Partido, Sujeito, Cibernética
Resposta à crítica de “Aos Nossos Amigos”, de Júlio Silvestre, por Tiago F. Duarte
No último número do Jornal Mapa, Júlio Silvestre assina uma crítica do livros “Aos Nossos Amigos”, do Comité Invisível, recentemente editado em Portugal. Antes de mais é imperativo saudar o propósito de trazer este texto a discussão, já que tão frequentemente o tempo investido na tradução e publicação de um texto se esvai no modo como estes terminam remetidos a leituras isoladas que pouco contribuem para fomentar discussões colectivas que, no fundo, procuram propor. Há hoje em dia uma produção considerável de literatura antagonista e antiautoritária – entre editoras, jornais e publicações online – e, apesar disso, continuam escassas as possibilidades de a debater. Escrevemos então este texto na esperança de que possa avançar estes e outros debates.
A recepção internacional aos textos assinados por Tiqqun/Comité Invisível (que por comodidade passaremos aqui a chamar unicamente Tiqqun) traduziu a dificuldade em classificar ideologicamente a produção teórica e crítica deste colectivo. Enquanto nos Estados Unidos foram considerados “anarco-insurrecionalistas”, em Portugal foram mais do que uma vez considerados “marxistas” e noutros locais apenas uma nostalgia “situacionista”.
Estas fortes divergências traduzem alguma da especificidade do projecto Tiqqun que, num mesmo passo, procura rejeitar tantos os marxismos “ortodoxos” e “vulgares” como as várias tendências humanistas dos anarquismos. De outro modo, em Tiqqun, tanto é recusado que o local da emancipação seja o de uma identidade operária, forjada na dialéctica capital-trabalho, como na concepção idealista e ahistórica, herdeira das revoluções burguesas, de uma “liberdade individual” que constituiria a essência do humano.
Se para alguns marxistas Tiqqun surge enquanto delírio “pós-moderno” e enquanto desvio mistificador da análise das condições materiais da reprodução do capitalismo, para alguns anarquistas o modo como o projecto recupera os conceitos de “partido”, e põe em causa a estrutura do indivíduo tal como é conhecida hoje, não pode senão indiciar uma cumplicidade com a forma-partido na sua vertente centralizada e autoritária ou na sua submissão a um jogo parlamentar e representativo. Júlio Silvestre começa precisamente por aqui, ressalvando que “A revalorização do ‘partido’, ainda que simbólica, deixa transparecer uma estranha nostalgia”. Para perceber de que “partido” fala Tiqqun é necessário um muito breve apontamento à genealogia do conceito. Surge em alguns debates acerca deste tema uma oposição entre o que seria a concepção de Marx de “partido formal” e de “partido histórico”. O primeiro seria uma organização transitória cuja função consistiria em levar a cabo tarefas específicas no contexto da luta de classes, enquanto o segundo seria o fio vermelho que percorre as múltiplas formas e expressões que assume a luta de classes em determinado momento histórico. Neste sentido, que parece próximo ao utilizado por Tiqqun, o partido é, por um lado, o momento como temporalmente nos organizamos para cumprir determinado objectivo (bloquear uma estrada, ocupar uma casa, editar um texto) e, por outro, o modo como partilhamos uma consciência das várias lutas em curso, ou seja, é a percepção de que diferentes confrontos em diferentes locais fazem parte de um mesmo enquadramento.
Nada a ver, portanto, com a concepção vulgar leninista ou gramsciana do “partido”. A primeira procura formalizar e estruturar a formulação de Marx através da constituição de um organigrama hierárquico de revolucionários profissionais, tendo em conta a sua eficácia e capacidade de conquistar do poder estatal; a segunda entende o partido enquanto elemento dinamizador das práticas que possam constituir uma contra-hegemonia entre o conjunto dos agentes políticos e sociais. O primeiro será o partido marxista-leninista tal como os conhecemos, o segundo a sua versão “partido-movimento”, da qual o Bloco de Esquerda é um claro exemplo.
Porque utiliza então Tiqqun esse termo tão carregado se o sentido que lhe dá se afasta tanto da sua percepção vulgar? Adivinhamos duas razões. A primeira prende-se com questões locais: podemos presumir que em França e Itália esse conceito não pressupõe instituições parlamentares tão imediatamente quanto em Portugal, já existiram não um mas vários partidos comunistas, com vários posicionamentos dentro do espectro político. A segunda, mais interessante, deve-se à consciência de que a discussão relativa às formas antagonistas ao poder se desenrola historicamente em confronto com estas visões e que,portanto, é preciso reclamar à “esquerda” a ideia de que o modo como nos organizamos tem de obedecer aos ditames militares ou parlamentares da leitura tradicionalista do movimento.
A autonomia e a autogestão não ocorrem no vazio ou numa exterioridade fantasma, mas sim na contingência dos momentos onde nos encontramos. O partido é, no sentido proposto por Tiqqun, a forma, à partida indeterminada, que escolhemos para os habitar. Júlio Silvestre afirma que Tiqqun procura nestas formulações encontrar “um novo sujeito histórico”. Nada mais errado. Se algo distingue o projecto Tiqqun de várias outras correntes antiautoritárias é precisamente o modo como, polemicamente, vem recusando e desconstruindo a ideia de que a política está necessariamente associada à subjectividade. O espaço de um texto de jornal é demasiado curto para ilustrar este debate mas iremos procurar resumi-lo em pouquíssimas linhas.
A ideia de um “sujeito histórico” não vem de Marx (ou do marxismo) mas antecede-o, sendo um dos pilares da era “moderna” da filosofia e da política chamada “ocidental”, que começa no séc. XVII. O sujeito é, simplesmente, aquele que faz juízos e consequentemente toma acções, sendo portanto uma ideia intimamente ligada à de “liberdade individual” que Júlio Silvestre parece defender. No seu sentido “histórico” esta concepção é complexificada: o modo como eu penso e consequentemente ajo é determinado por condições exteriores à minha, pelo mundo onde vivo, pelos outros, pelo que faço para me reproduzir e sobreviver, pelo modo como entendo o meu passado e perspectivo o meu futuro. Diferentes culturas ao largo de diferentes eras pensaram a individualidade de modo diferente. A ideia de “sujeito” – definido a partir da sua “liberdade individual” – nem sempre existiu e o desenvolvimento dessa ideia é paralelo e latente ao desenvolvimento do método de acumulação e reorganização do mundo conhecido como capitalismo.
Na história dos movimentos comunistas e anarquistas clássicos a ideia de sujeito tem duas grandes interpretações. Se por um lado encontramos o determinismo teleológico do marxismo vulgar, onde os sujeitos históricos irão mais tarde ou mais cedo realizar o comunismo numa progressão “racional” da história, por outro encontramos em certas tendências anarquistas o movimento inverso, onde formas particulares de subjectividade são desistorizadas e postuladas enquanto essência da humanidade, ou seja, são reificadas e naturalizadas. É nesse sentido que Tiqqun critica a ideia de “liberdade individual” no mesmo passo que critica o determinismo das identidades operárias. Se a minha subjectividade é constituída por elementos exteriores a mim então também a sua própria forma é composta por esses elementos, e parte principal da luta emancipatória será encontrar as técnicas e as formas com que desconstruir os dispositivos que formam a nossa subjectividade. Do mesmo modo que poderíamos afirmar que o “consumismo” ou a “alienação” são consciências particulares de um determinado momento, também podemos então afirmar que o modo como concebemos o indivíduo e as suas vontades não é independente desses mesmos.
Não se trata então de construir um novo sujeito histórico mas de destituir a própria subjectividade. Não se trata de contrapor ao individualismo burguês o colectivismo proletário, mas precisamente de superar essa falsa dialética. Os primeiros textos de Tiqqun e inclusive “A Insurreição que Vem” procuram delinear precisamente esta problemática.
Deixámos para o fim o cerne da crítica de Júlio Silvestre, por ser a que merece mais atenção, mas também porque o capítulo em questão é o que se presta a maiores confusões e ambiguidades. Ocorre distinguir o que é cibernética, já que é um conceito várias vezes utilizado de modo erróneo enquanto sinónimo de informática ou de tecnologias de informação. Segundo o parágrafo inicial da entrada dedicada à cibernética na Wikipedia esta é “uma perspectiva transdisciplinar de exploração de sistemas regulatórios, as suas estruturas, constrangimentos e possibilidades”. Ou seja, enquanto conceito a cibernética é algo independente da tecnologia. Enquanto disciplina emerge, com este nome, no séc. XX, numa história fácil de encontrar em qualquer pesquisa online e significa que fenómenos diferentes e díspares são reunidos num circuito de causalidades interdependentes. Tanto é uma cibernética o facebook como algo mais abstracto, a economia por exemplo. A cibernética é uma leitura dinâmica do poder, onde a minha força sobre o outro não se traduz no modo como eu lhe corto liberdades mas, pelo contrário, no modo como eu lhe determino tarefas cuja finalidade será sempre uma perpetuação da minha dominação.
O projecto Tiqqun insere-se numa corrente de leituras do trabalho de Michel Foucault que procura desenvolver e aplicar a sua crítica do funcionamento do poder. Segundo Foucault, com o advento da modernidade capitalista e industrial dá-se uma transformação no modo como funciona o poder, estruturando-se assim a especificidade do capitalismo (e posteriormente do socialismo). Das estruturas hierárquicas clássicas do exercício do poder, vertical e piramidal, passa-se a um controlo cibernético onde o poder é exercido em rede. O poder passa a ser a capacidade de incluir (ou excluir) os sujeitos precisamente nesse “sistema regulatório” com as suas “estruturas, constrangimentos e possibilidades”.
Duas imagens agora clássicas ilustram esta transição (ver imagem e legenda). Na iconográfica “pirâmide do sistema capitalista” é ilustrada uma hierarquia social onde cada plataforma sustém a superior, simultaneamente arqueando com o seu peso e dando-lhe uma base. O proletariado “alimenta” todos e “trabalha” por todos. A burguesia “come” o seu trabalho, as forças da ordem reprimem-no, o clero engana-o. Seria precisamente esta estrutura, e as suas variações modernas, a constituir o proletariado (ou qualquer outro nome que lhe queiramos dar) enquanto sujeito histórico, legitimado pelo seu trabalho a inverter a pirâmide produtiva. Com algumas variações esta percepção é comum às várias correntes do movimento operário, do marxismo-leninismo ao anarco-sindicalismo. Ora segundo Foucault com o desenvolvimento do capitalismo este modelo hierárquico foi dando lugar a um outro, que exemplifica no panóptico. O panóptico foi uma tecnologia de controlo inicialmente aplicada em manicómios e prisões, onde as celas eram dispostas em círculo à volta de uma torre de controlo. Esta torre tinha total visibilidade para todas as celas e o detido não tinha hipótese de saber se estaria ou não a ser observado, comportando-se portanto como se estivesse sob permanente escrutínio do poder. Eventualmente esta permanente atenção entranhava-se na vida do sujeito e passava a constituir um traço “natural” do seu comportamento, passando então a estar dentro de um desses “sistemas regulatórios” que viriam décadas depois a ser objecto de estudo da cibernética. O aparelho repressivo continua a funcionar, obviamente, mas no sentido de prevenir e forçar inclusões e exclusões neste sistema. Que transformação de paradigma está aqui implícita? Em primeiro lugar torna-se claro que o funcionamento do poder coercivo é mais subtil e insidioso do que coercivo e repressivo, este visa não só reprimir comportamentos como também criar outros.
Em segundo lugar o proletariado – o sujeito dessa alegada “liberdade individual” – já nasce inserido num modelo de formatação e enquadramento. O que quer isto dizer? Que as formas de antagonismo político contemporâneas são, em Tiqqun, exercidas precisamente na interrupção dos fluxos de gestão cibernética do poder. De aí a distinção entre engenheiros e hackers: a função dos engenheiros é reforçar estas redes, a dos hackers será a de as sabotar. Há, e houve, certamente uma dialéctica e permanente recuperação entre ambos os propósitos. Segundo esta hipótese a semelhança entre o capitalismo e o socialismo não seria apenas a existência de hierarquias e de estado, já que por aí nada os distinguiria de inúmeras outras hipóteses políticas, mas precisamente este particular modo de estado que organiza, governa e dirige mais do que domina. Não há um propósito conspiratório e dominador da Google, ou de outros, há a perpetuação, enquanto objectivo político, de um determinado projecto de enquadramento.
Pano para mangas, claro. Terminamos concordando com Júlio Silvestre relativamente a um certo tom que percorre estes textos. Se Tiqqun se revela tão lúcido e capaz na desconstrução das formas de activismo e militância que conhecemos, é pena que não atente no modo como uma certa arrogância, um certo híper-voluntarismo e um certo híper-romantismo, constituem um dos principais dispositivos discursivos de reprodução dos piores vícios dos movimentos. Talvez o debate que sobre de todos estes momentos seja precisamente este, o que poderia trazer à discussão o que somos, o que queremos e como faremos sem carregar consigo doses desmedidas de identidade pessoal e colectiva.
Tiago F. Duarte