O modelo energético que já chegou, mas ainda está para vir.
com J. Martins [j.martins@jornalmapa.pt]
[Sinergias #2] O segundo de uma série de artigos, entrevistas e reportagens com o objetivo de lançar um olhar crítico sobre o atual modelo de produção energética, a sua sustentabilidade e viabilidade no presente contexto de crise climática, ecológica, económica e social.
A necessidade de uma transformação no sistema energético é consensual. Contudo o mesmo não se pode dizer sobre os caminhos que tomará esta transição. Entre comunidades locais, movimentos sociais, governos e empresas do setor, as diferenças de posição e orientação são muitas e variadas.
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No passado dia 1 de Março foi anunciada a construção do maior projeto de captação de energia solar em Portugal até à data e um dos vinte maiores do mundo, o Solara4. Com uma potência instalada de 220 MW, o projeto, no concelho de Alcoutim, Algarve, prevê a instalação de 2,4 milhões de painéis solares. O investimento correspondente, de 200 M€, provém maioritariamente de duas empresas: a China Triumph International Engineering, parte do grupo China National Building Material, controlado pelo Estado chinês e pelo grupo britânico Welink, que tem ligações fortes a este e a outros grupos chineses. Investimentos desta natureza, em fontes de energia renovável, parecem à primeira vista incontroversos, mas, como qualquer outro, impõem uma abordagem ponderada. De acordo com um comunicado da associação ambientalista Almargem, o projeto ocupará e destruirá completamente uma área de serra com 600 hectares, o equivalente a cerca de 520 campos de futebol. A associação acrescenta ainda que “Como é óbvio, a Associação Almargem apoia o incremento dos sistemas de produção de energia não dependentes de combustíveis fósseis. (…) Num território como o Algarve, é preferível que se opte por implementar centrais solares mais pequenas, em zonas agrícolas abandonadas ou sem valor conservacionista, perto dos locais de consumo, onde todos os intervenientes possam ter benefícios e os impactes negativos sejam consideravelmente muito mais reduzidos.”. Esta situação tipifica o tipo de dilemas que grandes projetos definidos com “sustentáveis” frequentemente levantam, mas que raramente são reconhecidos ou debatidos pelos seus proponentes.
Outro exemplo relevante neste contexto é o da produção de energia hidroelétrica. 10 anos após o lançamento do Plano Nacional de Barragens pelo governo de José Sócrates em 2007, subsistem ainda 3 aproveitamentos hidroelétricos dos 10 inicialmente planeados. À destruição ambiental e ao impacto social causados por estas grandes hidroelétricas, devemos necessariamente contrapor o facto de, todas juntas, estas barragens contribuírem com a irrisória parcela de 1,7% da produção elétrica de Portugal, de acordo com o grupo Rios Livres do GEOTA. A relação entre investimento, impacto e retorno de projetos como estes deve legitimamente levar-nos a questionar quer a visão que os rege, quer acima de tudo a sua adequação.
Subindo alguns degraus na escala dos potenciais custos e impactos associados a projetos energéticos, este ano foi também o ano em que a energia nuclear voltou a estar na ordem do dia. A Central Nuclear de Almaraz, junto à fronteira com Portugal, que há poucos dias sofreu mais uma paragem não programada, coloca questões para as quais não há respostas felizes: comunidades sem voto na matéria, são forçadas a viver sob a ameaça permanente de um desastre nuclear.
Projetos como estes permitem ainda assim aos seus promotores invocar o argumento de produzirem energia “renovável” ou, pelo menos, independente da combustão de hidrocarbonetos. Outros nem isso. Alheia à recusa de dezenas de movimentos sociais, associações ecologistas e comunidades afetadas de Norte a Sul de Portugal, a GALP tenciona este ano realizar o primeiro furo para a prospeção de hidrocarbonetos ao largo da Costa Alentejana. Em comum estes projetos têm o facto de serem de grande dimensão, de se destinarem à produção de algum tipo de energia e de serem produto do investimento ou de grandes empresas do sector energético, como a GALP ou a Iberdrola, ou de investimento público de estados, ou ambos. Sintomaticamente, têm também em comum o facto de não terem sido debatidos com as populações ou as comunidades dos locais onde se implementam, indo contra inúmeros relatórios e estudos que denunciam os impactos e as consequências sobre as mesmas e o ambiente em geral. Sem surpresa, quase todos foram motivo de mobilizações e de contestação durante anos. Estes e outros grandes empreendimentos, aos quais podemos chamar mega-projetos energéticos, tipificam uma certa agenda, alheia, no essencial, ao interesse popular e à participação comunitária, que caracteriza muita da política em geral e a política energética em particular. Não espanta portanto que sejam contestados um pouco por toda a Europa e pelo mundo fora. Projetos como o Southern Gas Corridor, o gasoduto que visa abastecer a Europa com gás a partir do Azerbaijão, a exploração de carvão lignite na região alemã da Renânia, os campos de gás de Groningen, na Holanda, ou as linhas de alta-tensão no norte da Catalunha, entre muitos outros, têm sido apontados como fontes de enormes impactos ambientais e sociais. Estes e outros projetos, para os quais se canalizam muitos milhões em fundos europeus e nacionais, são produto deste mesmo modelo de produção e consumo energético centralizado em grandes infra-estruturas sob o controlo de estados ou multinacionais, que marginaliza inevitavelmente as populações afectadas, através de processos de decisão totalmente opacos e não inclusivos, sobre os quais estas não têm qualquer controlo. O exemplo paradigmático desta tendência são as estratégias previstas no Pacote sobre Segurança Energética Sustentával, apresentado em 2016 pela Comissão Europeia, no qual, entre outras coisas, se se consagra a expansão do uso de gás natural na Europa. Na prática traduzir-se-á na canalização de biliões, através de inúmeros projetos de pequena, média e grande dimensão, incluindo a construção de novo gasodutos intercontinentais e o desenvolvimento de uma infra-estrutura europeia associada à importação, armazenamento e distribuição de gás natural, que vinculará sem debate real os europeus ao uso deste combustível durante décadas. Ao mesmo tempo oferece à indústria um tremendo incentivo para a continuação da extração do mesmo, com todas as consequências que isso acarretará. Contudo este modelo não só tem sido alvo de uma crescente chuva de críticas, como também tem motivado a proposta de inúmeras alternativas.
Um passeio pela Europa das cooperativas.
Face a esta política de cima para baixo, plataformas cidadãs, coletivos ecologistas, académicos, ambientalistas e comunidades afetadas têm contraposto e promovido conceitos como energia comunitária, cooperativas de energias renováveis, autossuficiência e autonomia energética, ou democracia e soberania energética, apontando os mesmos como dinâmicas incontornáveis para uma transição energética não só ambiental e socialmente sustentável, mas socialmente dinamizadora e emancipatória. Indo além de ideias e conceitos estas propostas têm-se materializado em iniciativas concretas com o intuito de desenvolver novas relações entre os sistemas energéticos e as comunidades, centradas em energias renováveis e numa visão da energia como um bem comum e essencial. A multiplicação de cooperativas de eletricidade renovável, projetos de energia comunitária e inúmeras experiências com tecnologias de uso livre e aberto é evidente.
De acordo com o site rescoop.eu, da Federação Europeia de Cooperativas de Energia Renovável, existem na Europa cerca de 2400 REScoops, localizadas maioritariamente na Europa Ocidental, tendo a Alemanha, a Dinamarca e a Áustria o maior número de cooperativas em funcionamento. Neste universo a federação representa cerca de 1200 destas iniciativas e desde que foi fundada, em 2013, os seus membros investiram cerca de 2 biliões de euros em instalações para a produção de energia, que somam uma capacidade instalada de 1 GW. Tratam-se, na sua maior parte, de cooperativas de consumo de energia elétrica de origem renovável sem fins lucrativos. São idealmente estruturas transparentes com processos internos democráticos para a tomada de decisões, que podem ainda ser uma forma de investir coletivamente em infraestruturas locais de produção energética renovável com o fim de beneficiar uma comunidade. Uns cliques no mapa interativo disponível no site e fazemos zoom-in sobre a Península Ibérica. Automaticamente surgem pontos como a SOM Energia na Catalunha, a Zencer na Andaluzia, a Goiener no País Basco, a Nosa Enerxia na Galiza e a Coopérnico em Portugal, entre algumas outras. As várias regiões de Espanha têm sido palco nos últimos anos de um autêntico boom de cooperativas, onde a Catalã SOM Energia, primeira a constituir-se em 2010, é a maior de todas elas. Para compreendermos as razões que levaram a este rápido desenvolvimento temos de olhar quer para a natureza do mercado espanhol, quer para o impacto da crise financeira. De acordo com um artigo na revista El Ecologista, a persistência da crise, combinada com a subida dos preços da eletricidade nos últimos anos, gerou escandalosos problemas de pobreza energética. Estima-se que, em 2012, pelo menos 7 milhões de pessoas tiveram de destinar uma quantidade desproporcionada dos seus rendimentos para pagar faturas de eletricidade. Paralelamente, a chamada liberalização do sector energético, em curso desde os anos 90, traduziu-se na criação de um oligopólio com amplas ramificações na política espanhola. As 5 maiores empresas de geração elétrica, agrupadas na Unesa, associação espanhola da indústria, são responsáveis por 76% da geração, 85% da comercialização e 98% da distribuição no país. Estas empresas têm influência direta na legislação aprovada, diabolizam as energias renováveis com o objetivo de manter os seus investimentos em centrais de ciclo combinado a gás natural e manipulam preços. Um artigo publicado no jornal espanhol Diagonal, no final de 2016, notava que o preço da energia pago pelas famílias espanholas esteve entre os mais altos da Europa. No primeiro semestre de 2016, segundo dados do Eurostat, estava nos 0,218 €/kWh, acima da média europeia de 0,206 €/kWh e acima de França e Suécia, mas abaixo de Portugal, com um preço médio da eletricidade de 0,23 €/kWh (fonte: Pordata). Estes valores traduziram-se em lucros, entre 2008 e 2015, na ordem dos 56 624 M€ para as três maiores elétricas espanholas, Endesa, Iberdrola e Gás Natural Fenosa. Este período não é apenas um espaço de tempo em que o preço da eletricidade não parou de aumentar, mas também o da crise económica. O facto de os que mais sofreram com a crise terem sido os mesmos a paga-la não evitou a tragédia de cerca de meio milhão de habitações com a luz cortada em 2015, número só ultrapassado em 2012, um dos anos mais violentos da crise, com quase 1,5 milhões de cortes de luz em Espanha. É neste contexto de monopólio, ganância e prepotência que a proposta das cooperativas ganhou terreno. O número de membros das cooperativas não mais parou de aumentar. A SOM Energia, um projeto local impulsionado por 150 sócios, evoluiu para uma cooperativa com quase 33500 sócios em 2017, organizados numa estrutura descentralizada com dezenas de grupos locais por todo o país. Outras cooperativas surgiram entretanto. A Goiener, no País Basco, conta já com mais de 6153 sócios, e a Nosa Enerxia, na Galiza com cerca de 300.
Em Portugal o sector elétrico é igualmente dominado por empresas monopolistas. Em 2016 a EDP, concessionária da rede de distribuição nacional, obteve um resultado líquido de 961 M€ (mais 5% que em 2015) e em outubro passado, poucos dias após a inauguração do Museu de Arte, Arquitectura e Tecnologia (MAAT), gerido pela Fundação EDP, a empresa voltou aos cortes de abastecimento em bairros sociais. Um comunicado conjunto de associações de moradores de vários bairros da grande Lisboa descreve que no Bairro da Torre, em Loures, a EDP “cortou, sem qualquer aviso, o acesso à energia a cerca de 70 famílias que aí vivem, incluindo a iluminação pública.” Após o corte a Câmara disponibilizou dois geradores, mas, esgotado o gasóleo, as famílias voltaram a ficar sem luz, pois era-lhes impossível pagar o combustível. Num outro episódio a EDP colocou em tribunal a associação de moradores do bairro da Jamaika, no Seixal, exigindo o pagamento de uma avultada soma. No bairro vivem 215 famílias em habitações com humidade, parco saneamento, frequentes inundações e prédios degradados. Em causa está a recusa, por parte da EDP, em realizar contratos individuais aos moradores e exigir que a associação faça a gestão das faturas, situação que não colheu acordo entre moradores e gerou conflitos. Em 2013 a empresa tinha já cortado a eletricidade nos bairros do Lagarteiro e de Contumil, no Porto. De acordo com o 2.º relatório da União energética da Comissão Europeia, de fevereiro passado, o país com o preço mais alto da eletricidade era o Reino Unido, seguido de Portugal, Grécia, Espanha e Itália. Foi também nestes países mediterrânicos que, entre 2013 e 2015, o preço por MWh de eletricidade mais subiu. Os relatos da pobreza energética não se ficam por aqui, como conta Miguel Heleno na edição de fevereiro de 2016 da versão portuguesa do jornal Le Monde Diplomatique. Pelo menos 22% da população vive em casas com défices graves de isolamento térmico. Os mais vulneráveis são, naturalmente, os idosos, que em grande parte habitam em meios rurais ou urbanos envelhecidos. Há ainda um outro dado importante: o peso da eletricidade na energia consumida em Portugal é muito superior à média da UE. 61.2% das famílias usa aquecimento elétrico, o que as torna, na prática, reféns da eletricidade, e do seu preço, para o aquecimento.
Mas também em Portugal existem experiências alternativas. Uma das que tem recebido mais destaque é a Coopérnico, uma cooperativa para a produção e comercialização de energia renovável. Criada em 2013, conta com 636 membros e fornece mais de 300 contratos para a venda de eletricidade sustentável de fontes renováveis. Tem investido na instalação de inúmeras centrais solares em meio urbano e tem já concluídos com sucesso inúmeros projetos, totalizando investimento superior a 500000€. A maior instalação está localizada em Mangualde, com uma potência instalada de 86 kW. Curiosamente, outros exemplos interessantes remontam não a 2013, mas aos anos 30 do século passado. Existem ainda hoje em Portugal cerca de 10 cooperativas elétricas locais, a maioria no norte do país, que datam desse período. Estas cooperativas formaram parte de uma resposta frequentemente colectiva aos desafios da eletrificação do interior rural. Inúmeras deixaram de funcionar ao longo do século passado, à medida que a rede nacional se desenvolvia, nomeadamente durante os anos 80, período aziago a projetos desta natureza, mas as dez que sobrevivem são na maioria casos de sucesso a vários níveis. Cooperativas como a CELER, de Rebordosa, a A Lord de Lordelo, CEL de Loureiro ou a CEVE de Vale d’Este, entre outras, são exemplos vivos e vitais de eletrificação cooperativa vinculada às comunidades a que pertencem. São locais, enraizadas e representativas do seu território, da sua população e da sua história, para os quais contribuíram ao longo de décadas. Fornecem eletricidade a preços inferiores à média nacional, com uma qualidade de serviço superior, fruto da proximidade aos utente e membros, dão lucros que em grande medida revertem para a comunidade, entre outros aspetos a destacar. Naturalmente, a maior parte da eletricidade que fornecem não provém de fontes renováveis e, como organizações quase centenárias, terão alguma bagagem associada ao contexto sociopolítico que as envolve. Mas não custa imaginar que poderão adoptar com maior facilidade soluções renováveis de menor impacto do que as descritas atrás. Finalmente, o AECT Duero-Douro, uma organização transfronteiriça sem fins lucrativos devotada ao desenvolvimento da região, anunciou no início do ano a criação de um uma cooperativa transfronteiriça, a EFI-Duero Energy, em parceria com mais de 200 municípios e entidades de ambos os lados da fronteira, com a promessa de oferecer eletricidade a preço de custo, sem margem comercial e de combate ao oligopólio que domina os dois mercados. Ao contrário da Coopérnico que tem um compromisso claro com a energia renovável produzida localmente, estes projetos, pelo menos nesta fase, oferecem propostas essencialmente interessantes no que toca ao comportamento dos mercados e à integração comunitária de serviços.
Para lá das cooperativas
As diversas experiências e perspetivas cooperativas na área da energia têm sido alvo de um alargado debate e estudo quer no meio académico, quer por inúmeros grupos e coletivos dedicados à soberania energética, mas também por sindicatos e outras organizações políticas. O trabalho de Conrad Kunze e Sören Becker, investigadores alemães sobre modelos cooperativos de produção energética, realça o papel que movimentos sociais desempenham quando unem iniciativas de transição energética a propostas de decrescimento ou abrandamento económico. Assim, definem “projectos colectivos de energia renovável politicamente motivados”, ou seja, iniciativas que se posicionam para lá da mera geração de eletricidade ou calor a partir de fontes renováveis, mas que assumem uma dimensão política, através de estruturas que promovem a participação, a propriedade coletiva, bem como processos de tomada coletiva de decisões. Os investigadores lançam-se na identificação desses projetos na Europa, usando ainda outros critérios, como o compromisso com objetivos ecológicos ou a criação de emprego ao nível local. O exemplo da SOM Energia surge na lista, lado-a-lado com muitos outros projetos. Um deles começou em 2003, quando a comunidade de Machynlleth, no País de Gales, através da cooperativa Bro Dyfi Community Renewables, foi responsável pela instalação da primeira turbina eólica comunitária, comprada em segunda-mão, com uma potência de 75 kW. Para os investigadores, o projeto de energia eólica em Machynlleth segue uma agenda de decrescimento: fornece energia renovável gerada localmente, acompanhada pela tentativa de impactar o estilo de vida da comunidade em termos energéticos, sem seguir um modelo comercial tradicional. A vila é também o local onde, desde os anos 70, está instalado o Centro para a Tecnologia Alternativa (CAT, na sigla em inglês), um centro de educação e investigação em sustentabilidade. Inicialmente uma parte da energia produzida pelo gerador servia para alimentar o CAT, sendo o excesso de produção injetado na rede de distribuição local. De acordo com a página do projeto, toda a energia gerada hoje em dia é injetada na rede local e em 2010 a comunidade instalou uma segunda turbina de 500 kW.
Em 2013 Berlin foi palco de uma tentativa de compra e municipalização da rede de distribuição local de energia. A campanha que antecedeu o referendo, a 3 de novembro, foi dinamizada pela Berlin Energy Roundtable, uma aliança de ONG’s, grupos ambientalistas, ativistas, coletivos anti-gentrificação e profissionais de energias renováveis. A proposta do referendo era retirar a concessão da rede à Vatenfall, companhia pública sueca, que é proprietária da rede desde a sua privatização, em 1997. A empresa é particularmente mal vista na Alemanha, pelo facto de ser dona de diversas centrais nucleares e minas de lignite perto de Berlin e porque, em 2012, processou o governo alemão, pedindo biliões de euros de indemnização pela decisão de encerrar gradualmente centrais nucleares na sequência do desastre de Fukushima. A aliança propunha que a rede local viesse a ser propriedade de uma nova companhia publica de energia 100% renovável, de base comunitária, gerida pelos cidadãos, pelos próprios trabalhadores e membros da Câmara Municipal. A companhia estaria ainda orientada para uma redução geral do consumo energético na cidade e para a implementação de tarifas sociais de eletricidade que prevenissem a pobreza energética. A proposta, aprovada por 83% dos votantes, falhou ficando 21,000 votos atrás do resultado necessário para a sua implementação.
Estes dois modelos, os mega-projetos e projetos de pequena e média dimensão, assentes em ação e soberania comunitárias, são em grande medida antagónicos e fazem parte do autêntico turbilhão que percorre o sistema energético. É preciso ainda não esquecer os avanços tecnológicos da ultima década que têm tornado cada vez mais acessíveis módulos fotovoltaicos, painéis de energia solar térmica para a produção de águas quentes e turbinas eólicas adaptáveis a todos os regimes de ventos urbanos ou rurais. O custo da energia fotovoltaica, por exemplo, diminuiu 85% nos últimos 7 anos, de acordo com o relatório Carbon Tracker do Imperial College de Londres, ganhos que, à luz de avanços tecnológicos previsíveis, tenderão a aumentar ainda mais. Estes avanços tornam cada vez mais viáveis e relevantes quer soluções comerciais convencionais, quer, crucialmente, soluções locais e comunitárias sem fins lucrativos. Por outro lado, a indústria de combustíveis fósseis reinventa-se e redobra esforços para atrasar este progresso e a sua aplicação abrangente. A política europeia reflete claramente estas tensões. Se o Pacote sobre Segurança Energética Sustentável da UE, que mencionamos, pode ser descrito como uma “carta de amor” à indústria fóssil, o mais recente Winter Package: Clean Energy for All Europeans (Pacote de Inverno: Energia Limpa para Todos os Europeus) lançado em novembro passado, estabelece, entre outras coisas, as bases para uma muito maior abertura para com iniciativas locais e regionais de base comunitária ou cooperativa, focadas na produção de energia provinda de fontes renováveis. Estes dois pacotes de medidas representam o que a UE espera que seja visto como uma política estratégica multipolar e complementar. O problema é que claramente onde uns são filhos, outros são enteados. O primeiro representa um esforço estrutural, assente em infraestrutura construída ou a construir, com claras implicações a médio e longo prazo; enquanto o segundo, bem vindos que sejam alguns dos seus elementos constituintes, representa acima de tudo uma maior abertura institucional a alternativas. Enquanto isso, o planeta aquece…
Some like it hot.
Como cenário de fundo surgem as alterações climáticas e os seus impactos. 2016 foi o ano mais quente de que há registo e é muito provável que 2017 lhe tome o lugar. Na sequência do seu mais recente relatório anual que realçava estas tendências, David Carlson, diretor do programa de investigação climática global da WMO (Word Meteorological Organization) afirmou que “estamos a ver alterações notáveis à escala planetária, que questionam os limites da nossa compreensão do sistema climático. Estamos realmente a entrar em terreno desconhecido”. Em perfeito contra-ciclo, no final de março correu na imprensa mundial uma fotografia de Donald Trump, ladeado de mineiros. Também ao seu lado, durante a assinatura do decreto que deita por terra o Clean Power Act, a legislação aprovada por Barack Obama para cortar as emissões de gases com efeito de estufa, estava ainda o recém-nomeado diretor da Agência de Proteção Ambiental, Scott Pruitt, personagem fortemente associado à indústria petrolífera e que rejeita o consenso científico em torno do aquecimento global. Dois meses antes, em janeiro, Trump tinha revertido outro marco da administração Obama, o cancelamento do Dakota Access Pipeline, conseguido após largos meses de protestos e de repressão de ativistas indígenas e ambientais. No entanto, o que é surpreendente em Trump não é o seu compromisso com a reativação das indústrias do petróleo, gás e carvão. A administração Obama, mesmo tendo aprovado medidas limitadas contra as alterações climáticas, nomeadamente no que toca ao carvão, foi um proponente e dinamizador inicial do gasoduto Keystone XL, um dos projetos potencialmente mais danosos da atualidade. Foi ainda durante o seu mandato que a indústria da fratura hidráulica teve o seu momento áureo, com o seu apoio declarado. Ainda assim, Trump devolve o American Dream à indústria fóssil com um assustador orgulho e consequências possivelmente devastadoras, pela mensagem que passa à indústria e ao mundo. 8 de novembro de 2016 não foi apenas o dia em que este ganhou as eleições nos EUA, mas também o segundo dia da COP22, a conferência das Nações Unidas para as alterações climáticas. Reunidos em Marraquexe, líderes e delegações mundiais congratulavam-se com a ratificação do Acordo de Paris, que visa impedir que a temperatura média do planeta não suba (idealmente) mais de 1,5º C, perante um coro de consternação de especialistas e cientistas que, louvando o passo em frente, não conseguiam deixar de reconhecer o irrealismo do mesmo, perante a falta de metas vinculantes e de mecanismos, nomeadamente face às reservas de combustíveis existentes e consumos já previstos. O acordo sugere um fluxo de muitos milhões para todo o tipo de investimentos energéticos, ao mesmo tempo que estudos recentes como o Emissions Gap Report 2016, publicado pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente, indicam que mesmo cumprindo o estabelecido, o aumento ronde os 3ºC ou mais, o que teria inevitavelmente consequências desastrosas para o ecossistema global. O problema é que já passaram quase 8 anos desde a Conferência do clima em Copenhaga, no ano de 2009, 20 desde o Protocolo de Quioto e quase 30 desde o histórico testemunho do cientista da NASA, James Hansen, ao Congresso americano acerca do aquecimento global. As temperaturas médias do planeta não pararam de aumentar e estudos e notícias recentes começam a lançar sérias dúvidas sobre se não ultrapassámos já o ponto de não-retorno nos níveis de CO2 na atmosfera, para além do qual alterações catastróficas serão inevitáveis. Todas as estimativas e resultados previstos ao longo dos anos têm sido consistentemente ultrapassados, seja no que toca a temperaturas, gelo oceânico e polar ou outros indicadores, demonstrando que os modelos pecam por defeito e refletindo a natureza altamente complexa e dinâmica do sistema climático global. Se no plano puramente científico existe ainda incerteza, não no que toca ao fenómeno, mas à sua real magnitude, existem outros aspectos desta situação que são bem menos incertos. O site carbonmap.org mostra um dos aspetos mais perturbantes do atual modelo energético: as assimetrias em termos de acesso à energia entre os países do sul e do norte do globo e sua relação com a proveniência dessas fontes energéticas. Se é no hemisfério norte que se consome a maioria da energia, é no hemisfério sul que estão localizadas a maior quantidade de reservas de combustíveis. Contudo os efeitos de eventos climáticos extremos, as cheias e as mudanças profundas nos ecossistemas terão consequências diferentes e serão os mais pobres, em toda a parte, a pagar a fatura mais alta do modelo energético fóssil com especial ênfase no sul global. O problema é, ao mesmo tempo, muito complexo e extremamente simples. Não pode existir uma economia realmente “verde” que não seja também justa e fundamentalmente distinta da atual. À luz do escasso progresso das últimas décadas, as soluções parecem residir em grande parte nas comunidades e não nos líderes.
Mais fundo na transição energética.
A introdução do livro “Transições Energéticas: Sustentabilidade e Democracia Energética”, publicado em 2015 por elementos de alguns grupos de investigação (1) da Universidade do País Basco e pelo grupo Ekologistak Martxan, é uma rara e completa síntese das questões que se deveriam colocar a qualquer pessoa ou organização dedicada a pensar um novo sistema energético. Os autores analisam a transição energética na intersecção de questões não só ecológicas mas também sociais, políticas e económicas, trazendo claridade a um debate que muitas vezes esbarra na simplicidade de análises que se centram apenas nas consequências dos níveis de CO2 na atmosfera e na necessidade de mais energias renováveis. Mais do que simplesmente entender estas problemáticas de um ponto de vista puramente ecológico, estendem a discussão ao âmbito sistémico e socioeconómico da organização social:“Os recursos energéticos renováveis também não estão a salvo porque colocámos em perigo a sua disponibilidade através de uma utilização muito superior à sua taxa de renovação. E, claro, estamos a esgotar os depósitos de resíduos: já não sabemos o que fazer com o lixo, com os resíduos radioativos, com a contaminação que todos eles produzem, com as alterações climáticas nem com o CO2”. Prosseguem, afirmando que se verifica “o esgotamento de um modelo político e económico injusto e insustentável. A crise da democracia liberal capitalista é palpável. Cada vez são menos os que confiam na classe política ou no sistema de representação. E nós também estamos esgotadas. Uma sociedade espremida pela exploração laboral, pela invisibilidade dos trabalhos de assistência, pelos ajustes estruturais e pelo culto do crescimento económico. Uma economia que gira em torno dos processos de acumulação e especulação financeira e se esquece da manutenção da vida, das pessoas, das comunidades e dos ecossistemas. Um sistema enraizado na injustiça em múltiplas escalas, que saqueia o Sul para o consumo do Norte e para o enriquecimento de companhias transnacionais e elites político económicas.”
No entanto o livro está longe de ser um compêndio de ideias catastróficas. Nesse sentido, consideram que uma das questões chave para a transição energética é “a capacidade de suprir a procura de energia atual das sociedades do norte através de energias renováveis” e referem os estudos de Carlos de Castro Corranza, físico da Universidade de Valladolid, para concluir que esta substituição não é possível. Acrescentam ainda que “As energias renováveis também requerem a utilização de materiais não-renováveis e produzem uma série de impactos no território. O debate sobre a escala e a forma em que se desenvolvem as renováveis é algo central em todo o processo. O facto de que muitas organizações não considerem como renováveis as grandes hidroelétricas devido ao impactos irreversíveis que produzem, ou o lema ‘eólicas sim, mas não assim’ são reflexo da discussão sobre sustentabilidade ambiental das renováveis. Não é apenas o ‘que’, mas também o ‘como’ (e para quem e para quê). Portanto se o novo modelo deve ser renovável e ambientalmente sustentável, o decrescimento no consumo, por parte das comunidades e sociedades do Norte é indispensável”. Lançam-se então numa tentativa de definir o que poderá ser a Transição Energética, questionando-se se será uma revolução ou uma mudança suave. “(…) a transição que desejamos implica uma rutura nos processos de acumulação e de saque ambiental e humano, mas também uma desconstrução de muitas estruturas de dominação tanto externas como internas. Se queremos imaginar e construir horizontes ambientalmente mais sustentáveis e socialmente mais justos, é necessária também uma revolução cognitiva, social e cultural.” Por último, é preciso compreender quais serão os atores desta transição e qual a sua natureza e métodos. Se por um lado existem organizações e empresas que, tendo um papel central neste processo, atuam no âmbito do mercado, há ainda outras que são parte da sociedade civil e mesmo de governos locais ou dos próprios municípios. Para os autores o importante é que se tratem de “iniciativas nascidas desde baixo” e apontam os “movimentos sociais, as cooperativas e os governos municipais” como os agentes de mudança energética mais relevantes.
Talvez a questão central para a definição de quais os caminhos a tomar na transição energética tenha que ver com a forma como concebemos a energia. Cecile Blanchet, ativista e investigadora na Commons Network e colaboradora com a fundação P2P, no seu blog energycommonsblog.wordpress.com, deixa-nos duas visões diferentes sobre a energia. Quando a energia é uma mercadoria “é produzida para produzir lucros (mesmo que verdes): somos clientes/consumidores e o nosso poder de decisão é escolher entre diferentes companhias de energia. O incentivo neste caso é produzir a maior quantidade de energia possível (ou aumentar os preços) de forma a aumentar os lucros. Os preços são determinados ou pelo produtor (o dono da central) ou pelo mercado”. Por outro lado quando a energia é um bem comum “é produzida para responder a uma necessidade e somos produtores e consumidores. A isto é chamado ‘prosumers’. Podemos decidir juntamente com vizinhos qual o sistema que queremos. O incentivo é produzir o que é preciso e armazena-lo. Sendo um bem comum não significa que a energia é grátis mas que os preços podem ser adaptados às nossas necessidades (somos nós que a controlamos e usamo-la para promover justiça social e climática). Pensemos na água que é também um bem comum: tem um custo para o consumidor. Mas não vais fazer lucro a partir dela porque é considerada um direito humano. Devemos olhar para a energia da mesma maneira”
Notas:
(1) Grupos de investigação EKOPOL (Ekonomia Ekologikoa eta Ekologia Politikoa) e PARTE HARTUZ