Panegírico a Zeca Afonso
A Associação José Afonso (AJA) 1 dirigiu à imprensa um apelo de evocação dos 30 anos da morte do “poeta, andarilho e cantor” e de divulgação da sua obra. O jornal MAPA aceitou com agrado a invocação e dedica o Retrovisor, desta edição e das próximas, à memória de José Afonso. Os artigos nutrem-se em várias das entrevistas por ele concedidas e divulgadas nos jornais, na rádio e na televisão; em vários livros e artigos publicados sobre ele ou a sua obra; e nalgumas recordações do autor.
José Manuel Cerqueira Afonso dos Santos (José Afonso, Zeca Afonso) nasceu em Aveiro em Agosto de 1929, ainda Salazar não tinha tomado o controle da ditadura que viria a ser derrubada pelo golpe militar de 25 de Abril de 1974, quase quarenta e cinco anos depois. Já não era moço quando aquela que, hoje, é a mais conhecida das suas obras, “Grândola, vila morena”, serviu de senha indicadora de que as operações militares passavam a estar em marcha irreversível e marcou indelevelmente o processo por elas iniciado.
O 25 de Abril não teria sido o mesmo sem a “Grândola”. As mensagens contidas nos seus versos, “…terra da fraternidade, o povo é quem mais ordena, dentro de ti ó cidade… em cada esquina um amigo, em cada rosto igualdade…”, ainda que de forma subliminar, deram um mote para o novo tempo que começava, do mesmo modo que funcionaram como contraponto aos apelos à população para que se mantivesse em casa, incluídos nos comunicados do posto de comando do MFA. E aparentemente não houve intenção deliberada nesta escolha, uma vez que a canção de José Afonso inicialmente escolhida por Otelo para o segundo sinal rádio do 25 de Abril era “Traz outro amigo também”, substituída à última hora pela “Grândola”, porque esta não estava proibida pela censura.
Até chegar a este ponto, José Afonso tinha vivido uma vida rara. Oriundo de uma família da pequena burguesia (o pai, José Nepomuceno Afonso, era magistrado de direito ultramarino e a mãe, Maria das Dores Dantas Cerqueira, professora primária), resumiria em poucas palavras, numa entrevista publicada num momento em que a doença que o vitimaria já o impedia de fazer uma vida normal, a consciência que tinha de si mesmo: “Sou um pequeno-burguês, filho de um juiz do Supremo que fez carreira nas colónias. Isto e uma infância vivida na solidão deixa marcas de cuja importância só nos damos conta muito mais tarde”; e dissipava possíveis dúvidas sobre a avaliação que fazia do seu próprio percurso, acrescentando: “Não me arrependo de nada do que fiz. Mais: eu sou aquilo que fiz” 2.
José Afonso teve uma infância e uma adolescência atípicas, marcadas por longas separações do convívio com os progenitores, colocados nas colónias. Em períodos alternados com as estadias em Angola e Moçambique, foi acolhido pelas famílias de quatro tios e tias, em Aveiro, Belmonte e Coimbra. Ali, quando ainda era estudante no curso de Ciências Histórico-Filosóficas da Faculdade de Letras, casou-se sem o conhecimento prévio dos pais, com uma jovem costureira de condição humilde, Maria Amália, mãe do seu primeiro filho, José Manuel, e da sua filha, Helena, de quem viria a separar-se no final da década de cinquenta. Este casamento motivaria um corte de relações durante algum tempo por parte do pai. Estes e outros aspectos da sua biografia não serão aqui aprofundados por falta de espaço, pelo que remetemos o leitor para as obras biográficas publicadas 3, onde transparece a vida intensa, mas nada fácil de Zeca Afonso.
Desde a época de estudante liceal destacara-se na interpretação dos temas clássicos do fado de Coimbra 4, em serenatas e festas de aldeia. O matrimónio não o afasta da boémia coimbrã, mas com o nascimento do seu primeiro filho, em 1953, viu-se obrigado a buscar trabalho para sustentar a família, fazendo revisões e dando explicações, ao mesmo tempo que prosseguia os estudos universitários. Neste ano gravou em disco os primeiros fados de Coimbra e iniciou o cumprimento do serviço militar obrigatório. A “falta de aprumo militar” determinou que fosse o último classificado do seu curso de oficiais milicianos. “Aqui dentro parecemos bonecos articulados que se encontram nas barracas das feiras e que saltam quando o tiro acerta no alvo: o meu tenente dá licença para aqui, o nosso capitão permite-me para acolá”, escrevia para Moçambique numa carta aos pais, onde também lhes solicitava o envio de 1500 escudos à Maria Amália, que permanecera em Coimbra com o filho. Quando despiu definitivamente a farda do exército, em 1955, e retomou os estudos para concluir o curso, já tinha nascido a sua filha Helena.
A falta de dinheiro para a sobrevivência da família levou-o a interromper os estudos em 1957, iniciando a sua actividade docente, como professor de História, num colégio particular, em Mangualde, onde foi encontrar um mundo substancialmente diferente do ambiente coimbrão, em que tudo gravitava à volta do universo estudantil. Ali verifica que os professores e directores acabavam por ser menos repressivos que o sistema familiar: “Lambada em carne fresca é que é preciso. Arreie-lhe sô professor…” 5. O convívio com esta nova realidade trouxe-lhe a oportunidade de iniciar a pesquisa de temas da música tradicional portuguesa. Uma versão popular de “Milho verde”, um dos temas do álbum “Cantigas do Maio” gravado alguns anos depois, recolheu-a de um aluno naquela vila beirã. Este primeiro contacto com o ensino permitiu-lhe aperceber-se também das contradições para as quais não estava preparado técnica e profissionalmente como professor. Contudo, o gosto por ensinar ajudou-o a sublimá-las, prosseguindo a docência numa peregrinação que o levou sucessivamente a Aljustrel (apesar de ter estado ali apenas alguns meses, teve uma despedida multitudinária na estação dos caminhos de ferro, por parte de estudantes e populares), Lagos, Alcobaça e Faro (onde o contacto com os trabalhadores-estudantes dos cursos nocturnos lhe abriu novas vias na sua experiência). Mais tarde, já depois de expulso do ensino oficial, expressava a sua opinião sobre aquela actividade a que estivera ligado dez anos: “um ensino de rotina, um ensino de quadro preto, um ensino verbalista, não me interessava, é pouco criativo. Até mais: o ensino destrói a criatividade tanto do próprio professor como do conjunto dos alunos” 6.
O papel transformador de José Afonso no panorama musical português começou com o desvio ao fado de Coimbra, considerado por ele “demasiado sebentarizado” (numa alusão às famosas sebentas das cadeiras dos cursos, limitativas do universo de consulta dos alunos, nas quais era cristalizada a ideia de que existe uma só verdade: a que sai da boca do professor). Como intérprete desta canção tinha atingindo um nível de reconhecida qualidade, materializado na gravação de três discos, entre 1953 e 1956. No final daquela década, para José Afonso, o fado de Coimbra, cujas formas considerava já esgotadas, “atingira uma fase de saturação” 7. Paralelamente, começara a manifestar o seu desacordo com “uma certa mentalidade que atribuía ao estudante de capa e batina um papel singular, a quem eram permitidas atitudes que de forma nenhuma se perdoariam aos populares” 8. Da conjugação destas duas conclusões surgiria a nova canção coimbrã, que trazia associada uma posição frontal contra a praxe estudantil. No plano musical, alterou o acompanhamento instrumental tradicional, “com a guitarra de Coimbra, parecia que tocava com arame farpado”, privilegiando a viola, que o deixava mais livre para fazer a sua música; e substituiu a mensagem dos fados clássicos pela sua própria poesia ou por temas baseados na música popular portuguesa. Para distinguir esta sua nova expressão denominou-a de “baladas” e passou a cantar sem capa e batina, considerada grave infração à praxe coimbrã, o que lhe valeu muitas ameaças e conflitos. Mais tarde chegará a afirmar: “o fado de Coimbra não me marcou nada (…), era um pretexto para a malta cantar de noite, levar uns garrafões de vinho, beber umas aguardentes, fazer umas viagens com a Tuna e o Orfeão e pouco mais” 9.
José Afonso era um compositor autodidata dotado de um instinto musical que lhe permitiu criar uma vasta obra sem ter formação específica, sem escrever música: “só sei dois ou três tons de viola, de modo que componho de cor, imagino as melodias… e realmente acato muito as apreciações das pessoas em quem deposito confiança”. Era professor em Faro, quando gravou o seu primeiro disco em 45 rotações, “Balada do Outono”(1960) 10. As canções já não eram fados de Coimbra, tanto na temática como na interpretação, e anunciavam que algo ia mudar na música portuguesa. A “Balada do Outono” é considerada um exemplo de transição entre o fado e a balada, curiosamente no refrão dizia: “Águas das fontes calai, ó ribeiras chorai, que eu não volto a cantar”. Voltou com mais baladas em 1962, já tinha começado a guerra em Angola e vivia-se o ambiente da crise académica, com contestações estudantis violentamente reprimidas, que se prolongaram por todo o ano e que contribuiriam para o envolvimento na contestação política e cultural ao Estado Novo de muitos da sua geração, alguns dos quais chegariam a posições de poder no Estado depois do derrube da ditadura. Este segundo EP, designado simplesmente “Baladas de Coimbra”, inclui “Menino d’oiro”, dedicada ao seu primeiro filho. No ano seguinte gravou o disco que surpreenderá todos aqueles que participavam no movimento de transformação da canção coimbrã. A designação repete-se: “Baladas de Coimbra”; inclui dois temas, “Menino do bairro negro” e “Vampiros”, que foram as bases estéticas 11 de uma intervenção de protesto através da música, que não parará de crescer. O alcance destas canções revela a genialidade de Zeca Afonso, expressa na simplicidade da música popular. A sua modernidade pode ser verificada hoje e enquanto perdurar a injustiça, a exploração e a repressão. É claro que artilharia deste calibre tinha de ser silenciada, a censura do Estado Novo rapidamente as proibiu, mas essa decisão já não podia impedir o aparecimento desta nova expressão da música portuguesa. Por esta altura José Afonso começara a frequentar colectividades e a cantar regularmente nos meios populares. De uma destas actuações, em 1964, na Sociedade Fraternidade Operária Grandolense, proveio-lhe a inspiração para compor a “Grândola, vila morena”.
A angústia provocada pelo afastamento dos filhos, que se encontravam à guarda dos avós paternos em Moçambique depois da separação, levou Zélia, a companheira com quem vivia depois da sua ida para Faro, a sugerir-lhe a partida para a capital moçambicana. A sua chegada a Lourenço Marques, hoje Maputo, coincide com o início da luta armada contra o colonialismo português: “quando em 1964 fui para Moçambique estava interessado em conhecer as pessoas e o país em que ia trabalhar. Porque eu já considerava aquilo um país, com a identidade própria que o caracterizava. Tinha uma vaga percepção de que era uma realidade intocável, diferente da nossa, e que aquela é que estava certa naquele meio e naquele ambiente” 12. Apercebeu-se como professor que havia duas realidades completamente distintas: aquilo que ia ensinar não tinha nada que ver com a maneira de estar dos africanos na sua própria terra, nem com o seu passado. Conviveu com intelectuais moçambicanos e passou a frequentar os subúrbios, onde conheceu, ouviu e gravou a música local. Para além da sua actividade de professor do ensino oficial, dava aulas, acompanhado por Zélia, num centro associativo de negros. Eram os únicos brancos a desenvolver tal actividade e, como era de esperar, a reacção dos interesses instalados não se fez esperar, sendo transferido compulsivamente para a cidade da Beira, no litoral da parte central da colónia. Aqui assistiu revoltado às manifestações festivas dos colonos portugueses que exultavam pela declaração unilateral da independência da Rodésia. Continuou as actividades de recolha e registo das envolvências dos bairros africanos, da sua música e dos seus costumes, alimentando-se da sua cultura, o que lhe serviria para composições futuras, como “Lá no Xepangara”, uma bela canção-retrato da vida de um bairro de tabancas no tempo colonial. Com o seu irmão João Afonso e os amigos do cine-club local encenaram “A excepção e a regra”, de Brecht, com música da sua autoria. Sob observação permanente da PIDE, vivendo um sistema colonial para si insuportável por mais tempo, José Afonso, em 1967, decide regressar a Portugal com Zélia, Helena e a sua filha Joana, ali nascida em 1965; Zé Manuel fica ao cuidado dos avós e da sua irmã Maria. Regressava com o objectivo de retomar a sua actividade de professor em Faro e não fazia ideia exacta de que as suas canções tinham continuado a escutar-se e a ser cantadas nos ambientes da oposição ao regime.
Quando o barco atracou no cais de Alcântara, a única pessoa que o esperava era um jornalista da rádio, Adelino Gomes, a quem declara estar na disposição de ser exclusivamente professor, porque era seu propósito firme abandonar as cantigas. Este informa-o que havia grandes expectativas à volta dele, ao que Zeca respondeu: “Vou para o Algarve, vou deixar de cantar, porque isto de cantar não quer dizer nada, não interessa a ninguém”; explicando-lhe ainda que não lhe daria a entrevista que lhe solicitava porque já não se considerava um cantor. Perante a insistência: “Mas você não pode deixar de cantar, você é extremamente importante, para os estudantes, para a malta, aquilo que você canta diz-nos tanto, é através da sua voz que nós chegamos lá. Nós na rádio quando queremos dizer qualquer coisa dizemo-lo através das suas canções” 13, lá lhe deu a entrevista. José Afonso referir-se-á mais tarde a esta importância “exagerada” que encontrou no regresso de Moçambique “fui rodeado por um mito quase sebastianístico (…) constatei com alguma surpresa, que à minha volta se formava um clima de expectativa, como se eu viesse trazer alguma coisa de novo (…) Parecia que as pessoas queriam manifestar-se e não sabiam como. E agora estava ali um tipo que falava em vez deles” 14.
Regressou a Faro para exercer a actividade docente, mas pouco depois foi colocado em Setúbal. A chegada à cidade do Sado implicou um envolvimento nas actividades dos círculos mais variados da oposição ao regime, participando com outros dos cantores da música de protesto 15 nas sessões de convívio cultural nas colectividades populares da Margem Sul e em actos das associações e pró-associações de estudantes de Lisboa, nas quais o PCP como organização clandestina tinha a maior influência. As condições técnicas em que estas actividades decorriam eram muito precárias, a maior parte das vezes nem microfones havia, e muito menos “cachet”, quase sempre vigiadas e muitas interrompidas ou proibidas pela PIDE. Por esta altura foi convidado a aderir ao PCP. Declinou o convite, uma das atitudes ilustrativas da sua rebeldia permanente e do seu imaginário sem rédeas, incompatíveis com a disciplina partidária. “Sou o meu próprio comité central”, sublinhava nas conversas com companheiros e amigos sempre que o tema aflorava.
Toda esta actividade resultou num esgotamento que o levou ao internamento hospitalar durante 20 dias. Quando voltou a casa tinha sido expulso do ensino oficial por motivos políticos. De modo fortuito, por mais paradoxal que possa parecer, esta decisão do aparelho repressivo salazarista deu-lhe mais um empurrão para as cantigas. Confrontado com as necessidades da sobrevivência, viu-se obrigado a repensar a continuação da carreira musical, interrompida quando da ida para Moçambique, e profissionalizou-se. O contrato com a Orfeu, discográfica que teve a coragem de o editar, apesar dos riscos de ver os discos apreendidos pela censura, é sui generis: contra o pagamento de uma mensalidade, José Afonso tinha de gravar um álbum por ano. Contrato que cumprirá. Passa a viver uma situação original: era profissional do disco, mas não se considerava um cantor profissional porque não cantava em espectáculos. Compensava esta ausência dos palcos cantando em sessões populares e em colectividades de cultura e de recreio, onde vivia experiências diferentes “há mais qualquer coisa para lá das canções (…), uma esfera afectiva, comunitária, que é propensa ao despertar de uma série de preocupações (…), os sectores que consomem a minha música gravada são menos extensos do que aqueles que a ouvem” 16. Os relatórios do posto da PIDE em Setúbal enviados para a sede, em Lisboa, revelam a vigilância permanente a que estava sujeito. “Além de bastante conhecido pelas canções subversivas que compõe e interpreta”, está referenciado em inúmeras reuniões clandestinas, desenvolve larga atividade nos meios ‘culturais’, ‘democráticos’, e recebe em casa muitos indivíduos estranhos, alguns deles estrangeiros, principalmente espanhóis. Sai de casa normalmente depois do almoço, instala-se na esplanada do Café Central, junta imediatamente à sua volta larga assistência de ‘jovens’, aos quais vai insinuando a sua doutrina, provocando a maior desorientação nesse meio”.
De 1968 a 1974, pelo Natal, José Afonso publicou todos os anos um álbum. Com “Cantares de Andarilho”, “Cantos Velhos Rumos Novos” e “Traz outro amigo também” 17, produziu uma transição no seu percurso estético-musical, recuperando formas musicais e poéticas ancestrais, e alargou o acompanhamento musical a novos instrumentos. Para além da sua poesia, cantou vários poetas portugueses, autores surrealistas e versões de temas da música tradicional portuguesa.
Em 1971, quando embarcava para gravar em Paris o álbum “Cantigas do Maio” 18, foi detido no aeroporto pela PIDE e interrogado durante um dia sobre a distribuição de um manual de guerrilha urbana, ficando preso e incomunicável durante outros vinte dias, naquela que foi a mais prolongada das suas várias detenções.
No Natal de 1972 foi lançado o álbum “Eu vou Ser Como a Toupeira”. Poucos dias depois, no final do ano, na Capela do Rato, Zeca apoiava uma acção de jejum contra a guerra colonial coordenada por um grupo de “católicos progressistas”, com ocupação das instalações do espaço religioso, mantendo as portas abertas a todos aqueles, crentes e não crentes, que desejassem debater o problema da guerra colonial, manifestando assim o crescente mal-estar provocado por uma guerra injusta e sem saída. Nesta acção participaram também as Brigadas Revolucionárias, com a colocação de petardos, cujo rebentamento provocava a distribuição de panfletos com a informação do acontecimento, em vários locais estratégicos de Lisboa e da Margem Sul. Dias antes da ocupação da Capela do Rato o Exército português tinha massacrado as populações civis das aldeias de Wiriyamu, Juwau e Chawola, em Moçambique, soube-se meses depois.
No decorrer deste período de dedicação já exclusiva à actividade musical, cantou em Madrid e Barcelona, nas Astúrias e Galiza (onde pela primeira vez, em 1972, interpretou em público a “Grândola”), França, Bélgica, Inglaterra, Cuba e no Brasil (em representação de Portugal no VII Festival Internacional da Canção Popular, depois de ter sido escolhido pelos votos dos leitores do Diário de Lisboa, interpretando “A morte saiu à rua”, uma canção que evocava o assassinato do escultor Dias Coelho, militante do PCP, pela PIDE, uma actuação a que o público reagiu mal, reação enfatizada na imprensa do regime). Nos países europeus actuava junto aos núcleos da emigração e mantinha contactos com a diáspora no exílio. Ficou conhecido um episódio provocatório, protagonizado por militantes afectos a uma organização maoísta, num concerto designado “Chanson de Combat Portugaise“ 19, realizado na sala parisiense La Mutualité, em Novembro de 1970. Começou com a distribuição de um panfleto à entrada em que acusavam Zeca de pactuar com o regime e com essa atitude poder continuar a viver em Portugal e a gravar discos. As provocações continuaram durante as actuações de Sérgio Godinho, José Mário Branco, Tino Flores, Luís Cília e, quando chegou a sua vez, Zeca Afonso perante as “bocas” que interrompiam as canções, desafiou os provocadores a ir ao palco e o concerto acabou à lambada.
Em Abril de 1973 José Afonso seria preso de novo, durante 20 dias, período em que compôs parte das canções do disco “Venham mais cinco”, editado no final desse ano. Esta nova detenção ocorreu poucos dias depois do 3º Congresso da Oposição em Aveiro, no qual tinha participado e cantado. A propósito das suas detenções e da perseguição que o regime movia aos seus opositores, afirmaria mais tarde numa entrevista: “estive incomunicável, mas nunca me torturaram fisicamente. Alguns intelectuais afirmam ainda hoje que a minha geração foi muito castigada, mas eu não penso isso. Mesmo a repressão foi adaptada aos bons costumes deste povo. Não se mata um governante em Portugal há 75 anos. Isso diz tudo, se pensarmos que tivemos o regime fascista mais longo da história contemporânea” 20.
A 29 de Março de 1974, iniciava-se com meia hora de atraso, no Coliseu dos Recreios, em Lisboa, o primeiro Encontro da Canção Portuguesa, com a participação dos cantores 21 da oposição ao Estado Novo que estavam no país. Esta demora devia-se às diligências de agentes da censura e do Director-geral dos Espectáculos que nos bastidores sugeriam aos organizadores, a Casa da Imprensa, o “bom senso de cancelar o espectáculo”, com o argumento de que a censura tinha recusado dezenas de canções, proibindo que se cantassem versos de algumas outras. A situação era bastante tensa e o Coliseu, com a sala de espectáculos a abarrotar com mais de seis mil espectadores que pateavam e entoavam canções proibidas, estava cercado por centenas de elementos da polícia de choque, equipados com canhões de água e de tinta azul, bastões, gás lacrimogéneo, polícias a cavalo e cães. Na rua, espalhadas pelas imediações estavam mais de mil pessoas, que não arredavam pé, apesar de impossibilitadas de entrar na sala. José Afonso, tido entre os seus pares como o fundador do movimento de música de protesto, encerrou a sessão cantando “Grândola, vila morena” e “Milho verde”, os únicos temas que lhe foram autorizados. Logo a seguir, com todos os outros músicos no palco de braços entrelaçados, oscilando da esquerda para a direita, em cadência alentejana, no que foram imitados pelo público, foi cantada de novo a “Grândola, vila morena”. Sem pausa nem transição, os últimos versos da canção fundiram-se, entre aplausos, com os primeiros do refrão do hino nacional, “às armas, às armas, sobre a terra sobre o mar, às armas, às armas…” 22, entoado pelo público num clima de grande emoção. O canto prolongou-se pelas ruas limítrofes, à medida que os assistentes iam abandonando o Coliseu, com a sensação de que a situação do regime era insustentável e algo estava a mudar.
Vinte e seis dias depois, “Grândola, vila morena” era emitida pelos emissores do Rádio Clube como sinal para o início das operações militares do golpe de Estado de 25 de Abril, mundialmente conhecido como “A Revolução dos Cravos”, convertendo-se logo a seguir no seu hino. Passados quarenta anos ressoa para silenciar discursos de ministros e em manifestações de resistência e protesto em Portugal e além fronteiras 23. Enquanto houver força, “cantai rapazes, dançai raparigas e vós altivas cantai também”.
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Segunda Parte: Do 25 de Abril ao 25 de Novembro
Terceira parte: O Canto do Cisne
Notes:
- Apresentada publicamente nove meses depois da morte de José Afonso. A AJA “é uma associação cultural e cívica, não confessional, formada em torno da memória e do exemplo de José Afonso”, propondo-se, como primeiro objectivo, “dar a conhecer, nas suas múltiplas facetas, a personalidade e o papel de José Afonso e promover a difusão da sua obra”. Conta com 13 núcleos em funcionamento de norte a sul do país e uma página web (goo.gl/p0O1Pv) que divulga a actividade relacionada com os seus objectivos, onde pode consultar-se um acervo de documentação e ouvir on-line grande parte da obra de José Afonso. ↩
- Entrevista a José Amaro Dionísio, in Expresso, 15 de Junho de 1985. ↩
- “José Afonso o Rosto da Utopia”, por José A. Salvador, Edições Afrontamento, Porto, 1999; “Zeca Afonso, As Voltas de Um Andarilho”, por Viriato Teles, Ulmeiro, Lisboa, 1999; José Afonso. Um Olhar Fraterno, por João Afonso, Editorial Caminho, Lisboa, 2002; página web da AJA, Associação José Afonso. ↩
- No Liceu D. João III conheceu António Portugal e Luis Goes, futuros companheiros de andanças musicais e, também, protagonistas da “nova vaga” do fado de Coimbra. ↩
- “Zeca Afonso, As Voltas de Um Andarilho”, por Viriato Teles, p. 44,Ulmeiro, Lisboa, 1999. ↩
- Entrevista a A.-P. Vasconcelos, E. G. Carneiro e J. A. in Cinéfilo n.º 8, Lisboa,1973. ↩
- Entrevista a José Armando Carvalho, in Comércio do Funchal, 1 de Junho de 1970. ↩
- Entrevista à RTP em 1980. ↩
- Entrevista a A.-P. Vasconcelos, E. G. Carneiro e J. A. in Cinéfilo nº 8. Lisboa,1973. ↩
- Com Rui Pato à viola, que o acompanhará como instrumentista nos anos seguintes. ↩
- Às quais se junta “Trova do vento que passa”, poema de Manuel Alegre musicado por António Portugal e interpretado por Adriano Correia de Oliveira, perseguindo ainda de perto a linha melódica do fado de Coimbra. ↩
- “Zeca Afonso, As Voltas de Um Andarilho”, por Viriato Teles, p. 48, Ulmeiro, Lisboa, 1999. ↩
- Entrevista a Joaquim Vieira, documentário “Maior que o pensamento”, parte II, 2011. ↩
- Entrevista à Vida Mundial, 15/12/72. ↩
- Participavam nessas sessões Manuel Freire, José Jorge Letria, Francisco Fanhais e Benedito Garcia. A quem nos anos seguintes se juntam Fausto, Vitorino, A. P. Braga, Carlos Moniz e Nuno Santos. ↩
- Entrevista a A.-P. Vasconcelos, E. G. Carneiro e J. A. in Cinéfilo, n.º 8. Lisboa,1973. ↩
- Álbum que teve a colaboração de Carlos Correia (Bóris), por impedimento de Rui Pato que cumpria o serviço militar. ↩
- Inicia a colaboração com José Mário Branco, produtor deste álbum. ↩
- O concerto pode ouvir-se na íntegra aqui: https://arquivos.rtp.pt/conteudos/concerto-la-chanson-de-combat-portugaise/. ↩
- Entrevista a José Amaro Dionísio, in Expresso, 15/6/85. ↩
- Adriano Correia de Oliveira, Manuel Freire, Fausto, José Jorge Letria, José Barata-Moura, Fernando Tordo, Carlos A. Moniz e Vitorino. Participaram também, entre outros, o poeta Ary dos Santos e o compositor e guitarrista Carlos Paredes. Os impedidos de estar presentes: José Mário Branco, Sérgio Godinho, Francisco Fanhais e Luís Cília foram evocados por Adriano e fortemente aplaudidos pelo público. ↩
- Pode ouvir-se parte substancial do concerto, editado, aqui. ↩
- A 16 de Fevereiro de 2013, na Plaza del Sol em Madrid, “Grândola, vila morena” foi cantada no decorrer de um acto da Plataforma de los Afectados por las Hipotecas, PAH. ↩
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[…] Primeira Parte Segunda Parte: Do 25 de Abril ao 25 de Novembro […]
Evocar o Zeca é uma tarefa que todos fazemos com a saudade das memórias que ninguém pode apagar. Em Mira, em 2012, ele foi lembrado com a presença de muitos dos seus amigos.