Europa a todo o gás
* com J. Martins (j.martins@jornalmapa.pt)
Na edição nº12 do jornal MAPA publicámos uma peça titulada “A (renovada) corrida ao ouro negro”, que analisava o estado actual da indústria petrolífera em Portugal face ao panorama internacional, destacando a crescente importância das técnicas não convencionais de extracção para um sector que tem redobrado esforços para manter a hegemonia dos hidrocarbonetos na batalha contra as fontes de energia renovável e sustentável. Nesta peça queremos dar sequência a essa análise, olhando para o papel central do gás natural (GN) nessa batalha e em particular para a importância das infra-estruturas de apoio, como forma de entender o desenvolvimento deste subsector em Portugal, no contexto das orientações estratégicas da União Europeia (UE).
Num momento crucial para a indústria petrolífera mundial, esta recebe um impulso decisivo vindo da Europa, com a publicação de um plano que vincula o continente ao gás natural para as próximas décadas.
Tão longe, tão perto
A indústria petroquímica é constituída por uma rede industrial global cuja presença e impacto superam qualquer outro ramo ou sector comparáveis. Os combustíveis – petróleo e derivados, gás natural e carvão, para citar os principais – e o seu uso são centrais à discussão em torno do aquecimento global e a sua extracção, mais do que nunca, marca o tecido vivo do nosso planeta. Apesar disto, como sociedade, em proporção ao relevo e alcance desta indústria, pouco nos debruçamos, mesmo actualmente, sobre os seus efeitos directos e indirectos no ecossistema, na política e sociedade em geral. Esta falha é ainda mais evidente quando falamos das infra-estruturas de apoio, os gasodutos, oleodutos e pontos de armazenamento, essenciais para a indústria e tão mais relevantes quando frequentemente se localizam em proximidade das populações que “servem”. Sintoma de um sector cuja expansão decorre abrigada do olhar público em proporção inversa à cada vez maior proximidade e promiscuidade entre governos e grandes corporações do ramo. Por tudo isto, para poder agir, é fundamental estarmos informados, quer acerca do sector e destas infra-estruturas de apoio, quer das políticas “públicas” que as enquadram, cuja definição e planeamento condicionam presente e futuro, nomeadamente no que toca ao investimento e desenvolvimento de alternativas renováveis e sustentáveis.
Integração (energética) europeia a todo o gás
Antes de abordarmos o caso concreto de Portugal, impõe-se perceber o contexto em que este se inscreve. Qual é a posição da UE em relação ao gás natural como fonte energética, em particular na sequência das resoluções do COP21 em Paris? Quais são as orientações estratégicas decorrentes dessa posição? O uso de gás natural na Europa tem vindo a decair consistentemente. Hoje representa um quarto do consumo energético europeu. Ainda assim, apesar do acordo obtido em Paris, que aponta para a necessidade imperativa de um pico de emissões até 2020 e de uma economia gradual mas rapidamente “descarbonificada”, em inúmeras ocasiões e publicações oficiais recentes, representantes ao mais alto nível da UE descrevem o gás natural como um elemento central na sua política energética, pilar da espinha dorsal da política de segurança energética da UE – e fazendo eco da posição oficial do governo dos EUA e da indústria petrolífera – fundamental na transição para a dita “economia verde”. Estas posições ganharam corpo e dimensão estratégica em Fevereiro deste ano com a publicação do “Sustainable Energy Security Package”, documento-programa saído do projecto de prioridade estratégica “Energy Union”. O primeiro de três pacotes estratégicos esperados em 2016 que, incorporando as conclusões e agenda do COP21, irão definir a estratégia energética europeia para as próximas décadas, é quase exclusivamente dedicado ao gás natural. Este pacote de medidas de (suposta) segurança energética visa fortalecer a capacidade da UE em resistir a interrupções de fornecimento ou outras crises ligadas à oferta de gás natural. Entre outras coisas, o documento prevê a criação de uma rede integrada de abastecimento e armazenamento de gás à escala europeia, em oposição às redes nacionais ou regionais existentes, a criação de um mercado liberalizado em torno de “Hubs”, centros regionais de distribuição que são ao mesmo tempo mercados locais, em oposição aos contratos de fornecimento de longa duração predominantes na actualidade, e a diversificação da oferta, através da criação de novos gasodutos e terminais com vista ao aumento do volume transitável de gás e capacidade de recepção e armazenamento de gás liquefeito (GNL), de forma a tirar proveito de novos agentes de mercado (como os EUA, a Austrália ou o Curdistão iraquiano), e assim contrariar a preponderância da Rússia, que tem uma posição dominante no fornecimento à Europa. Neste contexto, as interrupções parciais de fornecimento que afectaram países do centro e leste da Europa em 2006 e 2009, fruto de disputas entre a Rússia e Ucrânia, têm sido repetidamente citadas por responsáveis europeus, especialmente à luz das recentes tensões geopolíticas em torno desta última. Esta preocupação não terá tido igual destaque quando em 2011 foi inaugurado o maior gasoduto submarino do mundo, o Nord Stream, ligando directamente a Rússia à Alemanha. Financiado conjuntamente pelas duas nações, com a anuência da UE, o gasoduto contornou cinco países de leste que passaram a poder ser privados de abastecimento pela Rússia sem que alguém em Berlim fosse forçado a requentar as batatas no micro-ondas. Um caso exemplar de “solidariedade” acolhido com choque pela maioria dos países do leste da Europa e críticas veementes do departamento de estado americano. Como se tal não bastasse, apesar da estratégia europeia conjunta agora apresentada e apesar da referida “tensão”, a Alemanha e a Rússia estão em vias de acordar a expansão do projecto. O Nord Stream 2 duplicará a capacidade existente tornando a Alemanha independente de importações através do leste europeu, com prejuízos (e perigos) acrescidos para os países em causa. É portanto neste contexto, de liberalização, integração e investimento em infra-estrutura por um lado e mensagens contraditórias pelo outro, que os recentes desenvolvimentos do sector em Portugal se enquadram.
(Quase) todos os caminhos vão dar à Península Ibérica
Tendo em conta estas considerações, a Península Ibérica fica numa posição favorável para se tornar num importante ponto de entrada e armazenamento de gás para o mercado europeu. Para se começar a perceber porquê, basta atentar às palavras de Gurkan Kumbaroglu, presidente da Associação Internacional de Economia da Energia (IAEE), proferidas em Setembro de 2015 durante o encontro ‘Meeting on Energy and Environmental Economics (ME3) na Universidade de Aveiro: “Há duas regiões da Europa a progredir rapidamente para se tornarem ‘hubs’ de gás natural: a Turquia na Europa Oriental e Portugal na Europa Ocidental. (…) Os EUA aumentaram o seu peso no panorama global de energia. A Península Ibérica é influenciada por este desenvolvimento e pode tornar-se uma nova porta para a energia na Europa.” A frase “os EUA aumentaram o seu peso no panorama global de energia” é uma referência à chamada “revolução de gás de xisto”, abordada no número anterior do jornal MAPA. Graças a desenvolvimentos tecnológicos como a fractura hidráulica, durante a primeira década deste século a produção de gás de xisto nos EUA aumentou ao ponto de converter a nação no maior produtor à escala mundial, o que efectivamente transformou o mercado energético norte-americano, tradicionalmente importador, contribuindo decisivamente para a almejada independência energética da nação. A “revolução” está agora a entrar na sua segunda fase, a de exportação. Portugal teve a infeliz honra de estar associado ao que é descrito pelo Embaixador dos EUA em Lisboa como um momento histórico: a primeira exportação de GNL, com origem em gás de xisto dos EUA para a Europa. A 27 de Abril passado deu entrada no Porto de Sines o metaneiro “Creole Spirit” (saboreie quem queira o delicado travo racial), proveniente do terminal GNL Sabine Pass no Texas, propriedade da Cheniere Energy. O “momento histórico” vai muito para além do mero facto de se tratar do primeiro carregamento de GNL derivado de gás de xisto a chegar à Europa. O gás natural é definido como “high volume, low value commodity”, ou seja, um bem de reduzido valor que deve ser vendido em grandes quantidades para ser lucrativo, o que torna os custos de transporte determinantes para a rentabilidade do investimento. Devido a isto, até há relativamente pouco tempo o comércio de gás natural decorria principalmente à escala regional, à semelhança do que acontecia com o petróleo nos anos 50 e 60. O enorme aumento de produção nos EUA, entre outros factores, levou a uma queda de preço que tornam o GNL americano competitivo nos mercados europeus, o que, a par da reorientação estratégica europeia e consequente investimento em infra-estruturas, pode significar o início de uma nova etapa para o sector, na qual Portugal teria um papel significativo sem que isso represente para a imensa maioria dos portugueses qualquer benefício assinalável, bem pelo contrário. Para que se cumpra este alto desígnio pátrio, torna-se necessário ultrapassar um dos principais entraves à integração efectiva da rede europeia de gás: a ligação entre a Península Ibérica e França. Considerada insuficiente, a ligação a França é feita por dois gasodutos (Larrau e Biriatou) com uma capacidade combinada de 5.36 bcm (billions of cubic metres, mil milhões de metros cúbicos) por ano, estando a expansão para 7.1 já prevista. Em 2015, sob o meigo olhar do Presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker e do presidente do Banco Europeu de Investimento, Werner Hoyer, Portugal, Espanha e França acordaram a criação do MidCat. Este novo gasoduto, que se espera que comece a funcionar em 2020, permitirá duplicar a capacidade total para cerca de 15.1 bcm, um volume equivalente à sexta parte das importações anuais totais da Europa. Embora o discurso em torno do MidCat se foque em potenciar a ligação ao mercado argelino – de acordo com dados de 2013, a Argélia forneceu através de Espanha e Itália cerca de 7% do gás usado pela Europa – como forma de (já se adivinha) reduzir a dependência das importações à Rússia, basta relembrar as palavras de Gurkan Kumbaroglu ou do embaixador norte-americano para perceber que este não é o único horizonte do projecto.
O gás em Portugal
O contexto descrito dá indicações claras de que o sector do gás natural em Portugal está, salvo imprevistos, em vias de expansão, nomeadamente em termos de capacidade de armazenamento. Qual é o panorama actual e que consequências acarreta este desenvolvimento? Todo o gás natural em Portugal é importado. Historicamente os principais fornecedores são a Argélia, através do gasoduto Europa-Magreb, e a Nigéria, que fornece gás liquefeito para o Terminal de Regaseificação de Sines, existindo ainda aprovisionamento resultante de compras nos chamados “spot markets”, mercados regionais onde volumes de gás excedentário ou armazenado são transaccionados a curto prazo, como o Mercado Ibérico de Gás (Mibgas). O sector é dominado por dois agentes: a Galp Energia e a REN (Redes Energéticas Nacionais SGPS, SA). Entre muitas outras coisas, a Galp é responsável pela importação – tem contratos de fornecimento de longa duração com a NLNG da Nigéria e a Sonatrach da Argélia, sendo que também adquiriram o GNL que chegou a Portugal no passado dia 27 de Abril. Ao mesmo tempo, a Galp também comercializa gás noutros mercados, nomeadamente o espanhol, que servem em parte através da infra-estrutura nacional. Por sua vez a REN, através da subsidiária REN-Gasodutos, opera a Rede Nacional de Transporte de Gás Natural (RNTGN), providencia armazenamento subterrâneo nas cavernas salinas do Carriço no conselho de Pombal através da REN-Armazenagem, e assegura serviços de recepção, armazenamento e regaseificação de GNL através da REN-Atlântico em Sines. Finalmente, é responsável pela gestão técnica global do Sistema Nacional de Gás Natural, ao abrigo de um contrato de concessão de longa duração (40 anos) com o Estado Português. A RNTGN é composta por 1.375 km de gasoduto a alta pressão divididos em dois eixos: Sul-Norte, de Sines a Valença do Minho, e Este-Oeste, de Campo Maior à Figueira da Foz, com derivação para a Guarda, por sua vez com ligação a Mangualde e Celorico da Beira. A rede nacional está ligada ao sistema espanhol em dois pontos, Campo Maior-Badajoz e Valença-Tuy, sendo que a REN, no âmbito da criação do MidCat, prevê o estabelecimento de uma terceira ligação. Em Sines, no Terminal de Gás Natural (TGN) – onde atracou dia 27 o “Creole Spirit” – o gás liquefeito é recebido, transformado e já sob a forma gasosa, comprimido e injectado na rede de alta pressão. O terminal é composto por uma estação de acostagem para navios com capacidade de 40.000 a 216.000 m3, três tanques com uma capacidade total para 390.000 m3 e sete vaporizadores destinados à regaseificação do GNL. Em termos de armazenamento subterrâneo, o Complexo de Armazenagem do Carriço, em operação (e expansão) desde 2002, é composto por seis cavernas salinas, correspondendo a um volume utilizável de gás de 333.4 milhões de m³ (Mm³). Estas cavernas artificiais foram criadas por “cavern leaching” (ou lixiviação): injecção de grandes quantidades de água doce, que permite a dissolução controlada do sal que compõe o maciço salino. A salmoura resultante é rejeitada e despejada no mar ou, quando viável, utilizada para outras actividades. Em 2012 um estudo de impacto ambiental da Galp (Transgás) e da REN, no âmbito da expansão do complexo, identificava os principais riscos ambientais como: emissões de metano e CO2, perda de biodiversidade devido à construção e manutenção de equipamento, impacto nas reservas aquíferas, nomeadamente pelo rebaixamento do nível freático. A REN dispõe de licença para abrir mais duas cavernas sendo que o local pode abrigar um total de 25, estando estes desenvolvimentos dependentes em última análise do parecer da Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (ERSE). Ora, recentemente a REN apresentou à ERSE o seu Plano de Desenvolvimento para o período 2016-2025 (PDIRGN 2015). Tal como nas duas ocasiões anteriores, o plano, que continha inúmeros projectos de expansão entre os quais a referida terceira ligação a Espanha, foi rejeitado (com a excepção de três projectos individuais de pequena dimensão, um dos quais relativo ao reforço da capacidade de extracção-injecção no Complexo do Carriço). Sucintamente, a ERSE apontou, entre outras coisas, a previsível transferência de custos para os consumidores na forma de tarifas mais altas, fruto “das incertezas inerentes à evolução da procura de gás natural”.
Rede integrada, pensamento desarticulado
Esta rejeição obedece a um padrão de análise. Curiosamente, quem o subscreve não são necessariamente ambientalistas ou activistas, mas analistas do sector, especialistas e académicos. Como referimos, o consumo de gás natural na UE tem caído de ano para ano. O ano de 2014 marcou os níveis de consumo mais baixos desde 1995. A UE no entanto tem constantemente sobrestimado a procura futura e como tal tem sido forçada a revê-la em baixa, todos os anos, desde 2003. Estas previsões, da oferta, da procura, e do consumo, são a base da política de planeamento. A maior parte das projecções e estimativas usadas pela UE apontam para o crescimento do consumo, quando a tendência dos últimos anos mostra o inverso. Este desfasamento pode ter consequências económicas graves perante um pacote de medidas com uma séria componente de investimento em infra-estruturas. Ademais, sabemos por dados da UE que a capacidade industrial de importação de gás existente hoje é suficiente para suprir os níveis de importação previstos até 2040. A capacidade existente permite importar 700 bcm anuais, quando as importações reais orçam as 250, ou seja cerca de um terço da capacidade possível, uma situação definida como “overcapacity”, ou excesso de capacidade. Embora isto possa não parecer um problema, equipamentos industriais não utilizados ou pouco utilizados geram custos adicionais e não dão retorno, o que no clima económico actual se torna ainda mais grave. O que torna a consulta dos dados disponíveis na página da GIE (Gas Infrastructure Europe, uma associação de agentes do sector, que mantém bases de dados dos projectos em curso) uma experiência intrigante. Em Maio de 2015, estavam listados em fase de construção 35 projectos (novos e de expansão), existindo outros 95 projectos em fase de planeamento (a maioria novos). Se todos os projectos forem aprovados e concluídos isto representará um aumento de 60% da capacidade de armazenamento de GNL e de 75% na capacidade de regaseificação até 2025, num sector onde os equipamentos actuais têm uma taxa de utilização de 24%. Por outro lado sendo certo que existem assimetrias ao nível do fornecimento de gás na Europa, quando as analisamos mais em detalhe torna-se evidente que a sua distribuição pode facilmente ser encarada como uma oportunidade e não um problema. Em 2013 três países, a Alemanha, o Reino Unido e a Itália, eram responsáveis por mais de 50% do consumo de gás na Europa e se a estes somarmos França, Holanda e Espanha, o total sobe para 75%. Seis países com mercados desenvolvidos, variedade de oferta, redes interligadas, sectores de renováveis em crescimento sustentado e com bons níveis de eficiência energética, ou seja, os mais bem equipados para resistir a crises e onde tendencialmente a procura irá diminuir mais rápido. No reverso da medalha, os países mais expostos a interrupções de gás a partir da Rússia consumiram um total de 7%. Tendo tudo isto em conta, revisitemos os argumentos e a solução proposta pela UE. A excessiva dependência de importações russas, a par de assimetrias no fornecimento geral de gás e falta de conectividade entre redes, representa uma fragilidade estrutural no panorama energético europeu. Ao mesmo tempo, o gás natural é um componente central na transição para uma economia “verde”. A solução: um programa de investimento em infra-estruturas a par de medidas de liberalização dos mercados e reforma legislativa, resultando em preços mais baixos, melhor qualidade de serviços e maior segurança energética, com a cereja no topo do bolo de tudo isto beneficiar o ambiente. Ora, por tudo o que foi aqui escrito, é evidente que o problema, se problema é, não tem a gravidade nem a relevância que lhe são atribuídas, e as conclusões são no mínimo questionáveis: a procura está em queda em todos os sectores de consumo há anos, novos gasodutos existentes ou em construção em muito reduzem a “ameaça russa”, a Europa tem capacidade industrial que supera três vezes a procura, com vários novos projectos prontos a avançar e as assimetria são muito menos significativas do que se quer fazer crer. Face a isto, torna-se extraordinariamente difícil aceitar de boa-fé os argumentos da UE e consequentemente a solução proposta. Como se justifica então este recente plano de “segurança energética”?
Gás natural: verde mais verde não há.
Talvez nos aproximemos de uma resposta ao perceber que as medidas propostas são essencialmente o mesmo que a UE anda a promover desde os anos 90: liberalização e integração dos mercados e rede energética europeia. A Galp não foi criada e privatizada em 2016, nem a miríade de distribuidores regionais de gás que nos batem à porta e telefonam surgiu em Fevereiro deste ano. O pacote recém-publicado é indiscutivelmente mais exaustivo, mais coeso, reflectindo seguramente o novo equilíbrio de forças no centro da política europeia assim como o caminho já percorrido neste processo desde os anos 90, mas traz pouco de novo. O que seguramente não reflecte é a necessidade vital de transformar os nossos sistemas energéticos de forma decidida, inteligente, humana… e rápida. A UE afirma que o gás natural é um componente importante, uma ponte, na mistura energética que sustentará a “União”, rumo a uma economia energética “verde”, de forma suster um aumento da temperatura média global inferior a 2º C (idealmente até 1.5º C). O corolário desta ideia será que a “revolução do gás de xisto” norte-americano é como tal um factor positivo no combate às alterações climáticas. Em resposta a estas pretensões, inúmeros cientistas, economistas e ambientalistas levantam objecções que importa considerar. Antes de mais porém, convém afirmar claramente que a combustão de gás natural emite muito menos CO2 para a atmosfera do que a de carvão e dos derivados de petróleo. Paralelamente, as centrais de produção de energia eléctrica alimentadas a gás natural permitem dar uma resposta muito mais eficiente às flutuações características da produção de energia solar ou eólica, do que as de carvão. Estes, enfim, são os dois argumentos normalmente oferecidos em prol do gás natural como parceiro ideal da energia renovável. O que aqui fica por dizer é fundamental: o gás natural é maioritariamente constituído por metano, um composto que tem um impacto 36 superior ao do CO2. Pondo de lado a factura energética associada à extracção propriamente dita, as fugas de metano durante a extracção, transporte ou armazenamento são bem mais comuns do que se poderá pensar, ou, dito de outra forma, do que a indústria nos quer fazer crer. Vários casos e estudos recentes vieram confirmar esta realidade. No número anterior do jornal MAPA já tínhamos realçado a fuga de gás no campo de armazenamento de Alison Canyon na Califórnia. Entre Outubro de 2014 e Fevereiro de 2015 a fuga, que não pode ser controlada, emitiu cerca de 100.000 toneladas de metano para a atmosfera, o equivalente a 1% das emissões globais anuais. Tratou-se de uma fuga de grandes dimensões, descrita por alguns como o maior desastre ambiental desde a explosão da plataforma “Deepwater Horizon” e consequente derrame de crude. Há semanas, uma dupla de cientistas norte-americanos confirmou que uma só exploração, o campo de Bakken nos EUA, é a causa principal da inversão da tendência global de declínio dos níveis de etano (outro gás de estufa significativamente mais poderoso que o CO2 que compõe o chamado gás natural) na atmosfera registada desde os anos 80, emitindo em média 250.000 toneladas para a atmosfera por ano, entre 2% a 3% das emissões globais anuais. Outros estudos, não relacionados, publicados recentemente, têm produzido resultados igualmente dramáticos, em locais diferentes e fazendo uso de outras formas de medição. Embora estes estudos sejam especialmente reveladores, existia já um volume significativo de informação que apontava nesta direcção. Por outro lado, a ligação entre o uso de técnicas não convencionais, como a fractura hidráulica, e o potencial aumento da actividade sísmica está amplamente documentado. No entanto na Holanda, o maior produtor europeu de gás, o campo de Groningen, uma exploração convencional, está a ver a sua produção reduzida, depois de mais de 1000 terramotos de baixa magnitude mas elevada intensidade (o epicentro encontra-se muito mais perto da superfície) terem sido registados. Depois de décadas a negar qualquer tipo de ligação entre o campo e a actividade sísmica, a NAM, empresa que gere o campo, perdeu um processo em tribunal, durante o qual foi forçada a admitir responsabilidade, podendo vir a ter de pagar vários milhões de euros em compensações. Outro caso que não podemos deixar de referir é o da estação submarina de armazenamento de gás de Castor, ao largo de Valencia. Em 2013, a estação foi escolhida como projecto-piloto da iniciativa “Europa 2020”, com um investimento previsto de 1.7 mil milhões de euros. Um mês após o início dos trabalhos tinham sido registadas centenas de terramotos de baixa magnitude. O projecto teve de ser interrompido e não foi retomado. Se a estória tivesse acabado aqui, o final não teria sido demasiado mau, mas uma cláusula no contrato do projecto obrigou o governo espanhol a assumir os encargos financeiros do mesmo. A solução encontrada cristaliza a noção de solidariedade defendida pela UE: transferir os encargos para a população espanhola na forma de um aumento na tarifa de gás, estimado em 4.7 mil milhões de euros, pagos ao longo dos próximos trinta anos, num dos países que mais sofreu e sofre com as consequências da crise financeira. Estes são apenas alguns casos que exemplificam que nenhum aspecto da exploração de gás natural é seguro ou sustentável, seja em termos financeiros, ou em termos do impacto ambiental, local ou global e a lista de argumentos está longe de se esgotar. Como não temos razões para crer que os responsáveis da UE desconheçam a lei da oferta e da procura, torna-se complicado racionalizar a conversão da Europa numa plataforma global, um hub global, para o comércio e consumo de gás natural, que é o resultado prático desta nova política. Ora, de acordo com os modelos que sustentam o acordo de Paris, quatro quintos das reservas conhecidas de hidrocarbonetos devem permanecer no subsolo para preservar a possibilidade de manter o aquecimento abaixo dos 2ºC, mas a introdução e uso crescente de técnicas não convencionais de exploração veio redefinir (leia-se aumentar) radicalmente o que era entendido por “reservas conhecidas”. Ao investir em infra-estruturas, a Europa, que é o maior importador de gás natural do mundo, está efectivamente a dar um sinal aos mercados de que podem continuar a produzir e quanto mais barato melhor. Por sua vez, a pressão exercida pelo baixo preço do petróleo e do gás, no contexto económico actual, torna-se um duplo desincentivo: há menos razão para poupar energia ou para investir em energias renováveis, comparativamente mais caras a curto prazo. A única coisa que poderia tornar a situação pior seria um corte nos subsídios às energias renováveis. Curiosamente, é precisamente isso que vai acontecer a partir de 2017, os subsídios serão efectivamente cortados, quando todos os anos a UE continua a investir biliões em subsídios directos e indirectos à indústria petrolífera.
Gás, amigo, o povo endinheirado está contigo! Gás, amigo, o povo…
Chegados a este ponto, independentemente do que possam trazer os restantes dois documentos a ser publicados este ano, poucas dúvidas podem restar de que aquilo estamos a presenciar pouco mais poderá ser do que um enorme subsídio (mal) encapotado à indústria petrolífera. Mais, não apenas um subsídio mas uma autêntica bóia de salvação: artigos acerca deste tema, a ERSE e as próprias publicações da UE referem constantemente a “incerteza dos mercados” ou “da procura futura”. Pois bem, ao dar um claro sinal da direcção a tomar, a UE, o bloco político “mais progressivo” e a maior economia do planeta, elimina em grande parte essa incerteza. Regressemos ao início deste texto. As técnicas de extracção não convencionais, e o gás de xisto em particular, revigoraram a indústria petrolífera. Faça-se um esforço de imaginação: o que é que aconteceria se em vez disto, a maior economia do mundo, adoptasse um programa vigoroso de investimento nas renováveis? Pois… mas não. É esta a traição maior, imensa, desta política. Não são as emissões europeias, por muito más e evitáveis que sejam, é o efeito de escala, é a validação de uma indústria que há décadas se comporta como um autêntico parasita no seio da nossa sociedade e é por isso recompensada! Ao adoptá-la, a UE sinaliza às grandes corporações do sector que o caminho está aberto, que as torneiras não vão ter de fechar. Estamos perante um caso exemplar de manipulação governativa, onde nada falta: a eufemística reforma, as pinceladas de medo e ameaça, os imprescindíveis salpicos factuais e claro, doses cavalares de retórica e interpretação criativa embrulhadas em resmas de “burocratês” para garantir aquele travo característico a vazio democrático que a casa tanto aprecia. A UE demonstra aqui, como demonstra nas negociações do TTIP, cujo conteúdo, esclarecedor, foi agora parcialmente revelado, como demonstrou durante o COP21, que hoje mais do que nunca, não fala em nosso nome, não está ao nosso serviço. É por isso que cada vez mais, por este continente fora e para além das suas desumanas fronteiras, há gentes, comunidades, que se juntam e organizam, que lutam para preservar a sua vida e o seu meio ambiente. A nós cabe fazer o mesmo, fazer mais, face aos mascates do medo, que, cantando velhas cantigas, querem que vivamos num armazém de gás, à beira mar escavado, para “a Europa”.