: “Se apenas 10% das investigações científicas em curso – diz – tivessem de dar resultados positivos, a natureza humana seria completamente transformada”; “Faz lembrar um tema dos livros de ficção científica, mas a linha que divide o imaginário do concreto é hoje mais subtil do que nunca”: parece incrível, mas está tudo a acontecer de facto! E não é fácil responder, psicologicamente e cognitivamente, de forma adequada à “mudança exponencial”, à “mutação” em acção.
Grande parte dos super-poderes dos heróis de banda desenhada dos anos trinta e quarenta já existem ou estão a ser desenvolvidos (a “visão raio-x”, por exemplo, parece ter sido criada pela Camero, uma empresa israelita que afirma ter idealizado um sistema radar de forma a produzir imagens tridimensionais daquilo que se encontra entre paredes a uma distância de vinte metros, ou ainda o exoesqueleto que permite carregar pesos enormes, correr quilómetros sem fadiga ou saltar bastantes metros).
Se até agora o desenvolvimento tecnológico estava voltado para o exterior, para o controlo do ambiente circundante, hoje a sua direcção está apontada, sem mediações, para a nossa mente, memórias, metabolismo, personalidade e descendência. Os agentes deste processo histórico encontram-se difundidos de forma tentacular na sociedade civil: através da dopagem no desporto (aguardando o doping genético), da cirurgia plástica, das clínicas de reprodução assistida, da investigação científica institucional no seu conjunto e, por fim, de todos os consumidores de inovações hi-tech.
Seja como for, um dos aspectos mais controversos e inquietantes diz respeito ao poder, ao papel e às intenções dos militares. Ainda que a divulgação mediática insista na retórica filantrópica da cura das pessoas doentes ou com handicap, discurso que recebe o aplauso natural das pessoas, os mais sinceros profetas não excluem o advento de uma super-raça “aprimorada”: os primeiros candidatos são, para além dos mais ricos, o exército e as forças da ordem. O facto da tecnologia ser o volante da supremacia militar tornou-se ordem do dia da agenda das forças armadas estado-unidenses desde a Segunda Guerra Mundial, quando, através de calculadoras electrónicas, se tornou possível “simular” os efeitos de uma explosão atómica.
Ainda que não seja a única das organizações envolvidas na criação de engenheira da humanidade que vem, hoje falaremos da DARPA – Defense Advanced Research Project Agency. A sua sede central, na Virginia, acolhida pelo Pentágono, encontra-se próxima dos grandes edifícios da National Science Foundation e da Federal Deposit Insurance Corporation, topografia que simboliza adequadamente o entrelaçamento dos interesses científicos, financeiros e militares. No seu plano estratégico encontra-se escrito que “o único estatuto é a inovação radical”, pesquisas de alto risco, de alto rendimento e que visam mudar o mundo. “Acelerar a gestação do futuro” é a sua razão de ser: não considerar nada impossível, desafiar mesmo as leis da física (sem falar na dos homens): nos primeiros anos da década de sessenta, J.C.R. Licklider, director das pesquisas de comando e controlo para a ARPA (progenitora da DARPA), formulou a visão de algo a que chamou Intergalactic Computer Network, algo que alterou desde já as nossas vidas (a Internet de hoje é o resultado transitório de uma evolução iniciada com a Arpanet, usada exclusivamente pelas instituições militares e académicas). O seu curriculum é conspícuo: pioneira da Internet e do correio electrónico, ajudou a financiar o rato, o sector da computer graphics, circuitos integrados de grandíssima escala, computadores que reconhecem a voz humana e traduzem línguas, as workstation informáticas, o sistema operativo Unix de Berkeley, a elaboração paralela massiva e o head-mounted display; foi protagonista no desenvolvimento do GPS, do telemóvel, dos sensores de visão nocturna, dos satélites meteorológicos, dos satélites espião e do foguete Saturn V que levou o homem à lua; colaborou na criação dos supercondensadores, células a combustível destinadas à próxima geração de automóveis, e da telecirurgia; no campo militar, todos os aviões, misseis, navios e veículos, incluindo os materiais e os processos produtivos, e tudo aquilo que tem stealth no nome, poderiam ter a marca “DARPA inside”; deu início a vários armamentos a raios, como as armas a laser, a feixes de partículas e a impulsos electromagnéticos; e às legiões de robots aéreos, terrestres e marítimos, entre os quais o drone Predator, que no ano 2002 foi o primeiro robot da história a incinerar seres humanos. A DARPA promove as instituições necessárias à realização do futuro por ela auspiciado e investe 90% do seu orçamento na universidade e na indústria: a NASA é uma filiação sua; o MIT, a Stanford e a Carnegie Mellon, centros académicos fundamentais no desenvolvimento da tecnologia de informação, estão unidas graças à DARPA; contribuiu para a promoção da Sun Microsystems, da Silicon Graphics e da Cisco System; e intervém no estabelecimento do protocolo TCP/IP, que é o fundamento da Internet.
Hoje em dia, a DARPA ocupa-se da criação de seres humanos melhorados, imunes a limitações físicas, fisiológicas, emotivas e cognitivas, capazes de comunicar apenas com o pensamento, com corpos montáveis e reparáveis, com “aprendizagem instantânea”, soldados que “serão no futuro a chave da sobrevivência e do predomínio operativo” e a “nossa futura força histórica”, como diz M. Goldblatt, ex-dirigente do DSO – Defense Sciences Office – da DARPA, pai de uma rapariga com paralisia cerebral e um entusiástico apoiante das (ameaçadoras) promessas encerradas na realização do Belle, o primeiro símio telecinético. Belle, num laboratório da Universidade de Duke na Carolina do Norte comanda, através dos impulsos eléctricos emitidos pela sua mente, dois braços robóticos situados no Massachussets. Em Dezembro de 2013, um parágrafo do Público informou-nos do estado da arte desta pesquisa: uma símia, desta vez, telecomandou não um braço mecânico, mas o de uma outra símia.
O objectivo final perseguido é criar uma conexão entre diferentes tipos de inteligência, seja artificial ou humana, entre máquinas e mentes, em todo o lado (programa primeiramente denominado Brain-Machine Interface e posteriormente chamado Human Assisted Neural Devices). Poder canalizar os conteúdos de um dispositivo telemático para a mente do seu utilizador, tornar “acessível” às nossas mentes os conteúdos da cloud instantaneamente e, porque não, tornar acessível os conteúdos das nossas mentes! Este são os objectivos do programa de desenvolvimento de tecnologias “neuroprotéticas” promovido sob a égide da ajuda aos veteranos de guerra ou a outra vítimas de distúrbios que afectam o sistema nervoso, como os paraplégicos.
Deve salientar-se, para compreender o estado de desenvolvimento destas tendências distópicas da tecnociência, que foi através dos trabalhos pioneiros do neurólogo José Delgado que se conseguiu, nos anos sessenta, telecomandar pela primeira vez um rato (para além da estimulação motora era também efectuada a estimulação da serotonina) e, a seguir, um touro (é possível encontrar as imagens de uma corrida em cujo toureiro era o próprio Delgado com um joystick em vez das farpas). Num artigo de 1968, Delgado declarava: “a radioestimulação de diferentes pontos na amígdala e no hipocampo nos quatro pacientes, produziu vários efeitos, incluindo sensações de prazer, exaltação, uma concentração pensativa e profunda, sentimentos estranhos, um super-relaxamento, visões coloridas, entre outras respostas” 1. O filósofo alemão, P. Sloterdijk, numa conferência em Roma em 2004, declarou que dentro de poucos anos servirão capacetes blindados para proteger os próprios pensamentos.
Alguns funcionários da Comissão Orçamental do Senado americano redefiniram os financiamentos à DARPA, por causa do carácter sinistro dos muitos projectos que sugerem a intenção de criar uma raça padrão de super-homens. Depois de uma breve tempestade, o sigilo sobre os financiamentos e sobre os projectos da DARPA aumentou drasticamente e a direcção do DSO é assumida por um oficial da US Air Force, S. Wax, e por um pediatra de fama mundial, B. Giroir, oficial sanitário na direcção da Children’s Medical Center de Dallas, encarregado de resolver as questões éticas, sem renunciar às potencialidades do futuro e à vontade de “fazer do mundo um lugar melhor”.
Depois de terminar o seu mandato como dirigente da DSO, Goldblatt passou a trabalhar com a Functional Genetics, fundada por S.N. Cohen, a quem se atribuiu, conjuntamente com H. Boyer, o início da indústria da engenharia genética em 1973. Os dois transformaram a medicina molecular, demonstrando ser possível inserir o DNA de um organismo nas células de um outro. O objectivo dessa companhia é remover ou desactivar os genes que desempenham um papel na propagação das doenças. Um dos seus projectos de pesquisa visa a criação de uma raça de suínos que seja imune à febre suína africana. Quando Garreau lhe pergunta se esta pesquisa “terapêutica” pode abrir o caminho para uma raça de humanos aperfeiçoados, Goldbaltt, excitado, responde: “Exacto, é algo muito parecido.”
κοινωνία
Notes:
- Intracerebral Radio Stimulation an recording in Completely Free Patients, Journal of Nervous and Mental Disease, Vol. 147(4), 1968, 329-340. ↩