Aos nossos amigos: a cibernética
“Aos nossos amigos” é o último livro do Comité Invisível, recentemente traduzido pelas edições Antipáticas. O primeiro livro deste grupo de “escrivas” anónimos, publicado em 2007 com o título “A insurreição que vem”, tornou-se popular e chegou mesmo a atrair a atenção dos média. Em parte devido à publicidade que sobreveio quando a polícia francesa tentou utilizar o livro como prova, no caso que ficou conhecido como “os nove de Tarnac” 1, atribuindo a sua autoria a um dos acusados 2. “Aos nossos amigos” pode ser visto como uma continuação desse primeiro texto, no qual os autores pretendem fazer um diagnóstico total da civilização capitalista actual, partindo dos seus círculos de alienação, bem como uma análise e a prescrição daquilo que, segundo a sua pespectiva, deve ser a luta revolucionária…
Ambos os textos discorrem numa linguagem com frases mais ressonantes do que argumentativas, dando a impressão de que o seu entendimento da realidade é evidente, e que o leitor facilmente se identificará com as suas palavras. Daí a repetição de que “toda a gente sabe”, “toda a gente sente”, “toda a gente vê”, os “lugares comuns” ou as “verdades necessárias”. Este tipo de comunicação tem a vantagem de poder saltar argumentos, legitimando-se mais pela força emotiva das ideias do que por uma análise concreta. Desta forma, o comité toma como ponto de partida alguns axiomas, deixando antever o cunho ideológico da sua crítica. Refiro-me, por exemplo, à assunção de que o indivíduo é uma “ficção”, ou que a “liberdade individual” é um grave equívoco…
Este “colectivo imaginário” parece no entanto dotado de pouca imaginação, a ver a necessidade que tem em aludir à identidade do “nosso partido”, do “partido da insurreição”. A revalorização do “partido”, ainda que simbólica, deixa transparecer uma estranha nostalgia…
A Cibernética
Um dos capítulos do livro “Aos nossos amigos” tem por título “Fuck off Google”, e começa por nos dar a novidade de que “não há revoluções no Facebook”. Os primeiros parágrafos exemplificam o recurso a tecnologias de comunicação em manifestações, situações de crise, ou organização de assembleias, para inferir que “a prática de governo se identifica cada vez menos com a soberania estatal”. Em seguida é estabelecido o paralelismo com as redes sociais e as cidades inteligentes, de modo a ilustrar a afirmação feita do capítulo anterior: “o poder já não reside nas instituições”, mas “nas infraestruturas”. Os autores concluem que a cibernética é a nova arte de governar.
Se existe alguma verdade nesta análise, ela perde por ser redutora e confundir os sintomas com as causas. A massificação das redes sociais, o open government, ou o fetiche do Smartphone, é mais um problema de ideologia do que uma conspiração de engenheiros e cientistas. É certo que a internet abriu as portas a novas formas de alienação, e à descentralização do poder, mas isto deve-se mais à ressonância do pensamento único e à uniformização de comportamentos, não exclusivos do mundo virtual, do que à facilidade comunicativa ou à topologia da rede. A vontade em partilhar voluntariamente fotos e vídeos pessoais no Facebook, é semelhante à vontade em participar em reality shows, aparecer na televisão, ou comprar revistas cor-de-rosa. O mesmo para a utopia da “cidadania conectada”: é a crença na democracia o que em primeira mão fomenta esses movimentos.
O que mais me chocou quando vi pela primeira vez um carro da Google a fotografar a rua por onde caminhava, não foi tanto a tecnologia que permite essa cartografia, mas o sentimento de felicidade das pessoas quando se aperceberam que a “sua” rua estava a ser fotografada e apareceria no mapa… A sacanice da Google em ganhar muito dinheiro com as informações pessoais dos seus utilizadores, e saber quase tudo sobre eles, é possível porque a grande maioria se está nas tintas para a privacidade. Antes de considerar os meios, é necessário questionar este fenómeno de tranquilidade generalizada com a vigilância, o orgulho de ter “amigos” virtuais, ou o sentimento de fortuna ao alimentar “grandes reservatórios” de dados.
O texto sustenta-se numa observação parcial, ao tentar reduzir a cibernética e as tecnologias de comunicação, à mineração de dados produzidos pela “circulação livre, isto é transparente, isto é controlável” de informação. Esta é efectivamente a prática comum sobre os milhões de utilizadores da Google, do Facebook ou do Twitter, mas não resume tudo o que se passa na rede. Basta estar atento aos esforços dedicados à privacidade e ao anonimato, bem como às experiências de “redes de guerrilha”, e outras estruturas pensadas para o efeito, na luta contra a censura e a vigilância electrónica. Embora isto esteja longe de contradizer a tendência dominante, traz certamente alguma entropia aos propósitos do controlo e da governação.
A visão determinística do comité revela-se quando nos contam detalhes sobre a história da cibernética. Parece ter sido tudo uma conspiração de agentes da CIA, cientistas do MIT, matemáticos pervertidos, empresários doentios, militares obcecados… Mais ninguém interferiu no processo, essas tecnologias apareceram unilateralmente, nunca foram repensadas, reconstruídas, reinventadas…
Dissertando sobre a técnica, os autores asseveram que o capitalismo é “a organização rentável, num sistema, das técnicas mais produtivas”. Ironicamente, isto parece mais um elogio do que uma crítica. Historicamente, as técnicas que mais vingaram sob o domínio de capitalismo, foram aquelas que implicavam maior investimento de capital, apropriação de recursos, e externalização de custos. Isto contradiz o mito da rentabilidade, provando que ela é artificial. Se ao mesmo tempo considerarmos o peso das hierarquias, a burocracia, e o controlo social que implica a existência de uma “classe gestora”, deixaremos de ter dúvidas sobre essa suposta produtividade… Por outro lado, na era da tecnologia, os direitos de “propriedade intelectual” continuam a ser fulcrais à reprodução de capital, e exemplificam até que ponto as técnicas mais eficazes são compatíveis com o capitalismo.
Os autores dizem-nos também que “a solidariedade entre capitalismo e socialismo” reside no culto do engenheiro, o “chefe dos expropriadores das técnicas”. Eu diria antes que essa solidariedade reside na necessidade de Estado, e numa hierarquia burocrática de gestores, presente tanto no modelo organizativo das grandes corporações, como nos regimes socialistas…
Quase no fim do capítulo, referindo-se aos hackers, o comité vinca um dos seus axiomas, aproximando-se do ridículo: “a liberdade individual não é algo que possamos acenar contra o governo, visto que ela constitui, precisamente, o mecanismo sobre o qual ele se apoia”. E num tom condescendente, avisa que é este fetiche que os “impede de constituir grupos suficientemente fortes, para desencadear a partir daí, uma série de ataques, uma verdadeira estratégia”… Está visto, com doutrina e estratégia, o comité encontrará um novo “sujeito revolucionário”!
Notes:
- A 11 de Novembro de 2008 foram detidas 20 pessoas em Paris, Rouen e Tarnac, acusadas de terem participado em várias acções de sabotagem nas linhas do TGV. Dos detidos, onze foram prontamente libertados, ficando sob custódia nove pessoas, algumas das quais viviam em Tarnac. ↩
- Julien Coupat, co-fundador do jornal Tiqqun, impresso entre 1999 e 2001. ↩
[…] da web das nossas parceiras do Jornal MAPA esta resenha do livro “Aos nossos amigos” do Comité Invisível (recentemente traduzido ao […]