Prisões: o bode expiatório

17 de Fevereiro de 2017
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com Filipe Nunes

Garantir os direitos aos presos é difícil. Pôr em causa as prisões mais ainda. Daí a conversa com António Pedro Dores sobre o sistema prisional português.

O texto que se segue resulta de uma conversa à volta do tema das prisões e é, necessariamente, um texto longo. Porque não é fácil reduzir a poucas linhas uma conversa sobre o pior da política prisional, sobre os exemplos de resistência mais inspiradores, sobre ativismo e abolicionismo. A história de uma associação sem fins lucrativos serve de roteiro a uma viagem pelo interior das cadeias portuguesas, através das reflexões de um sociólogo capaz de demonstrar que a prisão e a sua ausência de humanidade estão no centro da organização social atual.

António Pedro Dores, 60 anos, apresenta-se na sua página pessoal como “professor universitário, sociólogo, instalado na vida e com o sentimento de ser carro vassoura de uma sociedade que está a desaparecer”.

Agitações nas prisões portuguesas

Cruzámo-nos pela primeira vez com o investigador do Centro de Investigação e Estudos de Sociologia do ISCTE, nos idos anos noventa, não nos corredores da academia, mas às portas das prisões. Como ativista participou na APAR (Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso), durante alguns meses de 1996, e no ano seguinte, com outros companheiros também saídos desta, fundou a ACED (Associação contra a Exclusão pelo Desenvolvimento), vindo a assumir os temas prisionais no centro da sua atividade profissional na viragem do milénio.

Falar do percurso das prisões em Portugal leva naturalmente a um antes e um depois do 25 de Abril de 1974. Mas a distinção óbvia com as mudanças de regime político não evita que subsista na questão penitenciária um mesmo fio condutor e denominador comum que é a condição do preso.

Desde os motins na década de 1980, com origem nos espancamentos infligidos pelos guardas aos presos, às revoltas e greves de fome no início dos anos 90 devido à sobrelotação prisional e ao colapso dos serviços básicos nas cadeias a auto-organização dos presos ganhava então uma dimensão até aí não vista. O próprio Diretor-geral das prisões, o juíz Marques Ferreira, ameaçado por máfias, é forçado a demitir-se declarando que “o sistema prisional chegou ao fundo e precisa de uma renovação total”. 1996 será o ano de todos os protestos nas cadeias. Rapidamente alastram greves de fome e ao trabalho, acompanhadas de milhares de assinaturas na reivindicação de melhores e dignas condições de vida dentro das prisões.

É nesse contexto que é chamado para aplacar a situação Celso Manata mantendo-se no cargo até 2001. Os protestos esvaziam-se em 1996, depois da violência dos guardas perpetrada junto dos presos do Reduto Norte do Forte de Caxias, logo acusados de um motim que não foi provado em tribunal 13 anos depois, e será a mão férrea dos serviços prisionais que pautará as décadas seguintes que inauguram o novo século XXI. E atualmente Celso Manata voltou a assumir a liderança dos serviços prisionais.

Vozes contra o silêncio

É nas agitações de 1996 que surge o envolvimento de António Pedro Dores. E a coisa não começa bem. Vitor Ilharco à frente da APAR (inativa desde 1997 e reativada em 2012) deixará cair tudo por terra pelas acusações de aproveitamento financeiro em nome próprio que lhe são imputadas. Uma experiência muito negativa para Dores, que se afasta da APAR mas não do trabalho com as cadeias, “nessa altura, falando ao telefone com uma mulher que estava presa, ela perguntou: ‘como é que eu sei se o vigarista é o senhor ou se o vigarista é o outro?’ E eu percebi que ela tinha toda a razão. A partir daí tive de tomar uma posição que foi manter-me ativo. É portanto uma questão de honra”. Estamos em 1997 e nasce a ACED fundada por quatro pessoas que saíram da APAR “com a ambição de fazer um congresso, um congresso contra a exclusão pelo desenvolvimento, uma coisa magnífica em que juntaríamos todas as boas vontades do país para tratar das questões da prisão, que estavam na altura a ser reveladas, nomeadamente pelo provedor de justiça”. Destas quatro pessoas “uma delas era advogada, outra delas era um pai de uma pessoa que faleceu no quadro de intervenções policiais (e que entretanto ele próprio já faleceu), era eu e um homem que estava preso, o Alte Pinho.”

A ideia era “com base nas denúncias que nos chegavam das cadeias fazê-las chegar às autoridades e estabelecer um diálogo que era impossível de outra maneira”. Editam o SOS Prisões para que “pudesse fazer crescer, por um lado junto dos prisioneiros, mas por outro lado junto da população livre, alguma informação sobre o que se ia passando. Em Sintra, o Director da cadeia permitiu a entrada de um computador, onde eles faziam o jornal. Aliás começaram a fazer o jornal para divulgar junto dos presos. O problema surgiu quando eles quiseram, ao fim de 3 meses, passar a ser um jornal para divulgar fora e o Diretor da cadeia foi pressionado pela DGSP (Direcção Geral de Serviços Prisionais) e entrou numa atitude de repressão. Retirou o computador às pessoas, fizeram uma campanha inventada de drogas, ou álcool, já não me lembro bem, mas lembro-me que a DGSP mandou dizer aos jornais que eu era traficante de drogas, lembro-me bem dessa parte!”

O início da ACED resulta num momento marcante pela positiva para Dores: ”o encontro com o Alte Pinho, sem dúvida nenhuma. O Pinho não tem nada a ver comigo, mas soube responder-me como igual quando discordávamos, estando ele preso. É um homem que saiu da prisão e fez uma coisa extraordinária, quis ser activista. Não foi possível, mas ele quis. Nenhum dos outros tentou sequer. E isso é uma coisa que tem um valor extraordinário, de capacidade, de coragem, de dar a cara, de reconhecer a sua própria identidade”. Antes de sair “era ele quem, dentro das cadeias, ia trazendo informação”. Ao fazê-lo “a política da DGSP era transferi-lo. Cada vez que a direção achava que ele se portava mal, não havendo razão para um processo disciplinar, o que havia era uma transferência. Mas isso teve uma consequência, é que ele ficou a conhecer as cadeias todas do país, praticamente, e foi mantendo algum contacto com as pessoas que eventualmente tivessem possibilidade para o fazer. Estou a falar disto porque a generalidade dos presos não sabem ler, não sabem escrever, não sabem falar. Não têm ideia de quais são os direitos das pessoas. Era difícil na altura… talvez agora seja diferente” diz-nos, descrevendo a situação prisional portuguesa na qual “uma pessoa é muitas vezes abandonada no tribunal, outras vezes, certamente à entrada das cadeias, abandonada pelos advogados e não percebe sequer o que tem a fazer ou que direitos é que tem”.

Nos anos que se seguem “nunca mais a tensão parou entre a ACED e a DGSP. Mas foi possível fazer o jornal durante 3 anos. Significava que, de alguma maneira, já não me recordo bem como, os artigos chegavam, compunha-se, apareceram apoios anónimos”. Como universitário António Pedro Dores passa a “fazer “investigação-ação”. Até que, “a determinada altura, o ministério da justiça faz chegar ao ISCTE, uma queixa por eu estar a utilizar o nome do ISCTE para efeitos de uma associação que eles entendiam que era… subversiva. A partir daí a minha vida foi outra em termos académicos, porque a escola entendeu, de uma maneira pidesca, como na altura disse, que devia acabar com os apoios que me dava para eu fazer investigação”. Ao mesmo tempo Dores avança com um processo-crime face a violação de correspondência da ACED pela DGSP. “O tribunal reconheceu que havia violação mas que, como a correspondência vinha da prisão, já não havia violação de correspondência, ou melhor, já não era crime. Isso está escrito”. A partir de então “ficou muito claro para mim que havia, no quadro da cadeia, duas leis: a lei da cadeia e a lei de fora da cadeia e os tribunais reconheciam essa impossibilidade das leis que funcionavam fora da cadeia funcionarem dentro”.

A partir de 2001 a ACED procurar estruturar-se de forma mais consistente, mas, por entre o resistir a dirigismos partidários, acaba por se ver reduzida a um pequeno núcleo. António Pedro Dores conclui desse esforço de se alargar que “no caso das prisões, as pessoas podem apoiar muito, acham muito engraçado, mas ninguém se mexe, pedem desculpa mas têm de ficar na clandestinidade. Exatamente o que queriamos fazer era o contrário: fazer com que as prisões deixassem de estar na clandestinidade. Tudo isto tornou impossível a nossa missão”. Posteriormente com a saída de Alte Pinho para fora do país, a ACED ficará praticamente apenas nas suas mãos. “Foi-se mantendo muito à conta dos prisioneiros. Era impossível para mim deixar de responder aos telefonemas que iam surgindo”.

Porém “em termos organizativos o isolamento era cada vez maior”. Ao mesmo tempo, “tanto o Ministério da Justiça, através da IGSJ (Inspeção Geral dos Serviços de Justiça), como o Provedor de Justiça, habituaram-se a receber as nossas queixas, habituaram-se a tratá-las, e mesmo os presos começam a dirigir-se-lhes. Criou-se uma dinâmica”. Centrada nesse reencaminhar das queixas, “achei que era um bocado redundante a atividade da associação, visto que grande parte da atividade que tinha existido, como por exemplo campanhas por uma sociedade sem prisões, conferências e relatórios anuais sobre a situação das prisões, tudo isso não foi sendo feito”. Debaixo da mira dos Serviços prisionais e com dificuldade para manter uma linha telefónica de apoio verdadeiramente operacional, a ACED fecha portas em 2016. Para António Pedro Dores o maior desconforto é verificar que “ao fim de 20 anos voltarmos ao mesmo, até com o mesmo director-geral [Celso Manata]. É um bocado desmotivante…”

Experiências que marcam

Ao longo deste percurso muitas são as histórias. A mais negativa é relatada ainda com angústia. “Certa vez recebemos a informação de que há um homem que está a ser ameaçado de morte em Vale de Judeus. Decidimos fazer um fax (não havia emails) para a provedoria de justiça a informar e, nessa altura, ao contrário do que era costume, não divulgar para mais ninguém para evitar que alguma coisa se precipitasse. O resultado foi que mataram mesmo o homem. Evidentemente a provedoria de justiça não tem nenhuma responsabilidade nisso, mas o que é verdade é que a morte que foi anunciada verificou-se e nós sentimo-nos impotentes, apesar de termos tentado fazer o que foi possível. A partir daí resolvemos fazer as coisas sempre de acordo com uma rotina normal e não termos mais problemas de consciência a esse respeito. Tudo quanto nos chega vai logo para todo o lado, independentemente de sabermos se é verdade, se é mentira, que foi aliás uma das queixas que nos começou por fazer o Provedor de Justiça”. A nossa resposta foi muito simples: “nós não somos obrigados a investigar, nós recebemos denúncias e somos obrigados a canalizar”.

A denúncia dos nomes de guardas prisionais levou mesmo Dores aos tribunais. O “Sindicato dos Guardas Prisionais atacou-nos em tribunal, evidentemente com as costas quentes por alguma razão, a dizer que nós estávamos a insultar os serviços prisionais (os serviços prisionais que pelos vistos são representados pelo sindicato dos guardas)” até ter desistido da queixa no final de 2008 “por razões que talvez tenham a ver com o facto do ministro da justiça ter sido chamado a depor em tribunal“, evitando-lhe, assim, esse incómodo.

Droga e repressão surgem sem grande surpresa na essência do sistema prisional. “Se falta droga dentro das cadeias a tensão aumenta de uma maneira explosiva. Além do consumo de drogas ilegais, nas prisões, há também os psicotrópicos para complementar alguma falha. Este tipo de mecanismo é evidentemente responsável pela situação geral nas prisões. Toda a gente lá dentro se orienta conforme pode, num quadro em que a linha de comandos está completamente quebrada e ninguém quer saber exactamente o que lá se passa. E portanto os resultados são estes”. A mesma situação que levou Marques Ferreira em 1995 a ir à televisão dizer que as prisões eram conduzidas por máfias, receber ameaças de morte e demitir-se, “mas sem nunca mais ter dito rigorosamente coisa nenhuma, imagino que para sua defesa pessoal e da sua família”. Daí para frente “houve uma maior discricionariedade dos serviços prisionais e da DGSP, através do GISP (Grupo de Intervenção dos Serviços Prisionais, uma espécie de polícia de intervenção prisional), para controlarem e para darem autoridade pela força ao Estado, porque a autoridade do Estado de facto estava em causa”. Ao invés, de forma pragmática sem esconder o que todos sabem, “e isso é importante, foi proposta da ACED, se os regimes abertos vigorassem em vez dos regimes fechados, o que aconteceria é que os mercados faziam por sua vez a limpeza daquilo. Se as pessoas pudessem comprar cá fora aquilo que estavam a comprar lá dentro, compravam mais barato, mais limpo, mais em condições e não permitia que os poderes absolutos dentro das prisões fossem o que são. Não foi essa a opção política. Evidentemente as consequências são aquelas que são, ou seja, continua exatamente tudo na mesma como estava há 20 anos atrás.”

Essa opção prende-se com outro momento marcante para a ACED e que ocorre já no período em que o atual primeiro-ministro António Costa é entre 2005 e 2007 Ministro de Estado e da Administração Interna do governo de José Sócrates. António Pedro Dores lamenta “a mudança de política que António Costa impôs no sentido de repressão, porque ele podia ter imposto uma política oposta. Estava previsto na lei a possibilidade de alargar os regimes abertos virados para o interior (RAVI) ou os regimes abertos virados para o exterior (RAVE). Estava previsto na lei e era uma questão de organização, mas ele decidiu fazer outra coisa que foram alas de segurança em Monsanto, a prisão de alta segurança. Foi essa a opção para reagir aos homicídios que houve em Vale de Judeus e para reagir, sobretudo, às greves de fome, um pouco por todas as cadeias do país”.

O bode expiatório

O activismo de António Pedro Dores em torno das prisões é inseparável das prisões enquanto seu objecto de estudo. Como sociólogo faz parte daqueles que “fazem as críticas da teoria social”, mas afasta-se destes ao verificar que “nunca chegam à conclusão que eu cheguei: que é da ‘culpa’ ser a própria teoria social”. Vira o olhar critico para quem o formula e questiona os problemas dentro da sociologia inerentes ao estigma do bode expiatório. “Como é que se justifica a existência da sociologia? A sociologia é uma coisa que podia ser dispensada. Mas então porque é que apesar de tudo subsiste? Por que cumpre uma função, um papel. Esse papel é o da discriminação das pessoas. Muitos sociólogos dizem, com toda a clareza, que na sociedade somos todos iguais, certo, mas há que reconhecer que uns são mais iguais que outros. E então tudo se justifica com base nessa desigualdade”. Por considerar antes que o importante e a diferença para a teoria social é “explicar as coisas com base na nossa igualdade” observa como “mesmo os meus colegas que trabalham nas prisões, mesmo os que são favoráveis aos presos, fazem em relação a eles a reprodução do estigma, nomeadamente ‘qual é o crime que ele cometeu?’ e que é, afinal de contas, implicitamente, associar aquilo que o Estado produz como etiqueta de alguma pessoa, que eventualmente terá acontecido… Houve um preso que me disse uma frase sociológica de grande gabarito. Ele era assaltante de bancos. E disse ‘mas eu sou um gajo simpático a maior parte do tempo. Eu só assalto bancos de 15 em 15 dias e aquilo demora meia hora; o resto do tempo eu sou um gajo impecável’. Isso tem piada, mas ele tem toda a razão. Há gajos que fazem vida para lixar o resto da humanidade. E fazem-no a vida toda. Por que raio de carga de água é que vamos imputar a alguém, que durante um período de vida relativamente curto tem comportamentos estranhos, esquisitos, condenáveis, porque é que lhe vamos imputar a sua própria identidade, porque é que vamos impor o estigma a essa pessoa. Isto dá que pensar”.

A hostilidade às prisões é uma questão com que se viu confrontado perante os seus colegas. Acentua que “o problema da crítica em relação àquilo que se passa nas cadeias é de uma profundidade extrema, de uma subtileza extrema, porque quando nós admitimos que há crime, e o crime como objecto, uma coisa que existe, mesmo que seja construído socialmente, mas que legitima a construção de bodes expiatórios, estamos imediatamente a entrar no jogo, e não temos forma de sair”. Precisamente como forma de o evitar e “para denunciarmos isto como uma prática desumana, temos de começar por compreender que o mecanismo do bode expiatório é humano. A ideia de que nós, quando as coisas correm mal, temos de pôr a culpa em alguém para nos aliviar a nossa própria responsabilidade. Para continuarmos a manter um estilo de vida que tínhamos anteriormente, ou para termos margem de manobra para fazermos mudanças sem nos pormos em causa. Esse mecanismo, que é um mecanismo psico-social, é um mecanismo que é preciso compreender, apontar, reconhecer, para que nas alturas em que isso acontece – e isso acontece todos os dias frequentemente e a todos os níveis – sejamos capazes de reagir de uma maneira que seja construtiva, e não antagónica”.

O reconhecimento desse mecanismo expiatório “significa uma coisa muito simples” e pega nas palavras ditas “espantosamente ou não, por um expoente da direita, o velho professor salazarista Adriano Moreira: ‘que estamos a falar de um problema que é o centro do problema civilizacional que temos neste momento presente’.” Palavras proferidas “a propósito da justiça restaurativa, um projecto que foi apresentado e que pretende, no fundo, reconhecer a humanidade daqueles que estão presos, e que pretende, junto com as vítimas, estabelecerem uma relação que seja viável para as suas próprias vidas, em função do outro”. Um projecto e um conhecimento que para Dores é “indispensável para que sejamos capazes de ver claro o que precisamos de fazer hoje, perante as circunstâncias que temos, que são as de criação de bodes expiatórios, em quantidades industriais, para que se possa justificar tudo e para que possa ficar tudo na mesma, sem que ninguém se mexa”.

Entre Lucifer e o Jubileu

Se este problema está no centro do problema civilizacional, António Pedro Dores olha para o ser humano e o seu lado bom e lado mau. “O ser humano pelo facto de ser social, pelo facto de precisar de existir em comunidade tem, em relação às outras pessoas, relações negativas e positivas. É inevitável. Nós humanos e sociedade, temos duas grandes estratégias: desenvolver as relações negativas ou desenvolver as relações positivas. Vão subsistir as duas, mas nós, conscientemente, com os nossos esforços e capacidade de intervenção e de transformar a nossa própria natureza noutra coisa, podemos valorizar as partes positivas ou as partes negativas. Quando valorizamos as partes negativas, que é o caso do sistema criminal penal, vamos tentar identificar o que aquela pessoa fez para depois dizer que ela é a causa de todos os males que aconteceram naquele momento. Com a culpa daquela pessoa que assume para o resto da vida, como é o caso do sistema de encarceramento, estamos a valorizar o mal, de uma maneira que houve quem a chamasse o efeito de Lucifer”.

Podemos fazer a coisa de outra maneira que é tentar ver o que há de positivo numa experiência que também tem alguma coisa de negativo. E isso, não sei se podemos chamar de educação, há quem chame de justiça restaurativa, há quem chame justiça transformativa”. O certo é que o que quer que se lhe chame é outra coisa distinta da prisão. “A prisão é a ausência de experiência. A prisão é a ausência de justiça. A prisão é a ausência de direito. A prisão é a ausência de humanidade. E, portanto, os resultados de um sistema destes só podem ser negativos. Como é que podiam ser positivos? Não é a ideia serem negativos?!”

Impossível a António Pedro Dores responder sem hostilidades ao propósito do sistema prisional. “Melhora a sociedade? Não, não melhora. Mas esse é o objectivo? Não, o objectivo da prisão não é melhorar a sociedade, é safar aqueles que assumem responsabilidades e não as cumprem. Pois no outro extremo do espaço social está gente que promete mundos e fundos e não é capaz de cumprir. Mas é capaz de gritar que os criminosos estão ali e apontar com o dedo. É esse apontar com o dedo que distrai as pessoas das responsabilidades que os dirigentes assumiram perante as pessoas e que não cumprem. E portanto esse mecanismo, o mecanismo que permite que haja uma discussão política civilizada, entre gente bárbara que usa os poderes que tem para destruir a vida dos outros, por contraponto a outro mundo onde as pessoas não têm dignidade humana, e são reduzidas a lixo, é esse contraponto que permite que a população, enquanto sociedade, enquanto grupo, seja conduzida na necessidade de cumprir o seu desígnio de sacrifício, de abnegação, de castigar o culpado, e se dirija à prisão e não se dirija aos chefes”.

Essa reflexão leva-o consequentemente a uma constatação reconhecendo-a como “uma lição histórica. Ou seja, muitas vezes as populações viram-se contra os chefes. E quando se viram contra os chefes, acontece uma coisa curiosa: as prisões abrem-se. Porque não havendo chefes não é preciso prisões para coisa nenhuma. Pelo contrário, quando se destroem os chefes, quando se acaba com aqueles que mandam, fica-se a saber, fica muito claro e até já se sabia antes, que aqueles que estão na prisão estão na prisão injustamente. Então abrem-se as prisões. E as sociedades vivem melhor durante o tempo do jubileu. Aliás, a gente tem a ideia do jubileu como uma coisa agradável, que é a ideia de acabar com as prisões, com as dívidas, com os sacrifícios e passarmos a estar livres dessas cargas, durante um período de tempo… Infelizmente, passado pouco tempo voltamos aos mesmos mecanismos, agora com outras legitimidades, com outras lógicas, com as outras justificações, para quê? Para voltar a justificar que há alguns que estão em cima e outros que estão em baixo, e os que estão em baixo é que têm a culpa de os que estão em cima terem prometido coisas que não fizeram. E esta lógica é uma lógica que deve ser denunciada e não sendo denunciada é reproduzida pelas prisões”.

Da coacção social à Justiça Transformativa

O recente Manifesto Para Uma Nova Cultura Penal do Observatório Europeu das Prisões, de que António Dores faz parte, aponta o dedo precisamente à falência dos mecanismos e uso das penitenciárias como instrumentos centrais de execução de penas, nada resolvendo quanto aos maus-tratos, à reincidência e aos seus elevados custos sociais e financeiros. Em alternativa defende a já mencionada “justiça restaurativa” e propõe algumas alternativas às prisões que passam por “redes de coacção social e profissionais susceptíveis de estimular a auto-responsabilização das pessoas envolvidas em práticas indesejáveis”. Impunha-se perguntar como usando o conceito de “coacção” seja possível interromper este ciclo de punição e estigmas de bodes expiatórios.

Estas redes de coacção já existem. Por exemplo, o que chamamos de educação já é isso. E portanto estudar como é que elas funcionam, como podiam funcionar melhor, é uma urgência. Dito isto, eu não sou favorável à educação que existe hoje. Mas tenho de reconhecer que a escola não é uma prisão, embora às vezes pareça, mas não é a mesma coisa. Ou seja, esses sistemas de coacção existem”. Para os entender fala-nos de um texto sobre abuso sexual de crianças, “Para Uma Justiça Transformativa” da associação americana Generation Five, cuja tradução disponibilizou on line em 2014. Algo claramente delicado, mas que lida com o facto do sistema judicial “não estar preparado, não estar desenhado para resolver problemas como este, da violência doméstica em geral. Porque estão preparados para outras coisas, como por exemplo para gerir mercados, para controlar o assalto às propriedades, para controlar a violência entre pessoas, aí estão mais ou menos preparados. Agora para resolver problemas na privacidade, por definição não estão preparados, o espaço é público e o facto de se tornar público um crime que é privado, não tem resolvido problema nenhum. O que acontece é que não se quer dar a mão a torcer a e dizer que o sistema judicial não está preparado, nem formal, nem substantivamente, nem objectivamente, nem subjectivamente para coisas deste género. Ora bem, estes problemas existem e têm de ser resolvidos e são resolvidos, de muitas maneiras. Uma das maneiras de resolver é o machismo. Quem manda aqui sou eu e acabou a conversa, e muitas mulheres e homens alinham neste tipo de comportamentos e isso resolve o problema. Não resolve, evidentemente, da melhor maneira, certo, portanto tem que haver redes de coacção social para chamar atenção daquelas pessoas, que em privado assim se comportam que não pode ser. Como é que isso tem sido feito? Tem sido feito através de campanhas públicas, associações cívicas, associações de vítimas, etc. Há vários processos que podem ser levados a cabo”.

E isso funciona? “Sim, funciona relativamente. Mas o problema é o seguinte, do outro lado não funciona. O lado de entregar isso à justiça não funciona. É preciso termos consciência de que se a sociedade não quer assumir as responsabilidades de ela própria tratar da sua própria segurança, seja isso o que for. No sentido de se nós que não queremos assumir o facto de combater o patriarcado enquanto sociedade, ou combater o abuso sexual, ou combater a violência doméstica, ou combater o bode expiatório dentro de nós, de que se nós não queremos combater ninguém vai combater. Pelo contrário, ficamos completamente abertos às políticas do medo, que nos vão ser negativas pessoalmente, mas sobretudo vão ser negativas para as pessoas mais fracas, mais frágeis, que não têm essas redes de coacção social que impedem que a violência seja dominante. Como, por exemplo, aqueles que estão a ser utilizados hoje para serem bodes expiatórios no sistema criminal – as crianças abandonadas, os estigmatizados de várias matizes, os imigrantes, etc. – os que estão mais isolados da sociedade, não por acaso os escolhidos para serem bodes expiatórios. É precisamente porque eles não têm redes sociais de coacção, estou a chamar de coacção, de que sejam capazes de se defender também nessas situações”.

O entendimento de coacção não coloca nesta perspectiva António Pedro Dores contra o processo-crime, mas apenas quanto à forma vigente da execução penal e aponta mesmo uma forma de reformar o juízo criminal. “Porque a coacção não é só negativa. A coacção tem a ver com uma moralidade que se impõe, eu não conheço uma sociedade onde isso não exista, não espero vir a conhecer uma sociedade onde isso não exista. Agora a discussão do sentido dessa coacção, da moralidade, do direito, é fundamental. Independentemente das instituições? Talvez sim, talvez não. Quando as instituições servem, por exemplo, para identificar crimes, eu não tenho nada contra isso. Que elas sirvam depois para legitimar os crimes, para compensar os crimes, aí já tenho tudo contra. Se o tribunal diz ‘esta senhora cometeu um crime’, óptimo. Agora o que é que se vai fazer em relação a isso? Vamos pô-la num sítio onde se cometem crimes todos os dias! É absurdo mas é isso que se faz. Então como é que é possível romper com isso? Havendo redes sociais onde a declaração de um juiz possa ser apreciada, não acriticamente mas criticamente, para que eles não possam fazer as barbaridades que muitas vezes fazem, mas para que a sociedade se possa defender. O juiz então vai começar a depender do seu prestígio, da capacidade de tomar decisões decentes e passa a ser, não a pessoa mais importante do mundo para tomar decisões sobre a vida de outras pessoas, passa a ser uma orientação para a sociedade se organizar. E passa a ser uma sociedade muito diferente daquela que temos hoje. E portanto eu não tenho nada contra o processo-crime, estou de acordo que houve evoluções importantes. Por exemplo, em vez de a gente matar logo a pessoa, agora pergunta-lhe ‘o que é que aconteceu’. Acho que isso é uma coisa que tem vantagens! Portanto, se o tribunal ou a polícia fizerem isso, parece-me uma coisa boa! Agora se isso significa que a polícia agarra nele e vai matá-lo, em vez do outro que foi morto, então não vale a pena. Mas acontece com alguma frequência. E se o juiz acha que isso não tem nada a ver com o caso que está em causa, porque ele não tem que julgar a polícia, tem que julgar é o caso em concreto, então estamos no mundo da hipocrisia e da estupidez”

Conclui assim que “quando nós estamos a falar de redes de sociabilização coactivas, estamos falar de redes que hoje são monopolizadas pelo Estado, e para elas não serem monopolizadas pelo Estado alguém tem de assumir essa responsabilidade. E essa responsabilidade deve ser assumida colectivamente. Colectivamente não significa justiça popular, como acabei de dizer, significa pelo contrário que a ideia de que vamos ficar melhor por punirmos, não vai resolver o problema. Já a ideia de identificar os culpados para digerir a culpa e a tratar socialmente, aí é um melhor caminho”.

E ainda assim consideras-te abolicionista? Uma pergunta final a António Pedro Dores nesta conversa em torno das prisões. “Eu não estou muito preocupado com isso. Quando fiz parte da APAR e da ACED, percebi que não havia solução, não havia reforma prisional possível. Na minha opinião, não é tão importante as pessoas tomarem uma posição formal quanto à abolição das prisões, mas quando identificarem uma situação em que as pessoas estão a ser abusadas, reajam contra isso. Que se sintam repugnadas e isso as leve a encontrar formas de travar isso. E eu conheço muitas pessoas assim, que estão a fazer abolicionismo na prática. Eu prefiro de facto um abolicionismo com activistas a tomarem iniciativas, do que um abolicionismo com pessoas tão radicais que não se consegue discutir ou fazer nada com eles. O manifesto que aqui apresentamos não é de facto abolicionista. É um resultado do Observatório Europeu das Prisões, em que existem pessoas que se dizem abolicionistas e pessoas que dizem que não. Há muito poucas pessoas a querer trabalhar neste assunto. Por isso, se a questão do abolicionismo serve para as dividir, eu não vou por aí. As reformas existem, aliás, a prisão serve, de acordo com a lei, para a reinserção social. Mas agora os serviços de reinserção social nem existem… toda a gente sabe que isso é uma fachada e dizer que a prisão serve para a reinserção social de alguém é uma hipocrisia”.

Este ano deu por encerrado esse capítulo da sua vida que foram os 19 anos da ACED. Duas décadas de apoio aos presos e uma linha telefónica que ainda hoje recebe chamadas. Mas a denúncia do sistema prisional e a busca de alternativas prossegue-a nas aulas e no Observatório Europeu das Prisões. Diz-se “esperançado que as boas sementes da ‘imaginação ao poder’, dos ‘direitos humanos’, de ‘todos iguais, todos diferentes’, do ‘outro mundo é possível’ possam ajudar-nos a reflorir por dentro e por fora, tornando a luta diária numa oportunidade de bem estar, em vez de apenas uma obrigação de sobrevivência”.

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