O Direito fica à porta das prisões
No ano em que se celebram os 70 anos da libertação de Auschwitz, a questão do testemunho e da testemunha, a voz de quem não a tem (Gil, 2004), torna-se mais premente. Face à necessidade de uma nova ordem social, as vozes abafadas, estigmatizadas, reveladoras da velha ordem opressora devem passar a ser ouvidas. Com atenção e respeito.
A verdade é que a situação dos prisioneiros, o seu encarceramento, a perda prática de direitos que lhes são garantidos constitucionalmente – a Constituição garante que apenas a restrição de liberdade ambulatória judicialmente decretada pode ser imposta aos reclusos – é a prisão da própria democracia nos limites de quem tenha interesse em não ouvir os gritos lancinantes que se lançam, sem chegarem a lado nenhum. Por exemplo, Fernanda Palma, professora catedrática de Direito Penal, denunciou a prática banalizada pelos Tribunais de Execução de Penas de imposição da interiorização da pena. A prática de reclamar não apenas a declaração formal de arrependimento mas também a manifestação de uma sinceridade capaz de convencer o juiz, como condição de flexibilização de penas (precárias, liberdades condicionais), é contra direito (Palma, 2015). Em Portugal, as penas efectivas de prisão são três vezes as da média europeia, superior a países onde se admite a pena de prisão perpétua. Pode dizer-se com propriedade: as prisões são administradas à margem do direito.
O Observatório Europeu das Prisões reporta, a propósito das condições de encarceramento em oito países da Europa, incluindo Portugal, que em nenhum desses países são observadas, sequer parcialmente, as Regras Penitenciárias Europeias, com as quais todos os países se comprometeram ao aderir ao Conselho da Europa (Crétenot, 2014). Mais de quarenta associações europeias dirigiram ao Conselho da Europa uma petição denunciando o facto dos estados membros não respeitarem os seus compromissos para com a Convenção Europeia dos Direitos Humanos, em particular no que toca ao respeito pela jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos. Actualmente, o Tribunal, em vez de julgar uma única vez a existência de um tipo de violações dos Direitos Humanos por parte dos estados, verifica ter de se ocupar recorrentemente com o mesmo tipo de casos. Os estados, em vez de colaborarem, como estão obrigados por terem subscrito as convenções e tratados internacionais dos direitos humanos, resistem a reformar as práticas institucionais condenadas (AAVV, 2015).
Haja novos antros de extermínio na Europa, setenta anos depois, como são os casos de detenções secretas praticadas pela CIA, com a colaboração de muitos governos europeus; ou nas fronteiras mediterrânicas, onde se organizaram várias barragens para perseguir os imigrantes, com a colaboração dos estados do Norte de África, impondo mortes sem conta; ou nos centros de detenção para imigrantes indocumentados, tratados como criminosos, sobretudo em Espanha, Itália, Grécia e Bulgária; ou, ainda, nos asilos que recebem crianças e jovens e são incapazes de evitar, em muitos casos, a sua desinstitucionalização, levando-os ao desespero, ao encarceramento, à morte. Haja esses antros de extermínio e nem o activismo é suficiente para denunciar aquilo que as pessoas preferem acreditar que é impossível estar a acontecer. Num continente que diz ser defensor dos direitos humanos.
Os esforços da ONU, através do Protocolo Adicional à Convenção da Tortura, que Portugal ratificou, prevê mecanismos nacionais, descentralizados, próximos dos locais onde a tortura pode ocorrer, como esquadras, prisões, quartéis. A luta contra as condições que facilitam a tortura precisa de quem as denuncie. De quem não se conforme com os maus tratos e humilhações e tenha algum apoio de quem possa e esteja capacitado para formular petição junto de organismos competentes, como as inspecções do ministério da justiça ou dos serviços prisionais, do Provedor de Justiça, do Ministério Público e, agora, da Entidade Nacional de Prevenção da Tortura, instituída pelo protocolo acima referido. A própria Entidade Nacional de Prevenção se inibe de usar no seu título a palavra tortura, ficando quem não saiba sem saber a que raio de prevenção se dedicará tal instituição.
O testemunho de quem é humilhado ou mesmo torturado enfrenta um aparato de contrariedades, a começar na própria consciência do que sejam os seus direitos. Quatro quintos dos presos em Portugal, é uma estimativa mas não é irrealista, quando crianças e jovens, passaram por instituições de acolhimento incapazes de as socializar em liberdade. Incutiram neles a noção de obediência endémica e de resistência espontânea, como forma de sobrevivência, sem instâncias seguras de recurso. Aprendem a ser manipuladores, como se queixam funcionários das instituições sociais e prisionais. Aprendem a defender-se sozinhos, perante a indiferença geral e a hipocrisia das instituições e de tantos profissionais que justificam a sua existência (socialmente integrada) com a caridade que dedicam aos excluídos. As regras são pensadas para abafar os testemunhos de vida dos alvos do auxílio social. Além de serem mal tratada/os, as crianças e jovens devem estar agradecida/os. E ninguém lhes perdoa quando testemunham as misérias de que são vítimas. Estamos no mesmo limbo que permitiu (e permite) o alheamento social dos campos de concentração ou dos abusos sexuais de crianças.
A estimativa mencionada foi-me oferecida por Carlos Gouveia1 – a quem dedico este texto – depois de ter sido alvo de um ataque cobarde de um grupo de assalto especial da guarda prisional, vindo a público em vídeo, no Público 1. O inquérito interno dos serviços prisionais reconhece ser a história do recluso um exemplo do que está mal nos serviços sociais e prisionais do Estado. Institucionalizado praticamente sem interrupção desde os 4 anos de idade, enviado pelos serviços prisionais para Vale de Judeus com 17 anos, viu-se obrigado a matar para se defender do assédio de prisioneiros mais velhos. O mesmo inquérito também informa que foi a própria direcção dos serviços quem deu ordens para a equipe de torturadores avançar. Entretanto, numa decisão rara, um tribunal condenou dois dos guardas, entre os sete ou oito que lá estavam, mais um enfermeiro. Sem menção para as responsabilidades da direcção, da instituição ou dos colaboradores in loco das torturas.
Terá havido tortura. Mas não é crime colaborar com ela!?!
O CDS-PP apoiou a posição cobarde do director-geral que se escondeu da comunicação social, dizendo estar à espera do inquérito interno para saber o que se passara, sem admitir ser ele o responsável. O ministro da justiça lavou as mãos do assunto através de uma proibição do seu ministério voltar a usar as armas taser que tinha comprado às dezenas. Posição sem consequências na continuidade do director-geral, que ainda hoje se mantém em funções. Os comentadores, por seu lado, dividiram-se. Nenhum se atreveu a denunciar o que se passou como um crime de tortura. Muitos foram perentórios na sua condescendência de reconhecer as dificuldades da vida dos guardas prisionais. Não para pedir melhores condições de trabalho mas para justificar a tortura como ossos do ofício … dos guardas. Como se as vítimas não fossem gente.
Tal como na Irlanda ocupada as mulheres abusadas pelos carcereiros ingleses usaram sangue menstrual para os intimidar e combater (O´Keefe, 2006), assim Carlos Gouveia 2, na sua luta isolada e de uma vida pelo reconhecimento da sua dignidade humana, utilizou as suas fezes para dizer estar vivo e ser gente. Disse estar todo partidinho da porrada, mas que não pode vergar-se ou negar a sua própria existência. (E é possível, oh Ordem dos Médicos, que não se dê pelas mazelas da tortura?). Explicou-me um ex-prisioneiro, igualmente experiente como vítima de torturas, que, perante o isolamento social extremo numa prisão, provocar uma qualquer ligação social, nem que seja com abusadores, agressores, torturadores, pode ser necessário para romper com o isolamento. Álvaro Cunhal explica algo de semelhante quando se refere à sua longa passagem pelas prisões de Salazar. As torturas de pancadaria misturada com o impedimento de dormir, durante vários dias, são más. Mas o isolamento, sem contacto físico, é pior (Cunhal, 2008:89-90).
É quem está socialmente isolado que volta à prisão. Como acontece à maioria dos prisioneiros (taxas de reincidência que não se conhecem, mas rondarão os 60%, sendo que 50% dos presos são filhos de pais que já estiveram presos). Há mesmo quem não queira sair da prisão, apesar dos maus tratos, por não ter como escapar (“Recluso em liberdade protesta à porta da cadeia,” 2015).
A maior das incompreensões vai a par com a construção social dos isolamentos sociais estigmatizados. O jornal refere-se ao “recluso em liberdade”, sem se dar conta da contradição semântica radical. Que raio de liberdade será essa?
Existem associações que se especializam em dar a cara e proteger o corpo de quem receia ser outra vez vítima dos abusadores, na esperança de que alguns testemunhos registem os crimes que se praticam impunemente em nome das instituições judiciais. Num caso de um casal espanhol preso em Portugal por um crime grave, recebemos a queixa de graves abusos sexuais e torturas. Notícias da cumplicidade com a acusação de um advogado contratado pela defesa, incluindo extorsão, completaram o cenário de isolamento dos prisioneiros. Abandono dos queixosos pelo ministério público, com a cumplicidade do advogado, quando a senhora tentou transmitir as experiências de tortura de que terá sido vítima. Pressões com origem nos serviços do tribunal de julgamento para inibir a acção de outro advogado de defesa que procurou minimizar, sem o conseguir, os efeitos dum julgamento sem direito a defesa. A decisão de condenação, embora ilegal, deixou a defesa exausta, descrente e incapaz de reacção.
Transferidos os condenados para Madrid, surge um processo-crime contra a denúncia de tortura publicada por uma associação. Processo instruído pelo Ministério Público, desta vez muito atento aos grunhidos sem sentido, que acompanhou, dos dois polícias judiciários destacados para se fingirem ofendidos por denúncias de serem autores de tortura. Processo-crime sem outro préstimo que não fosse a intimidação da associação.
António Pedro Dores