Quando os pescadores pararam os petroleiros no mar de Sines
A greve verde de 1982 e os danos ambientais da indústria petrolífera
“Chegaram as máquinas para talhar a cidade que vem
das águas cresce a obra do homem, ouve-se um lento grito d`espuma e suor
na memória ficaram os sinais dos bosques ceifados, as dunas desfeitas e algumas
casas abandonadas
estenderam-se tubos prateados, onde escorre o negro líquido
levantaram-se imensas chaminés, serpenteiam auto-estradas na paisagem
irreconhecível do teu rosto
onde estarão as tâmaras maduras de tuas palmeiras?
e o perfume intenso das flores debruçando-se ao sol?
que murmúrio terão as pedras do teu silêncio?
a memória é hoje uma ferida onde lateja a Pedra do Homem, hirta como uma
sombra num sonho
e as aves? frágeis quando aperta a tempestade… migraram como eu?
aonde caminhas, Doce Moura Encantada?
ouço o ciciar dos canaviais dentro do sono, adivinho teu caminhar de beijos no
rumor das águas
tuas mãos de neve recolhem conchas, estrelas secretas, luas incendiadas… que o
mar esconde na respiração das marés
estremecem-me nas mãos os insectos cortantes do medo, em meu peito doído
ergue-se esta raiva dos mares-de-leva”
Al Berto
In MAR-DE-LEVA (sete textos dedicados à vila de Sines), 1976
Amanhece em Sines e abrindo as janelas o ar anuncia-se pesado. Há que descer à praia receando esse ar irrespirável que vai invadindo a vila. Mas desde a noite de véspera, desse dia 2 de Outubro de 2016, as águas flutuavam inquietas com um novo derrame de combustível no terminal de contentores do porto de Sines. Nesse ex libris da modernidade portuária a Polícia Marítima de Sines declara aos meios de comunicação social não conseguir identificar de imediato a origem do derrame que tem lugar junto a dois navios que se reabasteciam no terminal XXI. E como se não bastasse, pelas 10.30 dessa mesma manhã na Central Termoeléctrica da Repsol Polímeros, ouve-se um disparo. Uma chama alta surge acompanhada – uma vez mais – de um fumo negro.
O fumo negro no ar e os hidrocarbonetos no mar de Sines arriscam-se a ser afinal coisa rotineira no quotidiano sineense. Vem à memória a persistente nuvem de fumo de Maio de 2012, resultante de um curto-circuito na refinaria da Petrogal que obrigou à paragem da produção originando uma intensa emissão de fumo negro com origem na flare – chama que fica acesa nas torres da refinaria para queimar os gases que não podem ser aproveitados – e que aqui chamam sem desabono da verdade de facho… O percalço motivara nesse ano algumas movimentações públicas contra a poluição, da população farta e receosa do pestilento cheiro vindo do complexo industrial de Sines. Uma iniciativa que se esfuma ciclicamente na apatia paga pelo salário a troco da saúde e não menos pela canibalização desses movimentos pela classe política que localmente sustenta – ou é sustentada – pelas empresas poluidoras. A autarquia, lavando as mãos sujas, tem o velho hábito de colar as suas “boas intenções” a tais movimentos de protesto.
2016 foi, porém, um ano anormal no que respeita a movimentações “ambientais” no país. Os protestos contra a exploração de petróleo e gás subiram de tom e surpreenderam todos. As questões energéticas e os problemas dos recursos fósseis como o petróleo começaram lentamente a ser traduzidas em linguagem comum. Não havendo sequer necessidade de fazer uso de tais argumentações ecológicas, académicas ou políticas já antes haveria que recordar os inúmeros e repetidos acontecimentos do dia-a-dia de Sines. Como a história desse “«pescador desportivo» que chegou a casa, arrumou ao fresco o peixe pescado e, no dia seguinte, quando abriu o frigorífico, um cheiro pestilento a petróleo invadiu tudo”. (1)
Há quase 40 anos, desde a inauguração do complexo industrial de Sines em 1978 que ouvimos estas histórias. Mas em 2016, ao invés do Algarve, na costa vicentina ou Peniche, em Sines não parece falar-se da exploração de petróleo e gás. Mesmo com fumo negro e o mar manchado.
Apenas o presidente da Autarquia veio declarar a sua boa expectativa com as perfurações na costa pelo consórcio detido pela ENI, afirmando que as questões ambientais não se levantam nesta altura. (2)
Fala-se, porém, de uma comunidade “resiliente” a propósito do documentário “Mar de Sines” de Diogo Vilhena, sineense que se uniu ao trabalho de salvaguarda da memória da pesca e dos pescadores de Sines. Para lhes fazer “uma homenagem, sem ser aquela homenagem paternalista, derrotista, ou de que é uma coisa que vai deixar de existir, mas sim de orgulho por cada história, por cada vivência, por cada memória”. Ciente de uma realidade em que “num futuro breve a pesca como a conhecemos actualmente, tradicional, com muito respeito pelo mar, pelo pescado, pelos próprios colegas, vai desaparecer”. (3)
Somemos agora a essas razões o alarme da poluição em Sines. Em 2016 a central termoelétrica da EDP é quem mais polui a atmosfera em Portugal, emitindo grandes quantidades de dióxido de carbono, fluoretos, compostos inorgânicos, mercúrio ou dioxinas, entre outros poluentes. (4) Segundo dados de 2015, a central de Sines destaca-se à frente do top das empresas que mais emitem gases com efeito de estufa: com mais de 13% das emissões totais de Portugal. (5)
Por esses dois motivos, a herança da pesca e a poluição, é da maior actualidade recordar a que foi apelidada a primeira greve verde em Portugal. Corria o ano de 1982 e os pescadores recusaram render-se à condenação das suas vidas, à poluição do ar e do mar.
Estenderam-se tubos prateados, onde escorre o negro líquido
A década de 70 foi avassaladora para a tradicional população de Sines. Para lá dos estivais banhos do Alentejo era uma terra conhecida pela pujante classe de corticeiros, pela pesca e agricultura. Quando Marcello Caetano decreta em 1971 o grande complexo portuário e industrial nada mais será igual. Ultrapassado o compasso de espera imposto pela crise do petróleo de 1973, o desígnio industrial da região será retomado com o 25 de Abril. “A instalação do complexo muda a paisagem humana do concelho. Entre 1972 e 1981, a população da área de Sines cresce 92 por cento (…) o nível médio de rendimentos cresce significativamente, mas os pescadores (pela pressão ambiental sobre os recursos marinhos) e pequenos e médios proprietários agrícolas (pelas expropriações) são prejudicados” sintetiza uma resenha municipal. (6)
Em 1978 a refinaria da Petrogal e o porto industrial começam a funcionar. O primeiro ano de laboração da refinaria, com alguns ensaios à mistura, traduziu-se no tratamento de 5,5 milhões de toneladas de petróleo. (7) Nessa mesma data Ribeira de Moinhos – a zona das terras agrícolas que restam e das captações de águas que abastecem Sines – ocorrem constantes derrames dos efluentes da refinaria nas linhas de água. A partir de 1980 juntam-se as descargas das novas fábricas do complexo petroquímico. Não há estações de tratamento de águas e o fedor invade os campos. Mas as descargas da refinaria através do tubo submarino a uma milha da costa norte levam-nos ainda directamente ao largo, onde os petroleiros lavam os tanques cujo crude acosta já às praias de S. Torpes e Sines.
Em Janeiro de 1982 os pescadores irrompem com um balde da faina mal cheirosa na Câmara Municipal que Francisco do Ó Pacheco presidia desde 1976. Liderando a autarquia até 1997 pelo Partido Comunista Português o autarca editará em 1999 uma “Crónica da Primeira Greve Ecológica em Portugal” (8) da qual retiramos algumas das citações. Nesse ano de 82 que se iniciava, seis anos depois de ser eleito, Francisco do Ó Pacheco decide-se finalmente a passar dos ofícios oficiosos às autoridades e ao Gabinete da Área de Sines, para o terreno: para “contactar com os pescadores e mobilizar a população de Sines para o que desse e viesse”. Era então primeiro-ministro o fundador do PSD Francisco Pinto Balsemão, as Pescas estavam nas mãos de Basílio Horta fundador do CDS-PP, ao qual pertencia ainda o Ministro da Indústria e Energia, o engenheiro químico industrial Ricardo Bayão Horta. E era Ministro de Estado e da Qualidade de Vida Gonçalo Ribeiro Telles, embora Sines não figure no legado ecologista que lhe é comummente evocado.
Ouve-se um lento grito d`espuma e suor
O protesto dos pescadores de Sines estava latente desde o primeiro bloco de betão ter caído no molhe. Acaba por ser conduzido pelo PCP através da autarquia, que tem a intenção desde logo de o concertar com um leque de protestos mais vasto, pois depois da greve geral de 11 de Fevereiro desse ano fora marcada nova greve a 11 de Maio. O certo é que havia que reagir perante o evidente abandono da actividade piscatória nos planos de desenvolvimento de Sines. Não querendo perder de vista o controle e a mediação institucional a Câmara Municipal decide “frequentar os locais públicos mais habituais dos pescadores, desde a lota da ribeira, aos cafés, tabernas, ruas e largos” e claro com “toda a atenção aos divisionismos, aos sectarismos político-partidários, aos radicalismos”.
Mas era um balde de faina mal cheirosa, um pescado intragável e um odor insuportável que, para lá das jogatanas e dessa costumeira política dos eleitos, verdadeiramente movia e agitava os pescadores e a população de Sines que passara a recear o que trazia da lota. A poluição é palavra repetida à exaustão, apresentada no dia-a-dia e à mesa pelo progresso que chegara a Sines. Não era necessário aguardar as perícias ao peixe requeridas ao Laboratório da Polícia Científica. Até porque quando os resultados das análises chegam por ofício da Direcção Geral de Saúde a 26 de Março, estas concluem não parecer haver “implicações na Saúde Pública”…
Domingo, 23 de Maio. Fora convocada pela Câmara Municipal com os pescadores uma reunião com 3 assuntos, que rapidamente prescinde dos 2 primeiros: a construção do Porto de Pesca e o caso dos pescadores presos pela marinha marroquina. Quem assim decide passar de imediato ao 3º ponto “a poluição na costa alentejana” são as centenas de pescadores que como descreve Francisco do Ó Pacheco a presidir à reunião “tem o difícil condão de falarem todos ao mesmo tempo e de se ouvirem perfeitamente uns aos outros. Mais difícil ainda porque falam anormalmente alto…”. Rapidamente é consensual avançar com uma greve em Sines contra a poluição. Bastou, conta a crónica, um dos pescadores levantar-se e dizer: “ – Acho que já perdemos tempo com tudo isto… e acho também que «eles» só continuam com a poluição porque nós temos andado a perder tempo de mais com reuniões… umas cá em Sines… outras em Lisboa… e quanto mais tempo perdemos com esta de dialogar… mais nos afincam com a poluição.” A data marcada para a greve verde como passa a ser chamada é a sexta-feira seguinte: 28 de Maio.
O aparelho da autarquia e a Comissão de Luta, formada pelo Presidente da Autarquia, dois representantes da União dos Sindicatos de Sines e do Sindicato dos Pescadores e seis mestres pescadores, desdobram-se nos dias seguintes na mobilização da população, comerciantes, industriais, etc.. Enquanto isso chega de Lisboa apressadamente na quarta-feira uma ordem de serviço da Companhia Nacional de Petroquímica (CNP) que cria com efeitos imediatos uma “Comissão Permanente de Controlo de Poluição do Complexo”.
Al Berto, o poeta que em 1976 descrevia de peito doído a transformação do seu território, escreve no seu diário às 3.30 da manhã de 28 de Maio: “…Vivemos com essas chaminés a envenenarem-nos, vivemos com essas futuras explosões, esses sobressaltos nocturnos no coração (…) Ouço os lamentos desta vila que sofre. Ouço, ouço-me um pouco nos gritos de todos os homens. E não consigo dormir, não quero ter sono, nunca mais, todo o tempo acordado é pouco para agir, para tentar transformar esse espaço que me rodeia. Dia após dia votado ao abandono e à morte. A vida aqui, a continuarmos assim, vai ser uma «alface azul»; e talvez consigamos, com o tempo, alimentarmo-nos de alfaces azuis e peixes de olhos gaseados.” (9)
Ergue-se esta raiva dos mares-de-leva
28 de Maio: a greve paralisa a vila de Sines. Não apenas a pesca, mas o comércio, os cafés e restaurantes, a construção civil, a estiva, os serviços públicos. Ainda não eram 15.00 e já em frente à Câmara se juntam centenas que viraram rapidamente milhares para exigir “que seja encerrada provisoriamente a CNP, até que a fábrica possa laborar em condições normais e a ETAR esteja em funcionamento” e dão um prazo até 7 de Junho findo o qual decidem a paralisação do porto industrial. Chega essa data e o Ministro da Qualidade de Vida Ribeiro Telles afiança a abertura da ETAR a 15 desse mês, mas as traineiras não ficarão nem mais um dia em terra à espera.
Amanhece e a azáfama no molhe é grande. Às 9.00 já dezenas de barcos de pesca procedem ao bloqueio do Porto Industrial de Sines, vedando o acesso à carga e descarga de petroleiros e navios. E até o único navio à descarga no Porto faz chegar um abaixo-assinado dos seus tripulantes solidarizando-se com os pescadores. Desde a noite anterior que a polícia marítima reforçara o seu contingente pronta a intervir. Quando chega o meio-dia, e na praia dezenas de familiares levam o almoço que em pequenas lanchas os pescadores vêm buscar, irrompem em alta velocidade lanchas com dezenas de polícias armados de G-3, ziguezagueando em volta dos pescadores. O bloqueio não desmobiliza. Uma segunda ronda de intimidação tem início, desta feita mais aguerrida. Param as lanchas à proa dos barcos e cortam à faca os cabos que as fundeavam, enquanto outras ligam os motores e mantêm todas os seus lugares no bloqueio.
No terceiro arremesso da polícia, detêm-se na embarcação do Mestre Xico da Estrela Matutina insistindo que este prestasse declarações na Capitania, quando este passa para a lancha “mal lá colocou os dois pés no convés, uma pancada violenta atirou-o contra a ponte (…) Os pescadores que estavam mais perto explodiram de raiva. A reacção foi de imediato… motores a toda a força avante direitos à lancha da polícia marítima que foi obrigada a fugir com Mestre Xico lá dentro (…) Algumas embarcações de pesca dirigiram-se a toda a pressa ao cais do porto de pesca… uns vinham buscar armas… outros diziam vir buscar gasolina… o mar havia de arder com as lanchas de polícia marítima”.
Em terra o edifício da Capitania é cercado por centenas, na sua maioria as mulheres dos pescadores: “O ambiente era explosivo… parecia que a todo o momento aquelas centenas de pessoas iriam entrar pela Capitania adentro e rebentar com tudo… polícias incluídos”. Recebida a Comissão de Luta o Capitão do Porto nada mais pode fazer que mandar retirar as lanchas e polícia do local evitando a explosão popular.
O bloqueio manter-se-á toda a tarde até que pelas 19.00 tem lugar na Câmara Municipal uma reunião a pedido do Gabinete da Área de Sines e da CNP. Quatro horas depois, noite adentro e no mar, um plenário na traineira Célia Maria, a maior da frota de sardinha, decide levantar o bloqueio na expectativa de ser cumprida a data de 15 de Junho para a abertura da ETAR da Ribeira de Rio de Moinhos, fiscalizando até lá a comissão de moradores desse lugar para que não houvesse mais descargas.
No dia indicado tem início o funcionamento da Estação de Tratamento de Águas Residuais. É celebrada a vitória!
A memória é hoje uma ferida
A mobilização dos pescadores e da população de Sines contra a agressão da indústria ao ambiente e ao seu modo de vida merecem com toda a justiça ser celebradas como vitória. Mas essa foi uma vitória sobretudo referencial pela consciência e pela acção directa levada a cabo a partir do momento em que se saiu às ruas e se bloqueou o Porto de Sines. Fora isso, ser considerada mais amplamente uma “vitória” – como o faz Francisco do Ó Pacheco depois de duas décadas no poder de Sines – decorre de uma perspectiva ingénua ou deliberada da gestão catastrófica que representou todo o processo de transformação que teve lugar neste litoral. A memória é hoje uma ferida como sentenciou Al Berto nesse poema de canto do cisne a Sines com que iniciamos o nosso artigo.
Os factos que se seguiram à greve verde de 1982 – e até aos nossos dias – em nada concorrem para celebrar qualquer canto de vitória frente à poluição, se nesses termos fosse reduzido erradamente o espectro bem mais vasto de estragos ambientais e sociais de que a nova Sines hoje é fruto. Bastaria para isso citar a cronologia histórica no próprio site da autarquia: um ano depois, em Julho de 1983, são detetadas manchas de óleo no mar, as quais provocam queimaduras em alguns banhistas; em 1984, no início do funcionamento da central térmica em Sines, os citricultores de Santiago do Cacém queixam-se da destruição provocada nos seus pomares pela poluição atmosférica. Um ano depois da criação da Área de Paisagem Protegida do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina, tem lugar em 1987 o derrame do petroleiro Nisa e em 1989 nova maré negra, novo acidente com petroleiros, desta feita o Marão. Em Maio de 1990 mais um derrame de crude… e por aí adiante ao longo das últimas décadas. Já neste século XXI ilustrado por vários episódios, como a interdição da pesca na zona da Costa do Norte em Sines em Maio de 2011 pela Delegada de Saúde de Sines perante a poluição marítima na zona e pela existência de pescado impróprio para consumo; ou os dados recentes de 2016 demonstrando ser a central termoelétrica a carvão da EDP a que mais polui a atmosfera em Portugal.
Em Janeiro de 1983, Al Berto, 14 anos antes de nos deixar, morria já com a paisagem e o mar de Sines: “Anoiteceu. A vila está cercada por pipelines, luzes indecifráveis, chaminés gigantescas, máquinas que corroem a terra, traçam acessos rodoviários, fazem tudo o que se lhes depara pelo caminho. É sobretudo durante a noite, fechado na minha exígua casa da Rua do Forte, que maior consciência adquiro de tudo isto. Dentro de pouco tempo será insuportável viver aqui. O vento e as águas chegarão contaminados. A praia será um areal negro, um pesadelo sem nome, onde morrem as palmeiras, que ali plantaram. Os barcos serão os nossos fantasmas vagueando sobre as águas sujas de óleo, e uma gaivota perder-se-á no veneno da alba. Em mim nunca mais fará claro, nunca mais amanhecerá. Nem será preciso acender qualquer luz de vigia… eu morro com as paisagens”. (10)
30 anos depois, em Janeiro de 2012, o bloquista José Carlos Guinote descrevia no blog Estação de Sines (11) como “dia após dia, semana após semana, a diferentes horas do dia e da noite, Sines é, em permanência, invadido, por um cheiro pestilento vindo da plataforma industrial (…) A chaminé da Petrogal, com a sua nuvem de gases brancos recortada no escuro da noite, é o nosso indicador de referência. Quando a nuvem se dobra do alto da chaminé sobre a cidade temos que correr a fechar tudo e, nem mesmo isso é suficiente.”
Luas incendiadas… que o mar esconde na respiração das marés
A conclusão desta história podia ser assim. Catastrófica e nostálgica à resistência momentânea das traineiras. Essa era na verdade algo a que já intuíra Afonso Cautela, figura chave do Movimento Ecologista Português, associação ambientalista pioneira orientada às “críticas ao industrialismo e à sociedade de consumo”. Referia-se este jornalista em 1976 (12) como “em três anos de sistemática destruição do seu habitat (…) a população de Sines, do campo, da vila e da praia, pôde verificar, sofrendo na própria existência quotidiana, quanto custa o progresso engendrado por tecno-capitalistas”.
Já então diagnosticava Afonso Cautela a “doença do gigantismo” ao projeto de Sines, uma reflexão que hoje é apelida de decrescimento. Sines como parte de um “plano de megalomania triunfante”: “…como se o capitalismo não tivesse crises de crescimento cada vez mais frequentes, agudas e profundas; como se tudo corresse bem no melhor dos mundos triunfantes; como se não houvesse bluffs do petróleo, recessão, desemprego e inflação em fecha; como se, em suma, não houvesse leis científicas, leis da História e leis da Natureza, Sines é um projecto que assenta totalmente no vácuo da irrealidade e da fantasmagoria (…) um projecto que conta com a consecutiva, infindável, ininterrupta curva logarítmica do crescimento exponencial”. E sob o léxico revolucionário da época, concluindo Sines como “o sorvedouro perpétuo, destinado, em grande parte, a um papel político: manter controlados, milhares de escravos; justificar uma administração concentracionária na dependência do imperial-fascismo internacional; realizar à vontade o Ecocídio sistemático (…) dizendo que é para bem do povo e progresso do País; amortecer o espírito revolucionário do trabalhador pelo aliciamento de salários constantemente melhorados, pelo fosso cavado entre eles”.
Essa crítica estava longe de ser equacionada nos acontecimentos da greve verde de 1982. As palavras de ordem produtivistas e socialistas, mais ou menos revolucionárias, serviam à continuidade do projecto capitalista. E Sines como tal atravessou sem mácula do Estado Novo à Democracia. Pelo contrário a percepção dos seus estragos esteve bem presente no grito dos pescadores. É esse grito que continua a ecoar até hoje nas luas incendiadas pela chaminé industrial. No que o mar esconde na respiração das marés.
Não fará hoje qualquer sentido recuperar a greve verde de 1982 julgando que a escuta a mesma população que a protagonizou. Fará antes todo o sentido recuperar as vitórias como feridas na memória para a moderna geração de sineenses que hoje possuem um sentido de reivindicação ambiental que décadas atrás era pura e simplesmente manietado pelo sentido inquestionável do crescimento.
Desde logo hoje discutir a poluição leva-nos – já sem grande ocultação mediática – a discutir novos modelos de produção energética perante o inegável colapso que representa a produção energética de uma central térmica a carvão em Sines e a insistente opção da indústria energética fóssil do petróleo e do gás em Portugal. Mas esta discussão corre o risco de surgir uma vez mais manietada se não for posto em causa o próprio projecto capitalista em que assenta a vida social e industrial que Sines exemplifica. Nesse sentido a crítica decrescentista contribuiu, como enunciou Carlos Taibo, por evidenciar como esse até aqui inquestionável crescimento assenta em irreversíveis impactes ambientais e esgotamento de recursos, e numa não menos inegável lógica de um Norte opulento vivendo da escassez do mundo Sul. Se tais aspectos, ao contrário de 1982, são hoje comummente aceites, necessário será ainda a percepção pública de como o crescimento (Sines uma vez mais como exemplo) assenta na perda de coesão social e na perda de emprego – a pesca seria o exemplo fácil, mas mais correcto será entender a privação de emprego em igual medida à perda das garantias e direitos dos trabalhadores industriais de Sines. E não menos importante é percepcionarmos como se alterou o modo de vida individual e social que sustenta o crescimento económico de Sines.
Aí chegados podemos persistir em não ver o problema, tossindo para o lado o fumo negro. Não faltam para isso os indicadores e estatísticas do crescimento do Porto de Sines em Portugal e na Europa, ou o investimento nas novas infraestruturas portuárias e de ligação ferroviária às mercadorias. Não faltam nem exemplos, nem promessas eleitorais. Mas há uma pergunta inquietante que se prende enfim com o modo de vida individual e social. Na década de 80 os pescadores acabam eles mesmos a desejar outra faina que não a deles aos seus filhos. As novas gerações vivem melhor do que as suas. Façamos a pergunta nesta segunda década do séc. XXI. Poderemos com consciência responder de igual modo às novas gerações de Sines? Viverão estas melhor?
Duas opções restam. Confrontar o crescimento com a reconstrução de níveis de consumo e produção compatíveis com um modo de vida que permita responder que sim, os nossos filhos viverão melhor. A outra formulou-a em angústia Al Berto: “…Que desça, como relâmpago, a peste, as chuvas inquinadas, as incontroláveis pragas radioactivas, o caos. Que tudo pereça no sismo total. E os anjos, e Deus também. Que não reste nada! Absolutamente nada!… Areia e mais areia, e na orla branca dos desertos cairá a derradeira estrela da manhã.” (13)
Ilustrações: José Smith Vargas
Fotos: J. M. Cavalinho (no blog Cabo de Sines)
NOTAS:
(1)
(2)
(3)
(4) Segundo a que cruzou os dados reportados por 336 instalações localizadas em Portugal (280 que emitem para a atmosfera e 56 para meios hídricos) relativo ao ano base de 2014
(5)
(6) http://bit.ly/2hBqGUR
(7) Análise Estratégica do Cluster Petrolífero/Petroquímico Português. O Passado, o Presente, e o Futuro” Dissertação Mestrado, Outubro/2010
(8) Francisco do Ó Pacheco “Crónica da Primeira Greve Ecológica em Portugal”, Sines, edição de autor, 1999.
(9) Al Berto “Diários”, Assírio e Alvim, 2012: 42
(10) Idem: 79 (apontamento 24.01.1983)
(11) http://bit.ly/2hBvIRy
(12) Afonso Cautela “Ecologia e luta de classes em Portugal: reportagens”, vol.3, Col. Sobreviver. Socicultur, 1977
(13) Al Berto, Ibid.: 110 (apontamento 11.03.1984)