O povo é solidário na defesa do estuário
Uma assembleia popular em Setúbal, no passado 15 de Dezembro, denuncia os riscos de dragar um rio e aumentar a atividade industrial numa zona de reservas naturais, afirmando a luta dos Setubalenses para impedir este projeto.
Sábado, 15 de Dezembro, salão da União Setubalense. Cerca de 150 pessoas reúnem-se numa assembleia popular em Setúbal para debater os projetos económicos ligados ao rio Sado – as dragagens e a expansão do porto industrial, da responsabilidade da Administração dos Portos de Setúbal e Sesimbra (APSS), uma sociedade anónima de capitais públicos. Em causa estão grandes intervenções ambientais em zonas de estuário e reservas naturais, como a remoção de 6 337 646 m3 de areias do fundo do rio para permitir a passagem de grandes embarcações de carga – até 13 metros de calado -, rumo a um porto que se pretende que triplique o seu tamanho. Este projeto parece ser, também, uma rampa para a concretização de outros, como o Blueatlantic, da empresa SAPEC. Segundo a informação disponível no site do projeto, pretende-se atrair investidores para a criação de um grande cais marítimo, que “pode ter uma frente até 800 metros e tem capacidade de acostamento de dois navios Panamax. Está localizado no . O porto está sempre abrigado, com águas calmas e nunca fecha.” 1 Esta mega construção só será possível graças aos grandes investimentos que se preveem para os portos portugueses, ao aprofundamento da barra e do canal norte do rio que serve o Blueatlantic.
A população da cidade sadina tem contestado estas medidas de intervenção no rio de várias formas, saindo à rua em largos números, fazendo circular petições, tendo interposto providências cautelares para parar as dragagens e solicitado audiências na Assembleia da República.
Apesar de os protestos terem diminuído de intensidade no último mês, esta assembleia veio demonstrar não só que a adesão à luta pela preservação do estuário se mantém, mas também que as pessoas de Setúbal, de diversas áreas, estão informadas sobre estes projetos e os seus impactes, partilhando o seu conhecimento na sessão pública, o que resultou em duas horas de debate participado.
A mesa da assembleia era composta por cinco pessoas com conhecimentos privilegiados, cujas intervenções sintetizaram aquilo que se sabe e o que tem sido feito, tanto por parte dos movimentos ambientalistas como por parte das autoridades e instituições promotoras destes projetos de suposto desenvolvimento. Sob a moderação do professor catedrático da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Viriato Soromenho-Marques, ficou claro no início que a reunião se propunha a clarificar três importantes pontos: quais os verdadeiros danos e impactes ambientais que o projeto das dragagens implica; saber se o projeto é compatível com outras atividades económicas, como a pesca tradicional e o turismo; saber se o projeto constitui um bom modelo de desenvolvimento sustentável para a cidade. Com uma mesa composta por Sérgio Godinho, Ana Paula Fernandes, Gonçalo Calado e Célia Rodrigues, uma das ideias que prevaleceu é a de que estamos perante um atentado ambiental disfarçado de desenvolvimento, da responsabilidade da Administração dos Portos de Setúbal e Sesimbra (APSS), que tem sido apanhada em contradições e não tem respeitado o próprio Estudo de Impacte Ambiental (EIA) que encomendou à empresa Proman, assim como os devidos períodos de consulta pública. Sérgio Godinho, membro da SOS Sado, um grupo que se formou para travar as dragas, realçou os perigos desta empreitada – ver infografia no final do texto – e apontou a má conduta da APSS, não só como responsável pela desinformação que tem existido, como também mencionando as péssimas condições laborais que os portos têm oferecido aos trabalhadores da estiva. O facto de este porto de Setúbal ser composto por 9 reservas naturais não tem sido tomado em conta, nem pela APSS, nem pela Agência Portuguesa do Ambiente, nem pela comissão que deu um parecer positivo ao projeto. Esta intervenção chamou também a atenção para o facto de as dragagens pretenderem a passagem de enormes navios junto às arribas da costa da cidade durante 13 km, implicando também dragagens contínuas de manutenção, executadas anualmente. Estima-se que sejam remexidos 100 000 m3 de areias por ano para manter a profundidade do canal. O movimento SOS Sado interpôs em Outubro uma providência cautelar contra o projeto, perante declarações à imprensa de Lídia Sequeira, administradora da APSS, que apontava o início das obras para 1 de Outubro. O Tribunal respondeu mais tarde à providência cautelar, dizendo que não podia mandar parar uma obra que só tinha a sua data de início marcada para dia 8 de Janeiro. No entanto, todos os Setubalenses sabem que ficará para sempre por explicar o que fazia então um enorme barco de dragagem no rio Sado nos primeiros dias de Outubro…
Segundo o depoimento de alguns manifestantes presentes no protesto de dia 13 de Outubro, não só foi avistado o barco, como as declaraçōes oficiais mencionavam o dia 1 de Outubro para início das obras, sem consulta publica à população. Vários jornais noticiaram esta data, aliás, mas o Tribunal de Almada declarou que, oficialmente, a obra só está prevista para Janeiro.
O caso continua nos tribunais, havendo um processo também contra os locais de deposição dos dragados. Este chama-se TUPEM – Título de Utilização Privativa do Espaço Marítimo Nacional e esteve em consulta pública. Depois de muitas contestações, principalmente pelas associações de pesca, não foi aprovado, visto o local proposto para depositar as areias dragadas ser um importante banco de pesca. Agora há já outro pedido de TUPEM, em período de consulta pública 2.
As Professoras Sandra Caeiro (cuja intervenção foi feita por vídeo) e Ana Paula Fernandes, da Universidade Aberta, deixaram o seu depoimento sobre as conclusões de um estudo científico multidisciplinar sobre sedimentos e a contaminação do rio, alertando para a existência de sedimentos contaminados (com metais pesados, pesticidas e outros compostos orgânicos) em certas zonas do rio, nomeadamente em locais onde se pretendem fazer dragagens. O estudo em que as académicas participaram sobre os sedimentos aponta para grandes riscos de contaminação nos peixes e de danos em células humanas quando em contacto com tais sedimentos. Tal como já acontece com a população da Carrasqueira, o contacto prolongado com certas areias acarreta sérios riscos para a saúde, o que exige estudos e cuidados redobrados quando se pensa na movimentação desses sedimentos. Estão comprovados casos de doenças renais, pulmonares, neurológicas e doenças de pele.
Célia Rodrigues, produtora de ostras, falou da relação tradicional com o rio, da fauna como bioindicadora dos níveis de contaminação que o rio já revela, referindo a urgência em travar a contaminação, não podendo haver situações que criem mais riscos para o ecossistema do estuário. A aquacultora mencionou também a questão da não inserção do estuário da Rede Natura 2000. Após um estudo encabeçado por Catarina Eira, o estuário e a costa de Setúbal foram indicados para integrar essa rede mas isso não chegou a estar disponível para consulta pública e acabou por «ficar na gaveta» 3.
Nesta intervenção, e noutras mais adiante, questionaram-se os muito falados, mas nada claros, benefícios económicos para Setúbal que esta expansão do porto traz. Fala-se da existência de um Estudo de Impacte Económico, realizado pela EGIS, mas este não é público.
Gonçalo Calado, biólogo, convidou à reflexão sobre o modelo de desenvolvimento que queremos para estas reservas naturais, questionando a existência de uma atividade económica que vai impedir todas as outras de subsistirem.
Talvez o aspeto mais revoltante e insólito, referido inúmeras vezes ao longo deste processo de luta, seja a falta de informação e os obscurantismos que cercam estes projetos. Mesmo para quem se procure informar, não é claro quando começará a obra e se os prazos legais estão a ser respeitados.
Os membros de organizações ambientais e movimentos de cidadãos setubalenses dizem que não é coincidência a APSS só ter feito uma sessão de esclarecimento à população após a entrada da providência cautelar, e aquilo que fica na memória sobre essa mesma sessão, que aconteceu a 6 de Novembro, são as frases «isso não se sabe», «não temos informação sobre isso», «desconhecemos esses factos» ou «confiem em nós».
Quando aparecem páginas inteiras de jornais nacionais com publicidade paga pela APSS, ou seja, com fundos públicos, a promover esta obra de expansão do porto, os números relativos a postos de trabalho que daí advirão são falsos – os anúncios que promovem a obra mencionam a criação de milhares de empregos, mas os documentos oficiais falam em dezenas, ou centenas se contarmos com trabalho indireto. Sobre os negócios já em vista que possam justificar as frases publicitárias que a APSS faz sobre o projeto, não se encontra qualquer informação. Que navios e empresas são essas que justificam estes investimentos de milhões de euros? Ainda sobre falsas informações prestadas pelas autoridades em tais anúncios de jornal, até a quantidade de areias a serem dragadas não corresponde àquela apresentada nos documentos oficiais.
Uma das outras figuras criticadas tem sido a da Ministra do Mar e surgiram, nesta assembleia, preocupações sobre os poderes políticos instalados, havendo mesmo denúncias quanto ao seu envolvimento indireto em negócios ligados ao aumento da profundidade do rio. A ministra Ana Paula Vitorino é sócia de Lídia Sequeira numa empresa de consultoria, segundo noticiou a RTP em 21 de Setembro de 2018, facto que põe em causa a sua própria nomeação como administradora da APSS. Operestiva, empresas turcas, Mota-Engil, entre outros, foram nomes mencionados como sendo os principais beneficiários desta obra. Foi dito claramente que «o mar não pode servir para negócios duvidosos e pouco claros». «As reservas do estuário e da serra valem muito mais do que os interesses económicos atuais. Temos de questionar que desenvolvimento é esse que os governantes querem, que até nós queremos, que só tem destruído a Natureza». Como não podia deixar de ser, falou-se também sobre a comunidade de golfinhos, a ser seriamente afetada pelo ruído aquático das dragagens e cujo alimento ficará em risco com a remoção de tal quantidade de areias. Naturalmente, a passagem intensiva de grandes navios de carga será muito nociva para a fauna do rio.
Aquilo que tem estado presente nos discursos contra esta obra tem sido a consciência de que esta decisão é, antes de mais, uma decisão política, que se enquadra numa visão mercantilista da Natureza, pretendendo lucrar com o património natural da humanidade para proveito de umas poucas empresas, para isso infligindo danos que jamais poderão ser reparados.
Uma outra intervenção veio recordar a importância dos movimentos ambientalistas e de tudo o que já foi conseguido no passado. Numa alusão à memória que Setúbal tem, recordou-se a criação da Reserva Natural do Estuário do Sado em 1980, que não foi resultado de uma iniciativa estatal. Ela surgiu como uma vitória da vontade regional, após 3 anos de uma persistente campanha desencadeada em 1978 por 6 jovens setubalenses, enquadrados na Liga para a Proteção da Natureza. Recordaram-se outras lutas ambientais, como o movimento contra a co-incineração na Serra da Arrábida e outros momentos históricos em que más decisões políticas deixaram a população passar fome, como aconteceu nos anos 80.
Ainda que tendo sido a primeira assembleia aberta, resultou já desta tarde uma conclusão aprovada, que será devidamente feita pública – os cidadãos reclamam a suspensão imediata da obra.
Clique na imagem para ver maior.