As bolotas são como balas
Uma revolução verde na Serra de Gata
Bonggi tinha acabado de se instalar na Serra de Gata quando a viu ser devastada por um incêndio sem precedentes. O sonho surgiu das cinzas. Nesse verão de 2015, ninguém podia prever o que estava para vir. Quase sem meios e sem licenças, só com trabalho voluntário, arrancou-se mais de um milhão de pinheiros e plantaram-se mais de 25 mil árvores autóctones. Agora, arranca uma viagem por toda a península para criar a Rede Ibérica de Guardiões do Bosque.
Quando as chamas chegaram, Bonggi era o mais recente habitante da Serra de Gata – esquecida na Extremadura espanhola, junto à Serra da Malcata e ao distrito de Castelo Branco. À volta da sua casa, e a perder de vista, ficaram mais de 8 mil hectares de cinza. «A vida pôs-me este desafio», diz hoje. «Ajudar a serra a recuperar».
Só que na pacata Villasbuenas de Gata mais ninguém parecia sentir esse chamado de reflorestar a área colossal. Foi no Boom e noutros festivais de música que Bonggi deu a conhecer o projecto e que germinou a rede Reforest-Accion: «Nascemos do fogo. E das cinzas estamos a criar vida». Tinha 1200 euros, o aval da câmara para hospedar os voluntários na pousada da juventude – e uma vontade indomável. Quando chegou o octubre de reforestación, em 2016, e os 100 días de reforestación, até fevereiro deste ano, a aldeia não foi mais a mesma.
Chegam voluntários às centenas, numa mistura diversa como a do bosque que semeiam. «Portugal, França, Chile, Filipinas, Egipto, Alemanha, México, Roménia…» – Bonggi perde a conta às nacionalidades que por ali passam. Lança-se uma campanha para recolher comida, os vizinhos oferecem alimentos, as pessoas trazem ferramentas. A sua carrinha faz vai-vens repleta de bolotas, frutas, comida, materiais… Faça chuva ou faça sol, voluntárias de todas as idades saem para os montes áridos, plantar sobreiros, azinheiras, castanheiros e medronheiros com ardor e alegria. As noites são para caminhadas na floresta, documentários, jam sessions. E a cada quinta-feira é a vez das crianças das escolas pegarem nas enxadas e mudas de árvores.
E assim se plantaram 25 mil árvores. «Não temos qualquer autorização, mas não queremos saber. Simplesmente vamos e plantamos árvores. Os políticos não tiveram coragem de nos parar». Tocar nos pinheiros era tabu – mas não os tirar seria deixar tudo voltar a ser o mesmo. «Pensei: não quero saber se vou para a prisão. E comecei a arrancá-los», conta Bonggi. E assim se arrancou mais de um milhão. «É uma espécie super invasiva, nada mais pode crescer. Não queremos eliminar por completo o pinheiro resinoso, que é importante para os habitantes, mas diversificar para que não possa voltar a haver um mar de pinheiros. A natureza vai encontrar o seu caminho».
Agora que a primavera chegou à serra, Bonggi parte numa nova missão: criar uma Rede Ibérica de Guardiões do Bosque. Na agenda, entre maio e junho, estão previstas conversas e oficinas gratuitas pelas várias regiões de Espanha e por Portugal – onde tem vindo para iniciativas ligadas à rede Reflorestar Portugal. A ideia é partilhar a experiência de Gata, um «modelo de gestão florestal social e auto-gerido, que está a começar a dar frutos tanto na paisagem como na consciência colectiva local». E criar «não uma rede de blá blá – uma rede activa. Para começar projectos e conseguir fundos para isso. Em Espanha ainda temos muita terra pública. Em Portugal 90% da terra é privada, a ideia é mais convencer os proprietários».
Como todas as que o ajudam, Bonggi é voluntário. Para ter dinheiro fez desde energy balls em festivais, a carpintaria no Chile ou passeios a cavalo na Mongólia. Tinha 17 anos quando partiu para viajar pelo mundo, até se instalar na Indonésia, a trabalhar para salvar animais selvagens. Mas o sonho de proteger a natureza tropical deu lugar à depressiva realidade das ONG: «só querem saber do seu nome, dos seus fundos, dos seus computadores. Apanha-se o avião a toda a hora. Algo estava errado». O seu mestre de artes marciais falava-lhe do mundo invisível. E foi numa floresta da Patagónia, rodeado de árvores de três mil anos, que recebeu inspiração. «O meu papel era plantar árvores. Fiz um compromisso com a natureza: saber-me e sentir-me parte dela. Tem de ser algo honesto, puro no coração».
Agora fala duma «revolução verde». «As bolotas para nós são como balas. São uma dádiva maravilhosa que tivemos aqui na Ibéria. Gosto de lhe chamar Ibéria. A península está a tornar-se rapidamente um deserto – talvez demore 20 anos. Por isso temos de começar agora. Semeemos 10 mil por dia. Mesmo que só mil sobrevivam, são mil árvores! Uma vez que ganhem raízes, nada as pode parar». Na serra de Gata, para já, a taxa de sobrevivência é de 70%. Para Bonggi, nada é tão fácil como plantar. «Vais à floresta com os teus amigos, colhes bolotas, pões 4h na água, semeias! Se todos o fizessem, em 20 anos a península estava coberta de floresta».
E, no entanto, há um trabalho mais importante. «Podemos plantar árvores a vida toda – mas é preciso plantar na cabeça das pessoas», afirma. «Quando conectas com um ser que vai viver 100 anos, algo muda. Vi pessoas mudar aqui. Plantar durante 10 dias é como uma forma de meditação activa. Aprendes sem livro – o livro está ali, aberto».
Informação, contacto e datas das conversas e oficinas:
reforest-accion.net
Facebook: Reforest-Acción Network
Texto de Francisco Colaço Pedro [franciscocolacopedro@gmail.com]
Fotografias por reforest-accion.net