Reordenamento das cidades quer apenas dizer “mais lucro”
O direito às cidades está definitivamente ameaçado. Além da especulação imobiliária ou da gentrificação dos centros, a nova lei do arrendamento, responsável por um enorme aumento das rendas, vem deixar bem claro que a vida nas cidades está cada vez mais reservada a uma elite. Com o poder ainda mais concentrado nos proprietários, sejam particulares ou o próprio Estado, é possível assistir a aumentos de renda de 900%, representando um ataque brutal aos moradores, associações ou colectividades.
E um fenómeno que começa por estar centralizado rapidamente se alastra para a periferia. É o caso dos despejos que têm acontecido nos últimos tempos na Amadora, onde as habitações construídas pelos moradores há anos parecem ser uma ameaça à “limpeza” da cidade. Simultaneamente, em bairros de habitações de custo controlado, os chamados bairros sociais, a situação descontrola-se, praticando-se rendas mensais na ordem dos 400€.
Casal da Boba: Programa de Exclusão e Repressão
As barracas e o PER
Em 1993, foi criado o Programa Especial de Realojamento (PER), com o propósito de erradicar os bairros de barracas nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto. Em colaboração com os respectivos municípios, o programa propunha-se realojar os moradores em casas com melhores condições. Contudo, a sua aplicação foi demorada e não previu transformações naturais nos agregados familiares, tais como o nascimento de filhos ou a chegada de novos membros às comunidades. As barracas, descritas como “uma chaga ainda aberta no nosso tecido social” no decreto-lei nº163/93 de 7 de Maio, parecem ser mesmo a preocupação principal, mais do que as condições de vida dos seus moradores. Com efeito, a Câmara Municipal da Amadora (CMA) tem vindo a realizar vários despejos nos últimos tempos, com a finalidade de demolir vários bairros construídos directamente pelos seus moradores.
O Bairro de Santa Filomena tem sido o mais fustigado pelas levas de demolições e os seus terrenos foram já comprados por um fundo imobiliário do BCP. Sempre acompanhadas por um forte dispositivo policial, as demolições neste bairro deixaram já dezenas de famílias na rua. A última foi no passado dia 6 de Maio, deixando nove pessoas sem casa, incluindo idosos e crianças, conforme denuncia o Colectivo Habita. Os relatos feitos pelos moradores denunciam as fortes pressões exercidas pela Câmara para abandonarem as suas casas, onde se podem listar sugestões racistas de regresso ao país de origem, propostas de realojamento mediante a separação do agregado familiar e até ameaças de violência policial caso não aceitem “sair a bem”.
Nos últimos anos foram construídas algumas habitações a custos controlados, ou “bairros sociais”, para realojar bairros já demolidos. Contudo, essas habitações, além de se encontrarem bastante degradadas, sob o olhar indiferente da Câmara, estão actualmente sobrelotadas. A solução encontrada pela CMA para realojar as famílias recenseadas no PER passa então por dificultar o mais possível a permanência dos actuais moradores dos bairros já construídos procedendo a aumentos brutais de rendas através de processos pouco claros e intimidatórios. Não pagando as rendas, segue-se o despejo. Desta forma, a Câmara obtém “novas” casas para realojar outras famílias e repetir o ciclo sempre que necessário. Segundo Rui, morador do Casal da Boba, “há muita chantagem psicológica por parte da Câmara. As pessoas não têm informação, cedem. Têm medo, cedem. Vão buscar dinheiro onde não há para pagarem a renda e se for preciso não têm para comer”.
Habitação de custos descontrolados
Há cerca de dez anos foi construído o bairro do Casal da Boba com o objectivo de realojar os moradores do Bairro das Fontainhas, demolido devido à construção de uma estrada de acesso ao centro comercial Dolce Vita Tejo. Apesar de o bairro ser praticamente novo, os sinais de degradação são bem visíveis, denunciando uma construção apressada e pouco cuidada. A Câmara contudo não parece mostrar qualquer preocupação e responsabiliza os moradores pelos estragos e degradação das suas ruas.
Um olhar da rua para os edifícios permite identificar imediatamente estragos provocados por infiltrações, fendas nas paredes, irregularidades na calçada e até mesmo a existência de falsos ventiladores nos prédios. Dentro das casas o cenário piora: desde problemas graves de humidade, não existência de estores em várias janelas ou de estendais suficientes (tendo os moradores que pagar a sua instalação) ou até mesmo a falta de material de combate a incêndios. No ano passado, um idoso paraplégico morreu num incêndio em casa.
Em alguns andares térreos existem até tampas de esgoto no interior das habitações. Este é o caso de Amélia que tem uma tampa de esgoto na sua casa de banho vendo-se perante frequentes entupimentos do esgoto que já lhe provocaram vários estragos. Após reclamação à Câmara, Amélia recebeu a visita de uma funcionária, que se limitou a olhar para o resto da casa e constatar que era “muito bonita”, acabando por nada fazer em relação aos problemas provocados pela fossa. Amélia paga uma renda de 440€. Relativamente às reclamações de outra moradora do mesmo bairro com um problema também relacionado com infiltrações a resposta da CMA foi curiosa: nada iriam fazer uma vez que os estragos se deviam ao mau uso dos canos.
Nuno, também morador do bairro, mostra uma praceta onde as crianças brincam mas onde a degradação é bem visível: a calçada encontra-se levantada em vários pontos, há inúmeras infiltrações e buracos e até ratazanas mortas. Afirma que a CMA esqueceu o bairro, uma vez que nunca lá aparecem para limpar ou fazer obras, como fazem noutros locais da cidade. São muitas vezes os próprios moradores que têm de improvisar soluções para os estragos, além das pesadas rendas que já têm de pagar. “Nós também somos seres humanos” afirma Nuno. O racismo e os preconceitos associados aos bairros sociais facilitam a culpabilização dos seus moradores, desviando convenientemente a atenção da negligência da CMA.
Uma das moradoras, Celeste, relembra a vida nas Fontainhas. Nesse outro bairro tinha construído a sua própria casa tal como muitos outros moradores. Com as demolições não só lhe destruíram a casa, em prol de um centro comercial que em nada a favoreceu, como ainda lhe impõem uma renda exorbitante por uma casa sem condições, não lhe sobrando dinheiro para alimentação e medicamentos. Uma outra moradora, Maria, conta o caso do seu irmão, trabalhador na CMA, onde este recebe o salário mínimo. Com os pais reformados, o seu salário serve para pagar a renda de 400€, acabando assim por ser devolvido à Câmara. Na prática, está a trabalhar a troco de habitação, refere Maria. Fala ainda de outro caso curioso, em que uma vizinha foi forçada a emigrar e toda a sua família perdeu o direito à habitação. “Ou trabalha e tem algo para dar aos filhos ou fica cá e passa fome” refere Maria.
(todos os nomes são fictícios)
Pequenas colectividades em Lisboa
O Novo Regime de Arrendamento Urbano prevê a liberalização do arrendamento de imóveis para que os senhorios possam aumentar livremente as rendas das casas que têm alugadas, sobretudo em contratos anteriores a 1990. Famílias, idosos e pequenas associações encontram-se numa situação de desespero, em que o Estado e a lei legitimam aumentos de renda súbitos, dando às pessoas um prazo de trinta dias para “negociar” com o proprietário. A lei e as regras matemáticas em vigor para calcular os novos valores de renda não deixam muito espaço para que haja uma renegociação.
Nesta situação encontra-se agora a BOESG, Biblioteca dos Operários e Empregados da Sociedade Geral (ou Biblioteca Observatório dos Estragos da Sociedade Globalizada, nome pelo qual é conhecido o projecto da actual Direcção), localizada na Rua das Janelas Verdes em Lisboa, e cujo contrato de arrendamento foi celebrado no ano de 1960. Este espaço social e arquivo histórico único está em risco de sofrer um aumento brutal da renda, dos 80€ actuais para 700€, que inviabilizará a continuação das actividades da biblioteca. Para justificarem as acções de despejo violentas, os senhorios argumentam recorrentemente que o IMI e outros impostos aumentaram significativamente, mas é sabido que no caso da BOESG, e em muitos outros casos, tratam-se de proprietários que são donos de vários prédios e que recebem já rendas actualizadas da maioria dos inquilinos.
Nesta situação estão também muitas outras colectividades ou microentidades que chegarão ao fim da sua existência, porque não têm capacidade para pagar os valores inflacionados e especulativos que os senhorios agora pedem. É, de facto, mais um estrago da sociedade globalizada, que só permite que os grandes e ricos existam – porque em risco estão pequenos clubes de futebol, pequenas colectividades onde os mais velhos podem conviver e pequenos comércios. Ao telefonar para a linha de apoio do Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana, o Jornal MAPA ficou a perceber que aquilo que está a ser dito às pessoas é que não há nada a fazer, não existe maneira de contornar a nova lei e que “os senhorios têm a faca e o queijo na mão”. No entanto, sabe-se de alguns casos em que as associações conseguiram permanecer nos imóveis, como o caso do Centro de Cultura Libertária, ou o caso da Livraria Olisipo, presente no Largo Trindade Coelho, no centro de Lisboa, há mais de 30 anos. Apesar de ter sido intimada a sair das suas instalações, para dar lugar a mais um projecto para um “hotel de charme”, sabe-se que felizmente conseguiram evitar temporariamente a ordem de despejo, porque a renda da livraria já havia sido aumentada pelo proprietário recentemente.
O Problema é a lógica que impera
Estas situações, os bairros sociais da Amadora ou as colectividades em Lisboa, embora distintas, remetem para a mesma questão: o ordenamento das cidades e organização social baseados no lucro. O lucro dos proprietários (incluindo o Estado) fala mais alto que o direito à habitação e o acesso a espaços de convívio e cultura. Ao mesmo tempo, criminaliza-se qualquer manifestação de autonomia.
E face à lógica de lucro, coloca-se a questão natural de como combatê-la. A união das pessoas e colectivos ameaçados pode ser uma resposta eficaz, como no caso da Amadora em que os moradores se manifestaram na reunião pública mensal da CMA, no dia 26 de Março, trazendo alguma visibilidade aos seus problemas, que são tantas vezes silenciados. Ainda que as respostas por parte das autoridades sejam um simples encolher de ombros e promessas vazias de preocupação.
M. Lima
José Pedro Araújo
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