Porto: da reabilitação urbana à conquista do espaço público

18 de Fevereiro de 2013
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Vivemos aqui há décadas. Sabemos onde se metem meias solas nos sapatos, onde o café é mais saboroso, em que zona plantar os tomateiros. Mas há alturas em que olhamos sem ver e, de repente, quando voltamos a reparar, damos por nós à procura da familiaridade da geografia. Servida em Planos Directores Municipais e Sociedades de Reabilitação Urbana, toda uma nova cidade se planeia e se põe em prática. Já não para viver, mas para visitar. Sem sapateiros, com o café a saber ao mesmo em todo o lado, sem terra para tomates. Ainda cá vivemos, apesar de tudo. E é esse testemunho que achamos necessário partilhar.

Não se pretende aqui mapear o novo Porto, o que se abre para os olhos dos turistas e para quem quer uma segunda casa numa zona-postal. Até porque esse “novo” não existe. É o mesmo processo de sempre, o de submeter as pessoas e as suas relações aos ditames da decisão que, a cada momento, vem salvar a cidade da desgraça em que a puseram. O ciclo imbecil de serem os mesmos que forjam os problemas a tratarem da sua solução. De uma vida numa cidade em ruína, pretende-se passar para um simulacro de vida citadina. Como se não houvesse mais nada.

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da periferia…

Eram aldeias. Geográfica e humanamente separadas da cidade. Ficavam para além da última parte verdadeiramente urbana. Aquém dos campos agrícolas que serviam de fronteira entre o Porto e a sua periferia oriental. O seu papel, o de fornecerem alimento, oxigénio e trabalhadores para a pólis. Eram aldeias. Com a sua tacanhez, fechadas sobre si próprias, rivais umas das outras, numa espécie de concurso de forças e popularidade que, não raras vezes, descambava em luta mano a mano.

Eram aldeias e aldeias continuaram a ser mesmo quando instalaram, nos chamados espaços livres, os expulsos das zonas da cidade que se iam tornando nobres e, como tal, necessitadas de serem limpas de indesejáveis. Entre as velhas aldeias dos antigos pobres, outras surgiram para encaixotar outros deserdados, novos e velhos, os despossuídos e as minorias étnicas. Bouças e agras, oxigénio e comida trocadas por blocos e ruas, cimento e alcatrão.

E, desta forma, aldeias centenárias passaram a conviver com novas aldeias, criando laços, aproximando até terras que se habituaram a crescer de costas voltadas pela enorme e inexpugnável distância que, antes, as separava. Distância que não diminuiu, mas que se esbateu com o desaparecer de coutos, poços, caminhos ermos e ervas altas, e o consequente fim das lendas de bruxas, duendes e maus olhados que impediam que alguém se atrevesse a percorrê-la.

Com a deslocalização do fornecimento de alimento, garantir espaços agrícolas deixou de fazer sentido para os decisores. A fronteira rural da cidade desenvolveu-se, assim, nas décadas do aprofundamento do capitalismo, com a única preocupação de encaixotar trabalhadores indiferenciados e grupos sociais que convinha afastar dos olhos dos turistas. No entanto, nas décadas da globalização, com o trabalho a seguir o mesmo trilho de deslocalização, a sua função de armazém de mão de obra também se esvai.

Deixa de ser limite e passa a ser margem. Da cidade e da sociedade. Que se confundem no aspecto da roupa, da pele e dos dentes, na desumanização das relações sociais, nas descartabilização do ser humano como peça da máquina de fazer dinheiro. A margem da cidade deixa de o ser, é como que expulsa, e torna-se periferia, com viadutos a dois palmos de varandas e com comboios, autocarros, metros, automóveis e nós rodoviários por todos os lados. Porque, entretanto, deixou de ser para que pessoas vivam e passou a ser para que gente circule para dentro e para fora ou à volta do Porto. E, então, que interessam as aldeias? Rasguem-se, afastem-se, destruam-se aos bocadinhos. Onde é precisa uma estrada para um carro passar não cabe uma casa. Onde é preciso colocar uma linha para o metro não cabe uma horta. Onde é preciso meter uma rotunda não cabe um tanque comunitário. E quem constrói tudo isto é quem acaba expulso e desenraizado.

Pode parecer pouco, porque é isso que sempre parece quando olhamos para as coisas embrulhadas com enfeites de progresso. Mas esta era uma zona em que não se temiam as crises que os senhores do topo do mundo inventam para nos retirar dignidade e acumular mais um pouco de riqueza, através da transferência de sempre, a de baixo para cima. Porque havia tecto e comida, havia amigos e familiares ao virar da esquina, havia clientes para o biscate pouco mais longe. Hoje, há relvados estéreis perto das linhas do metro, campos abandonados por serem incultiváveis. Os amigos e familiares estão do outro lado do viaduto que não se lembra dos peões, ainda assim uma rotunda mais perto do que o cliente cujos biscates perdi.

A antiga zona agrícola de Contumil, a que se chamava Beirão, parecia enorme a quem lá brincava na infância. Havia campos e campos, árvores, tanques, amoras, um labirinto infindável de caminhos. Poucos muros altos, que os terrenos eram separados por vegetação. Essa zona desapareceu. É, agora, parte da linha F do metro do Porto. Percorrendo-a, percebe-se que o tamanho não era uma ilusão infantil. Só não se percebe é o que vai ser da gente que já não tem terra cultivável ali. Não se percebe como foi possível deitar tanta comida fora.

O bairro de S. Roque da Lameira era dividido pela linha de comboio. Tinha uma ponte, bonita aliás, com não mais do que 10 metros. O suficiente para que essa cicatriz da civilização se sentisse. De tal forma que a parte de baixo se chamava S. Roque e a de cima Engenheiro Machado Vaz. Havia uma vida de cada lado da ponte, mas também havia O café do bairro e O clube do bairro. Com a construção do nó rodoviário do Mercado Abastecedor, essa cicatriz, passou duma ponte de 10 metros a uma rotunda com um sem fim de entradas e saídas, esquecida de rampas para cadeiras de rodas, impossível de atravessar por quem tenha um qualquer tipo de limitação motora. O café definhou. O clube deixou de ter futebol e é apenas mais um tasco.

São dois exemplos. Os que eu conheço melhor. Que reflectem esta tendência de esquecer as pessoas, de transformar a vida de comunidades inteiras sem dizer água vai, em prol do que for a necessidade actual dos decisores e de quem neles manda. Chamam-lhe progresso, mas não é mais do que a exploração habitual por outros meios. Exemplos que nos devem fazer pensar se uma comunidade, se lhe fosse permitido decidir, alguma vez aceitaria uma via rápida que a cortasse a meio, por exemplo. Porque da resposta depende a perspectiva sobre a questão fundamental de perceber se o próprio modelo que levou à necessidade dessa via rápida não deveria ser repensado.

 

 

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…para o centro

urante décadas deixado ao abandono, o centro do Porto tornou-se um terreno fértil para uma reestruturação social de toda cidade. As estratégias para a urbe acabam, agora, por desembocar num frenesim de construção em plena “crise” , erguendo novos alicerces no afastamento das classes populares dum centro que foi por si construído: a cidade deixa de ser composta de forma orgânica por quem a vive e passa a sê-lo por estratégias dinamizadoras e organizacionais importadas duma cartilha cuja credibilidade há já muito que está fora do prazo.

Em 2005, surgiu a Porto Vivo SRU, uma Sociedade de Reabilitação Urbana de capitais públicos cuja estratégia assenta na venda de património da cidade a grandes investidores. Neste ano de 2012, acabou por ver o seu leilão da cidade chegar ao triunfo infame: o público investe, os bancos bancam e chupam até ao caroço. O anjo na terra é privado e é um investidor benfeitor. O estranho é como é que uma cidade milenar foi posta à venda dum dia para o outro e isso é contado como um dado adquirido, como uma solução final e fatal.

Das camadas que compõem as histórias duma cidade, avalia-se o que é estético e inestético, aproveitam-se as fachadas nobres, demole-se o miolo e instala-se a ordem cosmopolita provinciana importada. E, a todo o custo, espalha-se a virose cívica que diz que todos os cantos escuros, letreiros mal escritos ou parede grafitada são contrários ao progresso. Esta lógica culminou com a criação da C.M. do Porto, dum Gabinete de Arrumação e Estética do espaço público do Porto . Se necessário, apela-se à delação e ao polícia interior. A luta de classes continua de pé: a ordem reinante manifesta-o em pleno nas estratégias de planos arquitectónicos e urbanísticos que anunciam “uma cidade velha como nova”.

Na última década, no Porto, multiplicaram-se os gabinetes, os planos, as cosméticas. A austeridade afectou as árvores, substituíram-se os jardins por granito e aguadas de cimento e o espaço público pelo privado. Neste momento, culmina uma das obras emblemáticas da Porto Vivo: o quarteirão das Cardosas. Situado no centro do velho burgo, é um dos quarteirões que compõem a Avenida da Liberdade. Numa parceria que envolveu vários bancos, expropriou-se quem aí vivia e, como previsto, instalou-se o Hotel Intercontinetal, unidade hoteleira de 5 estrelas, na fachada do velho edifício do palácio das Cardosas. No seu interior, nasceu a primeira praça privada da cidade, cujo caminho traçado pelo plano estratégico de acção da SRU era o da construção dum “espaço interior de forte cariz cívico e ambiente mais intimista. “ .Ao inestético opõe-se o cívico e fecha-se as suas portas à noite.
À volta do quarteirão, um mar de obras sobe as ruas que o ladeiam, a dos Caldeireiros e a de Trás. Tal como a ideia estratégica traçada, adequa-se a oferta comercial ao novo “público”: turistas, jovens artistas, professores universitários e outros quadros superiores residentes em Lisboa que queiram encontrar segunda residência, encabeçam o grupo referido pelo plano desenhado em 2005.

Mais uma vez, o vivido é inestético e inadequado à nova vida da cidade, essa vida que se baseia nas vias que tudo rompem e que, em vez de trazerem novos mundos, trazem o mesmo de sempre, num turismo que maltrata a viagem e se impõe sobre a terra que diz descobrir. Saindo da Rua dos Caldeireiros, entrando pela da Vitória adentro, mais um hotel. Mais à frente vende-se mais uma parcela da cidade e planeia-se um outro: o Miradouro da Bataria, ponto privilegiado do centro popular do Porto, junto ao Mosteiro de São Bento, transformou-se em mais um “lote de intervenção” e foi recentemente leiloado pela Fundação para o Desenvolvimento da Zona Histórica do Porto (FDZHP), e comprado pela construtora Maranhão por tuta e meia. Em breve, iniciar-se-ão as obras para a construção de mais uma unidade hoteleira de luxo, bem no âmago duma cidade que vive como pode, habituada às dinâmicas da sobrevivência do quotidiano comunitário.

“Com a variedade de recursos disponíveis, o Porto conquista todos os seus visitantes, desde os que o procuram pela história e autenticidade àqueles que o buscam para explorar uma nova cidade, mais cosmopolita e contemporânea” (European Consumers Choice – Porto, melhor destino europeu 2012)

A esperança parece residir aí, na criação dum destino exótico que irá servir de tábua de salvação económica a muita gente, um el dorado que nos entra pela casa, pelas ruas, pelas vidas: a urgência económica leva a que uma crítica de raiz não veja espaço para crescer. Em nome do crescimento, vale tudo, nem que isso implique os crescentes laços de dependência externa que se vão criando. Cria-se uma comunidade de serviços, que apenas aprende a servir e cujo medo de o poder deixar de fazer permite que tudo ao seu redor seja conquistado: tudo deve ser feito de forma a nunca se ferirem susceptibilidades de futuros possíveis investidores, servindo sem nunca questionar.

Os discursos provindos de todos os quadrantes, da esquerda à direita, lançaram a urgência, na última década, para uma recuperação cega do património do centro. Este progresso, nas suas linhas de base, parece unânime em todo o espectro partidário. O tom calamitoso sobre a ruína legitimou todas as possibilidades sem nunca conseguir realmente questionar o abandono da propriedade, privada e pública, e a lógica da sua existência. Criou-se um um lugar que caminha para o deja-vu dum mundo previsível, em relação ao qual nos dizem estarmos constantemente atrasados. Resta-nos, agora, perceber que túneis podemos agora escavar para se poder pensar um mundo outro a experimentar sem que deixemos de poder caminhar sobre as ruas onde crescemos. Que se tome a ruína.

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