O que se passa em Setúbal?

28 de Fevereiro de 2015
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fantaTodos, ou quase todos, os que vivem nesta cidade o sabem. Porque o viveram directamente, porque aconteceu a algum amigo, ou simplesmente porque lhes contaram uma das centenas de episódios de violência e abuso policial nas ruas e esquadras da cidade de Setúbal. Há vídeos, existem queixas, existem fotografias que mostram o resultado das agressões. Mas essas queixas oficiais estão longe, muitíssimo longe da realidade que nos rodeia. Todos os dias. Especialmente todas as noites.

Quanto mais o medo se foi espalhando, mais alto o muro de silêncio se ergueu. Afinal do lado do agressor estão as autoridades da nossa cidade. Do nosso país! E para a maioria das pessoas simplesmente não faz sentido que sejam considerados agressores e desordeiros. São a Polícia de Segurança Pública, com a missão de servir “pela ordem e pela pátria”! De certeza que são disciplinados! Têm que ser se andam armados pela rua! De certeza que as hierarquias funcionam e todas as suas acções são coordenadas e controladas. De certeza que se alguém levou “porrada da polícia” foi porque o mereceu! De certeza que fez alguma coisa! De certeza que a violência era proporcional! De certeza que era bandido… de certeza que isto…. de certeza que aquilo.

Quando as mortes começaram a acontecer, estas certezas todas foram desaparecendo… mas de uma forma demasiado lenta. E hoje, nos últimos dias do mês de Fevereiro de 2015, estamos uma vez mais a chorar a morte de um jovem Setubalense às mãos da Polícia. Sim, mais uma. Mas só uma que fosse, já era demais! Se a agressão vazia e a morte sem sentido de um ser humano por outro é sempre injustificada, ainda mais o é nas mãos dos tais que supostamente existem para nos proteger. Agora falta-nos o Nuno. O Fantasma. Um rapaz da cidade, igual a todos. Com a sua personalidade, as suas estórias de vida, a sua família, os seus amigos, as suas festas. Com a particularidade de que o Fantasma tinha gosto em espalhar alegria, a felicidade e a boa onda à sua volta. Com quem fosse. O que deixou muitos bons momentos na memória dos seus amigos, muitas saudades naqueles que agora o viram partir demasiado cedo, e muita tristeza nos corações daqueles que não percebem como é possível uma estória de terror destas. E é isso que sente cada família de cada jovem que partiu. Jovens iguais a todos os outros, fossem brancos, pretos ou amarelos. Fossem trabalhadores como o Nuno ou desempregados como tantos de nós. Tivessem nascido em Setúbal ou não. Fossem deste bairro ou do outro. É essa tristeza, saudade e incompreensão.

Desta vez, porém, é mais fácil para muitos se sentirem mais rapidamente identificados. Porquê? Porque o descontrolo é tal que foi impossível apagar as provas do crime antes que fosse público. Porque a estratégia de defesa da corporação PSP ainda não está definida. A propaganda ainda não existe. O ruído ainda mal começou. Desta vez a clássica máquina racista que o estado usa em sua defesa (usando e estimulando o racismo da sociedade portuguesa) não funciona. O Nuno era branco. A estratégia do bandido também não: ele era um paz de alma e tinha um trabalho honesto. O álibi da polícia não existe, e fica à vista de todos que isto é um crime, cometido com maldade, sangue frio e cumplicidade. Agora encobrem-se e protegem-se, tal como demonstra o comunicado do comando da PSP de Setúbal sobre os factos. Ao mesmo tempo que temos que perceber a injustiça e a dor que a família do Nuno sente neste momento, é importante também perceber que isto poderia ter acontecido a qualquer outra família. E que, tal como aconteceu antes deste caso, poderá voltar a acontecer. A pessoas que vivam em Setúbal, que visitam Setúbal, ou que tiveram o azar de cá parar numa “daquelas” noites.

Mas então o que se passa com a polícia em Setúbal? De onde vem essa maldade? Porquê a cumplicidade? São respostas que todos gostaríamos de ter, mas não temos. O que temos é muitas experiências, e muitas estórias. A maior parte circulam de boca em boca, mas temos pontas do iceberg que ficam momentaneamente à vista de todos, como, por exemplo, quando há agentes detidos por depósitos de largas quantidades de dinheiro injustificado, quando agentes que são conhecidos por ligações ao tráfico de estupefacientes são suspensos. Ou quando há agentes de esquadras do comando de Setúbal que são detidos por assaltos a casas e vivendas previamente assinaladas. Isto sai nos média. E depois vem o silêncio.

O Silêncio é aquela capa que pesa por cima de todos nós quando ouvimos que os agentes tal e tal espancaram um puto e depois deixaram-no na serra da Arrábida. Ou que uma brigada levou este e aquele para a zona industrial da Mitrena e divertiram-se a torturá-los e humilhá-los, para no fim os deixarem lá, despidos e ao frio. Ou que a brigada motorizada composta por 12 agentes em 6 motas de enduro com as caras tapadas e empunhando shotguns agem como o pior dos filmes de cinema dos gangues de motos ameaçando transeuntes que olhem, ou que comentem a sua presença. Ou a estória do outro que foi assaltado nas ruas adjacentes à esquadra e quando se refugiou lá dentro, depois de constatar a inação dos agentes perante o flagrante e depois de exigir que fizessem qualquer coisa, acabou por ser vítima de agressão de um agente que lhe terá dito “não és tu que dizes o que é que eu tenho de fazer”. E quando se torna “normal” que da boca dos agentes saiam todo o tipo de insultos e ameaças: “vê la se não queres que te parta o focinho todo”, ” ainda levas mas é um estalo”, “tás a olhar para onde?”.

A cidade de Setúbal tem uma Brigada de Intervenção Rápida. Foram construindo a sua fama ao longo do tempo. Excepto quando existem olhos inconvenientes que os controlam, de resto agem como um bando de hooligans. Filhos da cidade que todos fomos vendo ao longo do tempo como cresceram. Conhecemos os seus podres passados e presentes, as más-famas de muitos, os negócios estranhos. Muitos renderam-se ao ginásio. Passando alguns de lingrinhas a bombados enquanto o diabo esfrega um olho. São os que param neste e naquele ginásio, em que alguns só tomam mas outros também participam no comércio de esteroides e anabolizantes. Aqueles de última geração de que ouvimos falar, que os tornam gigantes ao mesmo tempo que os deixam loucos de agressividade.

Primeiro só apareciam nos bairros sociais, nos eventos de massas, nas manifestações. Uma das primeiras mortes aconteceu em 2002, mataram o Toni com dois disparos de shotgun à queima-roupa. O tribunal, apesar de todas as provas em contrário, absolveu o agente Machado usando a tal máquina racista e do estigma dos bairros sociais. O Toni era preto, e vivia na Bela Vista. Estava garantida a impunidade, sentimento que com os anos e a perturbante cronologia de mortes e abusos se apoderou do Comando de Setúbal.  Acompanhando os desejos da Câmara Municipal de Setúbal de “mais polícia na cidade”, foram-se tornando mais ostensivos e agressivos, patrulhando também as zonas de diversão nocturna. Depois de uma fase de operações stop coordenadas e de relativa dimensão, estas cessaram dando lugar todos os fins-de-semana a uma surreal caça aleatória a veículos feita por vários carros patrulha, da brigada de trânsito, mas também da BIR, a carrinha de intervenção. Algumas destas interpelações são feitas à vista de todos. Outras não. E com o clima de impunidade (corporativa e judicial) que se já tinha instalado, abriu-se caminho ao mais puro e básico terrorismo. Sucederam-se com mais frequência do que nunca os relatos de abusos verbais e físicos. O aterrorizar aleatório da população. Os relatos de que “eles estavam fora de si”, “estavam raivosos”, “mortinhos para arranjar confusão”, “à espera que respondesse para me darem um enxerto”. Alterados, descontrolados, agressivos, abusivos, armados… É por isso que muitos já tínhamos pensado num fim trágico como este, muitos já tínhamos dito que por pouco não tinha acontecido. Já se falava que qualquer dia era inevitável. E agora aconteceu. Outra vez.

 

Seria mesmo Inevitável?

Não será, isso sim, completamente inevitável entendermos isto como uma agressão a nós, a todos nós, às nossas famílias, amigos, conhecidos… a toda a cidade de Setúbal? Não será inevitável assumirmos que temos de pôr um ponto final nesta loucura?
Se já muitos expressamos o medo de sair à rua não porque nos assaltem, mas porque nos podemos cruzar com a polícia, é porque entendemos que esta situação não é normal. Ou se é, então rejeitamos essa normalidade.

Queremos sentir-nos seguros, não queremos desconfiar de tudo e todos, não queremos ter medo de sair à rua, não queremos recear o pior quando os nossos filhos e os nossos amigos saem à noite para se divertir. Não queremos ter medo de falar, não queremos ter medo de denunciar quando as supostas autoridades cometem injustiças, quando agem como os piores dos arruaceiros. Essencialmente o que se passa em Setúbal é que não queremos passar mais por isto. Não queremos chorar nem mais uma morte nas mãos da Polícia. Não queremos mais estórias bárbaras de agressões e humilhações. Chegou a hora de quebrarmos o silêncio, e de parar esta loucura!

Nuno Pereira

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