Cinco mil anos de tensões urbanas: uma breve história da cidade
Texto: PDuarte, blog l’obéissance est morte
Fotos: Joan Villaplana (Shenzen, Pequim, Hong Kong), PDuarte (Berlim), José Reis (Londres)
Shenzen [Foto: Joan Villaplana]
Introdução: essência e atributos da cidade
Enquanto que a aldeia se estrutura em torno da satisfação de necessidades elementares, que ela garante de facto ao maior número, a cidade, estando longe de garanti-las adequadamente à maioria dos seus habitantes, move-se por outras causas: foi aí que a humanidade melhor soube demonstrar a vitalidade das suas sociedades e a originalidade do seu espírito criador. A cidade seria impensável sem a emergência do registo escrito, que a vida rural pôde ignorar até recentemente. Foi também na cidade que o homem melhor manifestou o seu desejo de imortalidade, pela criação de catedrais, palácios, torres, estátuas ou museus. E assim, condensando e conservando vidas, ideologias e experiências na sua paisagem, mas também na literatura ou na arte que ela dinamiza, a cidade une, como nenhuma outra geografia humana, passado, presente e futuro.
Equipada para conservar e transmitir os bens da civilização, mas também para adaptá-los às necessidades emergentes das sociedades humanas, a cidade é um organismo simultaneamente estável e dinâmico que agrupa e organiza um amplo conjunto de funções, em interacção constante, de ordem técnica, política, económica e cultural. Sem a acumulação material que caracteriza os pólos urbanos, fundada sobre a exploração da força de trabalho – rural e citadina -, não teria sido possível libertar alguns espíritos das tarefas produtivas. Vitrúvio não teria redigido os seus Dez Livros de Arquitectura, Beethoven não teria composto as suas nove Sinfonias e Hegel não teria lançado as bases do pensamento dialéctico moderno. Foi ao promover o máximo de interacção no mais ínfimo território que a cidade viu germinar as obras mais fecundas da humanidade.
Se a cidade seria impossível sem a emergência de um certo nível de ordem e de lei, do qual dependem tanto a justiça e a paz, como a naturalização da propriedade privada ou da divisão do trabalho, não se deve resumi-la à gestão de corpos e tarefas em prol de uma minoria. Ela é também feita de uma mulltiplicidade de espaços de que a maioria dos habitantes se apropria para encontros, convívios e partilhas. No seu centro está geralmente o mercado: “qualquer cidade, seja ela qual for, é antes do mais um mercado. Faltando este, é impensável a cidade”, escrevia Fernand Braudel 1. Tradicionalmente, os mercados e, mais recentemente, os bares e cafés, desempenharam uma importante função quotidiana de socialização livre e espontânea. Como as praças que derivam da antiga ágora grega, estes lugares propiciam uma multiplicidade de intercâmbios, assim fortalecendo o tecido vivo da cidade. O que hoje ainda resta de vitalidade na sociedade parisiense expressa-se precisamente nos seus populares bistrots 2, os quais, em termos de função social, encontram um paralelo nos cafés portugueses ou nos bares espanhóis.
A cidade na história
a) hierarquia vs. cidadania na cidade antiga
Situadas na Mesopotâmia e no Egipto faraónico, as primeiras cidades continham já os principais marcos da vida urbana: mercado, blocos de casas, ruas, zonas de oficinas, recintos administrativos e religiosos, tribunais. Estruturavam-se em torno do palácio e do templo, o cérebro a partir do qual uma minoria comandava, em nome do rei e de Deus, a restante população. Densas, congestionadas e geralmente fortificadas, continham uma população obediente, treinada para a guerra. A disciplina e a hierarquia que permitiam o controlo unificado da população sobrepunham-se à livre cooperação que predominava na vida campestre. A arte urbana monumental, que as elites dominavam com maestria, contribuía para submeter os habitantes, ao legitimar a hierarquia em curso. Porém, se as primeiras cidades, cujo território era vigiado em permanência como uma prisão, se fechavam hermeticamente sobre si próprias, os grandes rios que as atravessavam ligavam-nas ao resto do mundo. Ficava bem explícita, logo desde o início, a tensão existente, em todas as cidades de todas as épocas, entre unidade e diversidade, conservadorismo e cosmopolitismo, acanhamento e abertura.
Foi com a pólis grega que os habitantes da cidade, ou uma parte deles, foram chamados à participação total em cada aspecto da vida comum. Entendiam a cidade enquanto espaço público onde era exercida a vida política, a cidadania (politeia), e, neste sentido, como o oposto da esfera privada do lar (oikos) onde reinavam a necessidade e a vida reprodutiva. Os intercâmbios sociais canalizavam-se para lugares públicos, como a ágora, o ginásio ou o teatro, que adquiriam uma centralidade na vida da cidade. Cooperação e comunhão tornaram-se conceitos chave na vida urbana, que via despontar um novo homem, que não se entregava facilmente a rotinas cegas e desejava tornar-se o centro da pólis, participando directamente no seu governo: o cidadão. O tamanho da pólis, que voluntariamente jamais excedia determinados limites, era fundamental para que esta nova vida democrática, assente numa certa proximidade e intimidade, se pudesse desenrolar.
O contrário ocorreu séculos depois em Roma, onde infraestruturas colossais, como arenas, teatros, aquedutos ou arcos, denotavam a escala imperial que se pretendia implementar na metrópole, cuja monumentalidade e abundância dependia directamente dos excedentes do vasto império. O fórum, ao funcionar como o centro da vida pública, não apenas para Roma mas para todo o império, era o claro sintoma de que a cidade se tinha afastado dos habitantes, como sucedera no Antigo Egipto e na Mesopotâmia.
Berlim [Foto: PDuarte]
b) as liberdades urbanas da Europa medieval
A partir do século XI, e “após um longuíssimo apagamento”, as cidades europeias “não param de crescer, de se animar, de estender os subúrbios ao longo das estradas” 3. Este renascimento urbano, que ficou sinalizado até aos dias de hoje pela grandiosidade das catedrais góticas, fomentou e simultaneamente beneficiou do desenvolvimento do comércio internacional, da indústria, da agricultura e até das primeiras universidades. O número de mercadores aumentou, bem como a frequência da circulação monetária. O capitalismo dava os primeiros sinais. Os comerciantes que controlavam as novas rotas trans-europeias, por onde circulavam bens de luxo provenientes do Oriente, acumularam quantidades de dinheiro inconcebíveis para a antiga economia feudal. A mercadoria e o dinheiro irrompiam no centro da vida urbana, onde tiveram de aprender a conviver com a enorme influência que nessa altura detinham os valores cristãos como a compaixão, a caridade ou a frugalidade. Mas diga-se que a Igreja nunca castigou devidamente a avidez e a usura, que assim foram encontrando um lugar no coração da cidade.
Desde a Idade Média que as cidades europeias “se encontram sob o signo de uma liberdade sem igual; desenvolveram-se como universos autónomos” 4. Em Itália, na Flandres e na Alemanha, floresceram à margem dos estados e da sua disciplina férrea, organizando elas próprias os impostos, o crédito público, a indústria ou as alfândegas. Por outro lado, aqueles que trocassem as servidões da vida campestre pela vida urbana, onde imperava a mobilidade social, poderiam tornar-se homens livres e descobrir uma autonomia nova. Não espanta que tenha sido por esta altura que surgiu um provérbio alemão que ficou célebre: o ar da cidade liberta.
c) eficiência e disciplina na cidade moderna
No final da Idade Média, movimentos políticos unificadores varrem a Europa. O comércio em grande escala e o capitalismo, que só se poderiam afirmar num mundo pacificado, homogéneo, de fácil e rápida circulação, requeriam um contexto estável e uniforme, o qual apenas o poder militar das monarquias emergentes estava em condições de garantir. Subitamente, a fragmentação medieval dava lugar à centralização moderna. Enquanto o comércio florescia como nunca antes, as cidades perdiam autonomia, liberdade e poder: os recém criados estados nacionais não admitiam que outros pólos lhes disputassem o poder. Este movimento centralizador deu assim origem à capital nacional, a partir de onde uma burocracia administrava oficialmente o estado, de cuja população procurava colectar o máximo de taxas e impostos. Cidades como Paris, Londres ou Lisboa monopolizam, a partir do século XVI, os respectivos estados, eliminando a concorrência dos pequenos centros que delas se tornam política e economicamente dependentes. A nova economia, centrada já não sobre bens ou géneros mas sobre a abstracção do dinheiro, revelava-se mais rentável e melhor administrável para os seus gestores se fosse dirigida a partir de um centro único que concentrava todas as instituições da sua gestão (banca, ministérios, cunhagem de moeda, bolsa, etc.).
Deste modo, na cidade barroca dos séculos XVII e XVIII irá imperar uma geografia uniforme, ordenada e eficiente. Se a nova economia requeria mobilidade, eficiência e rotina, tornava-se missão da cidade materializá-las no horizonte das interacções quotidianas. Bairros labirínticos seriam então demolidos para dar lugar às formas geométricas do novo e megalómano modelo urbanístico, que apenas um poder centralizado e absoluto poderia impor sobre a informalidade e o caos que reinavam no território urbano. Ruas rectilíneas, avenidas largas, praças rectangulares e quarteirões uniformes iriam dominar a paisagem das cidades. Para lá de expressar as transformações económicas e políticas em curso, este novo léxico de formas urbanas traduzia também uma abordagem militarista à cidade – como notara em 1475 o rei de Nápoles e como posteriormente manifestariam os boulevards de Haussmann na Paris oitocentista, as ruas estreitas são um perigo para o estado. De um modo geral, ele vinha tornar possível exercer sobre os corpos toda uma nova disciplina, para a qual também contribuiu a generalização do uso do relógio. Enquanto que o tempo, agora medido em horas e minutos, deixava de ser representado em relação a eventos vividos, o espaço tornava-se igualmente ordenável e mensurável abstractamente. Mas, mais do que mensuráveis, tempo e espaço tornavam-se, tal como o dinheiro, incomensuráveis: desaparecia a noção de limite. Doravante, tudo se poderia expandir ad aeternum – a cidade, a economia, o poder.
Hong Kong [Foto: Joan Villaplana]
d) a expansão urbana capitalista
“No século XVII, o capitalismo vem alterar toda a balança do poder. Daqui para a frente, o estímulo para a expansão urbana vem essencialmente de comerciantes, investidores e proprietários” 5. Com o protagonismo crescente do capital na construção da cidade, o interesse privado sobrepõe-se ao interesse público e a vida urbana passa a assentar por inteiro sobre a base, não do bem-estar colectivo, mas do lucro. Uma vez estando a cidade associada à esfera do negócio, importa fazer multiplicar os números. E, a partir dos séculos XVIII e XIX, com o impulso da revolução industrial, o seu tamanho e densidade disparam, bem como o valor da habitação, apesar da fraca qualidade da constução, que provia doses ínfimas de luz, ar ou saneamento, e da ausência quase total de zonas verdes. Os investimentos urbanos encontrariam no subúrbio áreas sem restrições à imposição do seu modelo especulativo, enquanto que no centro tinham de optar entre a demolição de velhas arquitecturas ou a sua recuperação, implicando qualquer uma das opções aumentar a densidade construtiva. A expansão da área urbana para lá dos limites habitualmente concebidos pelos transeuntes iria impulsionar o desenvolvimento dos transportes colectivos.
Foi quando se normalizou a ideia de que os terrenos e os edifícios eram puras mercadorias, que se poderiam transaccionar à margem de princípios de responsabilidade social, que os bairros de miséria irromperam na cidade, habitados por quem não tinha condições financeiras para aceder a um imóvel digno. A desigualdade inscrevia-se com um ‘D’ maiúsculo na geografia urbana e, com ela, os primeiros casos de violência e criminalidade. A acumulação ilimitada de propriedade privada tornava-se mais importante do que o bem-estar colectivo e a especulação mais importante do que a protecção. No século XVIII, eram já cerca de 50 mil os mendigos de Paris, número respeitável, se tivermos em conta que Los Angeles, metrópole com maior número de sem-abrigo nos países do norte, contava recentemente com cerca de 100 mil.
e) a anti-cidade e a sua crítica
Habitado num primeiro momento por uma romântica minoria que buscava um equilíbrio entre cidade e campo, o subúrbio acabaria por se tornar, com a atracção de enormes quantidades de população rural pelas indústrias urbanas, um dormitório massificado que fomentaria a disseminação da mercadoria que mais fez pelo desenvolvimento da anti-cidade: o automóvel. Em geografias onde o parking se sobrepunha ao parque, o desenho do espaço exterior não requeria paisagistas, apenas especialistas em mobilidade e transportes. Nesses cenários, andar a pé tornava-se prática exclusiva dos excluídos do acesso ao símbolo obrigatório de status social que era, já nessa altura, o automóvel. Encontros fáceis e fortuitos tornavam-se impossíveis numa cidade dispersa, fragmentada, apenas unida por viaturas isoladas e caracterizada por interacções anónimas.
Pequim [Foto: Joan Villaplana]
Paralelamente, urbanistas e arquitectos ordenavam o território com um novo programa homogeneizador que, tal como na cidade barroca, tinha por missão disciplinar a vida urbana. Apoiado sobre a eficiência e o utilitarismo, o modelo funcionalista dividiu a cidade em zonas, cada qual com uma actividade específica, criando assim espaços previsíveis e transparentes, tão hostis à vida quão favoráveis ao controlo panóptico dos corpos e à acumulação ilimitada de capital. Em 1933, o manifesto funcionalista (Carta de Atenas) destacara quatro categorias que coincidiam com as funções da vida urbana favorecidas pelo capital: “produzir, repousar-consumir, habitar e circular de forma rápida” 6. Foi na reconstrução do pós-guerra que a planificação funcionalista e a racionalização capitalista da cidade encontraram condições propícias para a sua afirmação territorial. Implicando a degeneração da vida comunitária e o desmantelamento do tecido vivo da cidade, este projecto totalitário impunha o isolamento social e afectivo como técnica de gestão de multidões passivas, cujas condições para o encontro e a acção colectiva lhes eram geograficamente negadas. Um velho paradoxo marcava então a metrópole do século XX: enquanto reunia num mesmo território, com vista à exploração da sua força de trabalho, indivíduos provenientes das mais diversas culturas e tradições, numa mistura vibrante, ela dificultava-lhes o contacto, a comunicação, a partilha. Os espaços que melhor a definiam, apesar de serem agregadores de multidões, convidavam à separação – as mil e uma réplicas da máquina para habitar de Le Corbusier, a estação de metro, os acessos rodoviários, a cadeia de distribuição ou de fast food.
Esta “atomização dos trabalhadores que as condições urbanas de produção tinham perigosamente reagrupado” 7 despertou críticas ferozes, vindas sobretudo de alguns núcleos de habitantes de velhos bairros medievais que, nalguns centros históricos, ainda preservavam integridade, carácter e relações sociais directas. Foi num desses núcleos que, em Paris, a partir dos anos 50, a vanguarda letrista e depois a situacionista ensaiaram uma crítica original à geografia dominante. Reivindicavam acima de tudo a importância da rua, enquanto ambiente detonador de encontros, partilhas e aventuras, a qual o urbanismo estava em vias de suprimir. Condenavam o funcionalismo pela sua abordagem estática ao território e pela ênfase que dava à estandardização, sendo que para elas “toda a forma humana se encontra em estado de transformação contínua” 8 . O mundo livre e anti-utilitário com que sonhavam era o oposto do mundo superplanificado, de percursos fixos e imutáveis, que, com os seus sistemas de controlo herdados da fábrica e da prisão, servia a economia mercantil.
f) triunfal regresso ao centro: repressão, vigilância e exclusão
A expansão do funcionalismo urbanístico, durante o terceiro quartel do século passado, contribuiu para despovoar o centro das cidades, à medida que dinamizava zonas residenciais e pólos comerciais na periferia, apenas acessíveis ao automóvel. Enquanto que as classes médias em fuga do centro se reuniam em urbanizações periféricas mas espaçosas, seguras e próximas dos novos templos do consumo, as quais começaram a tomar progressivamente a forma de enclaves residenciais (os condomínios fechados), os modestos bairros históricos congregavam uma mistura populacional que se revelaria fértil para o surgimento das contraculturas. Juntavam, num substrato preexistente de cariz popular, pessoas imigradas com outras que não se reviam nos paradigmas dominantes ou que simplesmente buscavam um último reduto de vida social que se mantivesse relativamente imune às incursões dos investidores e empreendedores capitalistas.
A partir dos anos 80 e 90, acentua-se um processo de revalorização capitalista destes centros urbanos, que se prolongou até ao presente, ficando conhecido por gentrificação – em português, e literalmente, enobrecimento. A expansão deste fenómeno está ligada, por um lado, à emergência de uma classe média qualificada e com aspirações culturais que, tendo crescido longe dos bairros centrais, se deixou entretanto seduzir pela sua diversidade e ambiente liberal e boémio, e, por outro, ao crescimento do turismo urbano, que se revelaria capaz de monofuncionalizar, em torno da museificação dos centros históricos e dos serviços e mercadorias aí comercializados (alojamento, restauração, património, diversão, souvenirs, etc.), um número crescente de territórios.
Estes novos moradores e visitantes fizeram disparar os investimentos especulativos por parte da banca e de fundos imobiliários na habitação e também no comércio. Nesse sentido, velhos estabelecimentos, como mercearias, tabernas, restaurantes ou mercados, foram reformados e modernizados de acordo com tendências globais; cafés, reproduzindo a mesma fórmula de comida ‘saudável’ ou gourmet, foram replicados vezes sem conta; o lifestyle italiano, com as suas quatro mercadorias vedeta (pizza, pasta, caffè, gelato), espalhou-se como uma mancha de óleo; e o ‘típico’, readaptado a novas sensibilidades e paladares, impôs-se enquanto conceito diferenciador, tão bem-sucedido comercialmente como os de ‘moderno’ ou ‘criativo’.
Atentos a este processo de revalorização da velha cidade, os poderes públicos promoveram programas de reabilitação e requalificação com o objectivo de adaptarem aqueles bairros às exigências das suas novas classes. Foi assim que, no início do novo milénio, se assistiu em Portugal à criação, com o apoio de fundos europeus, do programa Polis, que tinha por meta “revitalizar as cidades” pela selecção e valorização de “áreas de excelência urbana” (centros históricos e frentes ribeirinhas e marítimas), onde ele teve fortes impactos ambientais, patrimoniais, infra-estruturais e paisagísticos, que se traduziram essencialmente num aumento das zonas verdes e das áreas pedonais. Este programa, que seguiu os princípios que haviam sido implementados na requalificação da zona oriental de Lisboa para a EXPO´98 (o maior projecto de requalificação urbana jamais realizado em Portugal), seria actualizado em 2007 pelo programa Polis XXI, o qual veio agregar como novas prioridades às políticas públicas de urbanismo e de ordenamento do território, a competitividade, a inovação, o empreendedorismo, a segurança e as novas tecnologias.
A estes programas, deve somar-se a iniciativa da administração pública na criação, em bairros até aí excluídos do roteiro burguês, de grandes projectos dinamizadores como pólos desportivos ou culturais e, mais recentemente, hubs criativos que, no espírito do Polis XXI, procuram albergar, em zonas industriais abandonadas, projectos empresariais centrados sobre a inovação e o empreendedorismo. Como a implementação destes projectos e programas jamais se vê acompanhada de políticas para fixar populações com menos recursos junto das zonas intervencionadas, como sucedera já na requalificação da EXPO’98, estas áreas acabam por tornar-se uma parte vital do território gentrificado, contribuindo para inflaccionar os preços da habitação e do comércio e, assim, afastar ainda mais as classes populares. Importa notar que a cidade gentrificada resulta portanto, não apenas do livre funcionamento do mercado neoliberal, mas de uma cuidadosa planificação público-privada, ao conjugar esforços entre autarquias, banca, ministérios diversos, fundos imobiliários e instituições europeias de financiamento. Outro exemplo desta parceria estratégica é uma enorme operação imobiliária que está actualmente em marcha em Lisboa: enquanto o Ministério da Saúde se desfaz dos hospitais públicos situados em zonas apetecíveis do centro da cidade, para reuni-los numa estrutura única em Chelas – o Centro Hospitalar de Lisboa Central -, o PDM local é revisto para permitir a conversão deste equipamentos públicos de saúde em projectos imobiliários residenciais e hoteleiros.
Nos centros gentrificados, a mesma obsessão pela segurança que as classes médias transportaram para os seus refúgios residenciais vedados, as gated communities, é aplicada no espaço público. Concebida inicialmente para as prisões, a videovigilância, promovida por governos e municípios, incide agora sobre as ruas, principalmente as turísticas, promovendo a sua segregação classista e sacrificando a sua dimensão pública – como nota Giorgio Agamben, “um espaço vigiado por uma câmara já não é uma ágora, já não tem nenhum carácter público; é uma zona cinzenta entre o público e o privado, a prisão e o fórum.” 9 Esta deriva anti-democrática do Estado securitário manifesta-se igualmente no design paranóico dos espaços exteriores que dissuade subtilmente grupos indesejáveis: “barreiras em volta do lixo de restaurantes e supermercados para torná-lo inacessível a mexidas, bancos em forma de semicírculo onde não é possível deitarem-se, paragens de autocarro onde é impossível abrigarem-se da chuva, eliminação sistemática de balneários públicos, repuxos de água automáticos para regar a relva nos parques a intervalos regulares durante a noite” 10. Em termos económicos, esta inscrição do policiamento nas materialidades que compõem a geografia urbana procura assegurar a valorização de mercadorias tão chiques e diversas como apartamentos luminosos, restaurantes de degustação, gelatarias ou bairros turísticos, ao manter afastados drogados, gangues, alcoólicos, refugiados, sem-abrigo ou pobres.
Londres [Foto: José Reis]
Estrategicamente dispostos longe do centro da cidade, em áreas isoladas da rede de serviços, acessibilidades e equipamentos urbanos, os bairros de exclusão ou bairros-guetos, onde se marginaliza a população pobre, complementam esta gestão policial do tecido social. É aqui que encontra o seu lugar o sector cada vez maior da população que está em excesso do ponto de vista do funcionamento da economia capitalista, dispensado que está da participação no processo produtivo e não conseguindo integrar o mercado de consumo. O controlo militarizado destes lugares, que subsistem à margem do direito e permanecem blindados aos mass media, beneficia da normalização do estado de excepção. Despojados de qualquer estatuto cívico e representatividade democrática, os seus habitantes encontram no motim urbano uma forma eficaz de reivindicação política, como se verificou em Londres em 2011 e em Paris alguns anos antes. O equivalente a estes bairros, nas metrópoles do sul, é a favela, onde aflui o excedente de mão de obra rural gerado pelas políticas de desregulamentação impostas pelo FMI e o Banco Mundial à produção agrária dos países do terceiro mundo, e que tende igualmente a situar-se fora do perímetro de expansão dos bairros residenciais burgueses. Não dispondo de saneamento nem de água potável, ela ocupa zonas geologicamente instáveis, junto a refinarias, minas, esgotos, unidades de indústria química, lixo tóxico, auto-estradas ou leitos de cheia, que a deixam à mercê de poluição, sismos, epidemias, incêndios, inundações e desabamentos de terras, entre muitas outras calamidades que nunca, ou apenas muito raramente, são notícia.
g) da cidade criativa à cidade inteligente
A revalorização do centro das cidades fixou populações com exigências culturais potencialmente contraditórias, mas que na prática coexistem harmonicamente. Se, por um lado, os turistas buscam essencialmente representações consumíveis de identidades locais, por outro, a burguesia cosmopolita que habita agora o centro persegue os referentes simbólicos de uma cultura global criativa e moderna. Os empreendedores que investiram nesses centros resolveram este dilema, ao criarem comércios e arquitecturas com linguagens sincréticas, capazes de incorporar num mesmo produto aquilo que hoje se entende por típico, moderno e criativo. Percorrendo as ruas de Lisboa, deparamo-nos com inúmeros exemplos: antigas barbearias com o mobiliário de sempre integram tendências hipsters; fachadas de edifícios reconvertidos em hotéis nos bairros históricos adicionam formas e materiais contemporâneos à traça original; restaurantes de autor fazem recriações modernas da gastronomia tradicional; velhos ‘quiosques de refresco’ recuperados em praças carismáticas servem licores “inspirados por receitas antigas, reinventados com criatividade” 11. Assim ultrapassada a tensão que poderia estalar entre turistas e novos residentes, a cultura material do centro das cidades é habilmente moldada para agradar às diferentes sensibilidades que existem no interior da classe média.
As transformações urbanas do novo milénio, comprometidas com a fixação dos grupos com maiores consumos culturais no centro das cidades e com a atracção dos espíritos mais talentosos e dinâmicos para o seu tecido empresarial, encontraram no conceito de criatividade um precioso aliado. O tema das ‘cidades criativas’ entrou por isso na agenda das políticas urbanas, que mobilizam agora formas de dinamização cultural, como street art ou festivais de rua, no sentido de valorizar as cidades enquanto espaços vivos, inovadores e atractivos, ambientes favoráveis à inovação tecnológica e, portanto, ao crescimento económico.
Se a revolução tecnológica em curso é favorecida pelas cidades criativas, ela está a transformar essas cidades, tornando-as também inteligentes. São corporações tecnológicas como a Google ou a Siemens, e não grupos de cidadãos, que orientam esta racionalização tecnológica da vida urbana, apoiada sobretudo no desenvolvimento de tecnologias de informação e comunicação, visando incrementar a eficiência na gestão de sistemas tão diversos como os de mobilidade e transportes ou de prevenção da criminalidade. Desta parceria entre municípios e indústria, deriva uma cidade autónoma dos habitantes, que reduz a liberdade destes à execução de funções básicas. O objecto da governação transfere-se do homem para o seu ambiente tecnológico. E a cidade daí resultante, apesar de se impor como sendo mais técnica do que política, é a cidade sem lugar para a crítica nem o conflito sonhada por qualquer poder. Uma cidade submissa, homogénea, impessoal, segura, normalizada. Como escreveu Debord em 1967, “se a história da cidade é a história da liberdade, ela é também a da tirania” 12.
Notes:
- (1)Fernand Braudel, Civilização material, Economia e Capitalismo, Séculos XV-XVIII – As Estruturas do Quotidiano, Editorial Teorema, Lisboa, 1992, p. 441. ↩
- (2)Marc Augé, Éloge du bistrot parisien, Payot & Rivages, Paris, 2015 ↩
- (3)Georges Duby, O tempo das catedrais, Editorial Estampa, Lisboa, 1979, p. 99. ↩
- (4)Civilização material, Economia e Capitalismo, Séculos XV-XVIII – As Estruturas do Quotidiano, op. cit., p. 449. ↩
- (5)Lewis Mumford, The city in history, Harcourt, San Diego, 1961, p. 410. ↩
- (6)Leonardo Lippolis, Viagem aos confins da cidade, Antígona, Lisboa, 2016, p. 14. ↩
- (7)Guy Debord, A sociedade do espectáculo, Antígona, Lisboa, 2012, p. 108. ↩
- (8)Asger Jorn, Potlatch, nº 15, 22 de Dezembro de 1954, Gallimard, Paris, 1996, p. 95. ↩
- (9)Giorgio Agamben, «Cómo la obsesión por la seguridad hace mutar la democracia», Le Monde Diplomatique en español, Valencia, Janeiro de 2014. ↩
- (10)Viagem aos confins da cidade, op. cit., p. 61. ↩
- (11)http://quiosquederefresco.blogspot.pt/2016/02/xaropes-la-carte.html ↩
- (12)A sociedade do espectáculo, op. cit., p. 111. ↩