A Aldeia do Cambedo e o Couto Mixto

17 de Junho de 2014
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Do mesmo modo que só na década de noventa do século vinte se rasgou o véu do silêncio sobre os acontecimentos do Cambedo no rescaldo da Guerra Civil espanhola, também a memória da existência e extinção do Couto Mixto, uma singular entidade organizativa, situada na raia seca galaico-portuguesa, só nessa altura foi resgatada e se deu de novo a conhecer. A história da aldeia de Cambedo está intimamente ligada ao fim daquela experiência de organização comunitária, por mútuo acordo entre os estados português e espanhol, por isso aproveitamos a oportunidade para a divulgar.

 

A aldeia do Cambedo, tal como as vizinhas Soutelinho da Raia e Lamadarcos, foi um “povo mixto” até 5 de Novembro de 1868, momento em que as três passaram a ser integralmente território português, na sequência da aprovação do Tratado de Limites, no qual eram designadas por “povos promíscuos”, depois de anos de negociações entre Portugal e Espanha. Até então, estes povoados eram divididos pela linha de fronteira política entre os dois Estados, dando-se a situação interessante de muitas casas serem divididas pela linha de fronteira, podendo a cozinha estar num país e a sala de jantar no outro, o mesmo é dizer, podia entrar-se por uma porta desde Portugal e sair-se por outra para Espanha.

A moeda de troca nestas negociações foi a integração do “Couto Mixto”, até ali uma entidade política singular, por muitos considerada uma república democrática independente, no Estado espanhol. Contudo, esta troca aparentemente justificada para tornar mais difícil o contrabando, esconde uma decisão política com maior alcance, que era de interesse comum para os dois Estados: pôr fim à “anomalia” com sete séculos de história designada por Couto Mixto. Vários autores situam a sua constituição formal no século XII, entre os anos 1143-1147, e a sua origem no processo de independência de Portugal do Reino de Leão, numa época em que a divisão fronteiriça não estava definida.

O Couto Mixto era um enclave com vinte e sete quilómetros quadrados de superfície, situado na Galiza, entre as serras do Pisco e do Larouco, limitado a sul pela fronteira portuguesa, com três povoações (Santiago, Rubiás e Meaus), que nunca tinham formado parte de qualquer um dos países desde a formação de Portugal, onde viviam entre seiscentos e mil habitantes.

São várias as teorias sobre a origem do Couto Mixto. Entre elas está a que sustenta que a sua fundação deriva de um foral concedido por Sancho I, outra defende que se tratou de um “coto de homiciados”, isto é, «uma jurisdição territorial donde os criminosos que não tivessem sido autores de falsificação de moeda, delito sexual ou religioso, poderiam redimir as suas penas” 1, e também há a lenda da princesa desterrada, que teria sido salva por habitantes do Couto de morrer quando dava à luz, depois de ter sido apanhada ao cruzar a serra por um nevão, e que, agradecida, lhes concedeu a independência e os privilégios.

O “Caminho Privilegiado” unia as três povoações do Couto Mixto com a localidade portuguesa de Tourém, atravessando território de Espanha e Portugal (foto de Ramón Dominguéz Blanco)

O “Caminho Privilegiado” unia as três povoações do Couto Mixto com a localidade portuguesa de Tourém, atravessando território de Espanha e Portugal (foto de Ramón Dominguéz Blanco)

Os habitantes  do  Couto  Mixto  desfrutavam  de  uma série de privilégios 2: Tinham direito a decidir se queriam ser espanhóis ou portugueses ou não optar por nenhuma nacionalidade; não pagavam impostos nem a um país nem ao outro, nem podiam ser recrutados pelos respectivos exércitos; não necessitavam licença para portar armas; podiam cultivar o que quisessem, incluído tabaco, cujo cultivo estava estrictamente controlado, tanto em Espanha como em Portugal; não tinham a obrigação de usar papel selado oficial para nenhum tipo de acordos ou contratos, obrigatório nos dois países; tinham permissão para transportar o que desejassem, sem risco de serem interceptados pelos agentes de autoridade de nenhum dos dois países, por um caminho neutral de seis quilómetros, o “Caminho Privilegiado”, que unia as três povoações do Couto Mixto com a localidade portuguesa de Tourém, atravessando território de Espanha e Portugal.

Dentro do perímetro do Couto Mixto, as autoridades portuguesas e espanholas não podiam entrar em perseguição de ninguém. Este privilégio talvez fosse uma reminiscência das suas origens, contudo, este direito de asilo nem sempre teria sido respeitado pelas autoridades dos dois países. Do mesmo modo, nem sempre foi cumprida a regra de recusar alojamento e passagem de forças militares pelo território do Couto ante a superioridade numérica destas. Foi o que aconteceu aquando das invasões francesas comandadas pelo Marechal Soult; com o contingente militar português de 700 soldados, seguidos por 300 mulheres, comandado pelo General Saldanha, em 1851, na sua retirada para a Galiza durante as Guerras Liberais, que pernoitaram uma noite no Couto Mixto a caminho de Lobios; ou com a ocupação por pequenas unidades militares galegas ou portuguesas, por ocasião das destruições das plantações de tabaco.

O Couto Mixto constituía um território independente dos dois países, com autogoverno, cuja máxima autoridade era um juiz anualmente eleito pelos cabeças de família ou de morada, que por sua vez escolhia dois por cada uma das três povoações, conhecidos como “homes de acordos”. Todos os documentos importantes do Couto Mixto eram guardados numa arca de madeira com três fechaduras e três chaves, cada uma das quais era guardada em cada uma das aldeias, de forma que era necessário o concurso dos representantes das três, com as respectivas chaves, cada vez que se queria abrir a arca. Aquando das invasões francesas, Soult teria mandado queimar todos os documentos nela guardados.

Mantinha várias características próprias da acção popular directa, de que se destacava a figura denominada concello aberto, paróquia aberta, a toque de campá ou simplesmente concello, no qual as decisões para o governo das comunidades eram tomadas na praça pública, no caso o adro da igreja transformado em ágora, pela totalidade dos vizinhos. Dispunha de uma regra, a revogação dos eleitos ou recall, que permitia voltar a chamar a votos para mudar os representantes eleitos antes do fim do seu mandato se fossem detectados incumprimentos nas suas funções. Os seus moradores não necessitavam de guardas,  alfândegas ou exércitos para  velar  pelos  seus  direitos  e  liberdades, os Estados limítrofes,  sim 3.

Estas decisões, a integração dos povos promíscuos em Portugal e do Couto Mixto na Galiza, foram tomadas sem nenhum tipo de consideração pelos habitantes que ali viviam. Uma República politicamente autónoma de características democráticas e com perigosos resíduos assembleários podia ser um mau exemplo a que havia que pôr termo.

 

 Delfim Cadenas
delfimcadenas@jornalmapa.pt

Notes:

  1. GARCÍA MAÑÁ, Luís Couto Mixto. Unha república esquecida. Vigo: Universidade de Vigo.
  2. CAVANAH, William: Universidade CEU de São Paulo, Identidades en la frontera luso-española, 2011
  3. LÓPEZ MIRA, Álvaro Xosé : Xerais, O Couto Mixto: Autogoberno, fronteiras e soberanías distantes, Vigo, 2005

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2 Comentários
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  1. porqué que os habitantes dessaas aldeias nào levam o caso a comunidade europeia e isiguir a sua auto determinaçào a estoria do couto misto nào se apaga com o tratado de lisboa entre Portugal e Espanha é um territorio que tem hitoria e deve ser respeitada pelos dois paises que a quiseram ocultar nào deve haver direito de acabar com a liberdade de um povo que viveu oito seclos com as suas leis e governantes eleitos pelos seu habitantes coias que nào existia nessa altura nem em Portugal nem em Espanha devia ter sido essa auto liberdade que levou os dois paises a os anexar mas mesmo asim a sua historia nào se apaga viva o COUTO MISTO

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