País de ninguém

25 de Março de 2019
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estraca

As ideias predominantes sobre aquilo que entendemos por “Portugal” e sobre aqueles que o habitam, em particular aquelas veiculadas pela comunicação social, são a expressão duma fantasia (algo distópica, com fins obscuros, mas fantasia). No retrato que oferecem dificilmente há lugar para a maioria da população que habita o país e para as suas vivências quotidianas. É com dificuldade que a maioria encaixa a sua experiência nas estatísticas com que nos tentam dizer que as coisas estão a melhorar; e é com um misto de tédio e perplexidade que olhamos as grandes parangonas que anunciam, como uma novidade, o próximo cataclismo que se avizinha, como se não o vivêssemos todos os dias há tanto tempo.

Pensemos no seguinte: o país parece reduzir-se a Lisboa e, em parte, ao Porto, mas na realidade, a grande maioria da população vive amontada em selvas de prédios, situadas nas periferias, sem o arejamento glamouroso das grandes avenidas. Na literatura ou na comunicação social, o país que temos ora é urbano e cosmopolita, o palco de Web Summits que nos fazem sentir parte do pelotão de uma vanguarda qualquer, ora é, quando sentimos o apelo bucólico e nos cansamos do caos urbano, um longo rol de figuras típicas e castiças a compor as planícies alentejanas ou as aldeias de pedra da beira interior. O verdadeiro Portugal, dizem uns, é a juventude urbana, a caminhar em direcção ao futuro, com um arsenal de apps no bolso e que cria startups ao pequeno-almoço; o verdadeiro português, dizem outros, é aquele que veste à minhota, dança folclore e bebe minis na tasca, é uma versão qualquer do “povo simples” dos campos, perdido no Portugal ostracizado. Mas a grande maioria da população vive num lugar que não é campo nem cidade: o subúrbio. É daí que a população jovem avista os seus sonhos por um binóculo, lá, longe, no horizonte da grande cidade, a terra das oportunidades para onde ir viver implica vender um rim. Vive, em suma, num sítio demasiado feio e aborrecido para compor qualquer narrativa idealista.

Não por acaso, foi nessas terras de ninguém, onde vive quase toda a gente, que surgiram (e continuam a surgir) algumas das “cenas” musicais mais pujantes das últimas décadas, desde as ligadas ao punk-hardcore até ao hip-hop, passando pelo kuduro e pelo afrohouse (“cenas” essas que foram uma das vias de acesso à cidade para essa gente e “cenas” essas, também, que apesar dessa pujança permaneceram fora dos radares mediáticos). Procurar um “Portugal” mais verdadeiro do que outros é um exercício fútil, para não dizer absurdo, mas, talvez por isso mesmo, nesses “meios” podemos certamente encontrar qualquer coisa mais aproximada da realidade do país. Nem que seja por nos permitir evitar o risco de cair em essencialismos ou em fórmulas vazias. O subúrbio, como lugar de sociabilidade e com um carácter formativo, imbuído de experiências e vivências que lhe são próprias, atravessa muito do imaginário dos artistas que por eles circulam. Mais importante, esse imaginário permite-nos pensar ideias tão em desuso como as de “classe social” (quem sabe se em desuso justamente por causa da invisibilidade da vida suburbana), mostrando-nos algo muito mais interessante e multifacetado do que o que vemos ser emitido pelos partidos ou movimentos que ainda usam tais conceitos, geralmente “focados” nas realidades dos grandes centros urbanos ou desse tal Portugal “perdido”.

Estraca foi a minha última descoberta suburbana. As letras deste puto de 21 anos, nascido na Musgueira, são mais politizadas do que as da maioria dos artistas de hip-hop que têm ganho alguma visibilidade nos últimos tempos. Em Suicídio Político (que atira tanto ao “presidente dos afectos” como ao Mário Machado e ao PNR), Bem-vindo (homenagem a Zeca Afonso, em colaboração com Stereossauro e Charlie Beats), sobre um “Portugal da classe baixa refém do fim do mês”, e “Planeta Novo” (a música do rapper com mais visualizações, aproximadamente 1,5 milhões) sobressai a vertente mais militante de Estraca. Mas as letras com maior interesse nem são as mais ostensivamente políticas. São antes aquelas em que nos abre a janela para a “rotina nos subúrbios” (rusgas, ausência de futuro, “vida sem cenário”), “onde o rico nunca pisa, onde o pobre tem pouca escolha” (in Subúrbios); ou aquelas que assumem uma perspectiva mais biográfica e dão vislumbres de um percurso “entre a porta do sucesso e a porta do tribunal” (in Palavras). Em Trajectória vemos, como é frequente nas letras de Estraca, o hip-hop e as “rimas numa batida” a surgirem como a escapatória encontrada “ao fracasso de que era refém” e a um destino de “bandido ou drogado”. Sempre sem perder a noção da aleatoriedade ou mesmo da efemeridade das vitórias que podem alcançar aqueles sempre “demasiado próximos do fundo” (nas palavras dos Modern Life is War). A letra mostra a consciência do acaso que lhe permitiu não ser amarrado por rusgas policiais e delitos menores que condenam sempre os mais “fracos”, presas fáceis do dinheiro do tráfico que promete uma fuga ao sufoco de casas sustentadas por trabalhos na “limpeza 400 euros/ 15 horas a trabalhar” (em referência à mãe, presença frequente nas suas letras).

O instrumental, ainda que bom, não é o que destaca o trabalho de Estraca, demasiado próximo das sonoridades do hip-hop tuga e das suas referências, como Valete, Chullage ou Sam the Kid (um mal menor para quem ainda agora dá os primeiros passos maduros). O que o distingue é o poderoso flow com que dispara do subúrbio para o mundo lá fora “que nós precisamos ir ver” mas que precisa muito mais de “vir ver o mundo aqui dentro” (in Subúrbios).

Texto de Diogo Duarte [diogo.mainselduarte@gmail.com]
Ilustração de Frederico Aranha

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