Relatos que nos chegam do Curdistão (a continuar)
21 Fevereiro 2017
5:47 da manhã. O ar cheirava a cabelos queimados e pólvora e, a 20 metros de mim, enquanto me escondia nos escombros do que um dia foi a casa de uma família da qual ninguém sabe do seu paradeiro, uma cabeça semi-queimada de um homem bomba olhava-me com os seus dentes brancos à vista, como se risse de mim depois de ter explodido à minha frente. Ele sabe que não me matou, mas consumiu um pouco da minha alma. O silêncio é apenas cortado pelo tímido som de música punk que o basco a meu lado ouve no telemóvel.
Olhei sobre os escombros, em direcção a uma cabana onde sabemos estarem pelos menos 3 daesh, para ver se havia sinal de movimentação. Sabemos isso por duas das 10 raparigas yazidi, as únicas duas que conseguem falar, que encontrámos presas numa cave de uma casa semi-destruída, abandonadas à sua sorte, talvez morte. Nunca chorei tanto como nesse dia…
Agora, viemos à caça, apesar de ordens contrárias. Mas não consigo parar de ranger os dentes de raiva desde que as encontrei. Eu (o Tuga), o Basco e o Italiano (parece ser o início de uma piada rasca, antes fosse…), viemos à procura dos demónios, mas eles viram-nos a chegar. Um deles saiu a correr em nossa direção e fez-se explodir a uns 30/40 metros de nós. Mais uns 3 ou 4 metros e não estaria a escrever estas palavras. Por momentos pensei que a cabeça dele ia cair a meus pés… Mas não, ficou ali, a olhar para mim e a sorrir.
Depois de uma longa troca de tiros a noite caiu e com ela o silêncio. O nosso corpo doía com o frio. Fechei os olhos por uns minutos, o que me pareceu uma noite inteira de sono. O meu sono entretanto foi interrompido por tiros na nossa direção. Os daesh conseguiram sair da cabana e flanqueram-nos. Mas eles não esperaram uma coisa, podíamos ter fugido para procurar melhor cobertura , mas com a pouca protecção que tínhamos dos escombros, conseguimos fazê-los desaparecer da face da terra. Estes já não fazem mal a mais ninguém…
Apesar de alguns estilhaços que me feriram nas costas e ao italiano na cara, estamos bem. Levantámos-nos, sacudimos a poeira dos nossos cabelos e barba e depois de 3horas a caminhar na escuridão, voltámos ao acampamento onde depois de termos recebido tratamento médico, uma caneca de vinho à beira da fogueira e o resto do pelotão ter cantado e dançado para nós, recebemos apenas um pequeno castigo da parte do nosso tenente, por termos contrariado ordens (não vamos ter licença de descanso esta semana) mas um também um olhar de respeito pelo que fizemos e um piscar de olho de aprovação.
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