Sade: o limbo da libido
Há duzentos anos morria um dos autores mais radicais e contestatários da História da Literatura: Sade (1740–1814). Escritor de obra prolífera como dramaturgo, romancista ou filósofo político, é um dos mais destacados autores malditos de que darão conta os 27 anos de detenção em prisões e hospícios.
Donatien Alphonse François, de seu nome, imprime em todas as obras uma incisiva e permanente instigação ao crime na forma como aniquila a moralidade vigente, sobretudo religiosa – à época passível de pena de morte.“Não devemos negar-nos nenhum prazer, nenhuma experiência, nenhuma satisfação, desculpando-nos com a moral, a religião ou os costumes. (…) Antes de ser um homem da sociedade, sou-o da natureza.”, afirmava. Os seus textos desafiam por negação as concepções dos principais campos filosóficos da época: o religioso e o racionalista. Propõe instituições sem leis que seriam naturalmente modelos de acções livres, anárquicas, em perpétuo movimento, em revolução permanente, imoralidade constante. “A insurreição deve ser o estado permanente de uma república. Seria, pois, tão absurdo quanto perigoso exigir-se que aqueles que devem sustentar o perpétuo abalo da máquina fossem eles próprios seres muito morais… porque o estado imoral é um estado de movimento perpétuo que aproxima o homem da insurreição necessária, na qual o republicano deve manter sempre o governo em que participa.”, escreve. Deus e todos os princípios e dogmas da narrativa cristã são ultrajados e ridicularizados numa linguagem crua e despudorada, recheada de adjectivos corrosivos.
A sua obra influenciará Nietzsche, Stirner, Freud, os surrealistas, Jean Genet e muitos outros. Conceitos como ateísmo, roubo, prostituição, incesto, sodomia, até o assassínio, são para ele institucionalizáveis. Foi preso pelos vários regimes políticos da época em que viveu: monarquia, república, consulado e império. O carácter libertino, crítico e pornográfico dos seus livros, se por um lado o apresenta como vanguardista, terá também sido responsável pela enorme confusão que com o passar dos anos se gerou em torno da vida e obra. Consciente dessa possibilidade, escrevia à esposa em 1781: “sou um libertino, confesso; eu concebi tudo o que se pode conceber nesse género, mas seguramente não fiz tudo o que concebi e certamente nunca farei. Sou libertino, mas não sou nenhum criminoso nem assassino”. É exactamente na intersecção de ficção e realidade e na ética que erigiu, baseada numa relação identitária entre coito e crueldade, que se postula a importância e a originalidade de Sade, conhecedor das dificuldades de aceitação das suas ideias: “Eu só me dirijo às pessoas capazes de me entender e estas ler-me-ão sem perigo.” Mas se não existiu conciliação da vivência individual com a prática colectiva, curioso é que durante a juventude não encontremos sinais de revolta ou inconformismo, bem pelo contrário: aceita naturalmente as regras da sociedade, sendo a tal ponto obediente que não contesta o pai quando lhe impõe casamento com uma mulher por quem não revela qualquer apetência. É, portanto, a metamorfose que se torna necessário entender.
Gramática do Corpo e Corpo da Gramática
Nasce em Paris a 2 de Junho de 1740 e estuda no College Louis-le-Grand. Quanto à infância, lamentavelmente temos pouca informação. Nada se sabe, por exemplo, da relação com a mãe, ambiente familiar ou aproveitamento escolar. Klossowski descreve o ódio de Sade à mãe baseando-se na obra e acrescenta: “O fantasma sádico apoia-se num pai destruidor da própria família, levando a filha a supliciar e a assassinar a mãe”, mas tratando-se de terreno imaginário a leitura afigura-se de falíbilidade possível. Em 1754 é admitido na escola de cavalaria onde progrediu até ao posto de capitão, participando na Guerra dos Sete anos. Foi desmobilizado em 1764 e obrigado pelo pai a casar-se com Renée-Pelagie de Montreuil, filha de uma família nobre com influência na corte. “Em todos os aspectos o sadismo apresenta uma negação activa da mãe e uma inflação do pai, o pai acima das leis”, sugere Deleuze. Nessa altura assemelha-se a qualquer filho de família do seu tempo: aprecia o teatro, as artes, a leitura, frequenta casas de meninas e mantém uma amante. Cinco meses após o matrimónio rebenta a primeira contrariedade: é acusado por uma prostituta de a obrigar a renegar Deus e a realizar “actos de sacrilégio” com imagens cristãs enquanto mantinham relações sexuais. Detido, suplica ao director do presídio que os motivos sejam mantidos em segredo, caso contrário, “estarei irremediavelmente perdido”, afirma. Solicita permissão para rever a esposa mostrando-se arrependido das ofensas e pede confessor a quem abre a alma. Será um arrependimento verdadeiro? Graças à influência da sogra, a reclusão dura menos de um mês. Depreende-se uma vida erótica com características singulares, que se iria aprimorar. Em 1766 é recebido pelo parlamento de Borgonha no cargo de lugar-tenente geral das províncias de Bresse, Bugey, Valromey e Gex. Nasce o primeiro filho, Louis Marie de Sade e encontramo-lo assumindo o papel de marido, pai, marquês e castelão, usufruindo dos privilégios que a sua posição e a fortuna da esposa garantem. Mas a personagem pública vergada às convenções está longe de o satisfazer: sente necessidade de dar aso aos sonhos. Nesse mesmo ano, 1767, morre o pai, Conde de Sade, e um ano depois dá-se o primeiro grande escândalo; a mendiga Rose Keller, atraída à sua casa de Arcueil, no domingo de Páscoa –será coincidência?- processa-o por maus tratos. Tê-la-á amarrado, chicoteado com uma corda nodosa e cortado com canivetadas, derramando cera nas escoriações, até ao auge do prazer, em que começara a “dar gritos agudos e medonhos”, declara a vítima. Então desata-a e permite-lhe fugir nua pelas ruas. Ele confirma que experimentou o orgasmo “como uma crise semelhante à epilepsia, agressiva e assassina como a raiva.”
Como explicar a origem deste violência? Beauvoir pretende que “no herói sádico, a agressividade do macho não é atenuada pela comum metamorfose do corpo no prazer; nem um só momento ele se perde na sua animalidade, permanence tão lúcido e tão cerebral que, em vez de o perturbarem os seus arrebatamentos, os discursos filosóficos são um afrodisíaco.” O outro torna-se um objecto à disposição, cuja consciência se possui através da posse da carne. E Blanchot acrescenta: “nos heróis de Sade, o prazer da humilhação nunca altera o seu auto-domínio e a abjecção enaltece-os.” A ideia de saber o outro gozar em conjunto impede os inefáveis encantos da dominação. O erotismo da vida real, ou imaginário, passou a ser um constante desafio intencional à sociedade, mergulhando paulatinamente no universo do crime e contrapondo o mal a todos as propostas de bondade. “O carrasco emprega a linguagem do poder, que o desculpa e o justifica. Por isso a atitude de Sade se opõe à do carrasco. Ao escrever recusando a batota, atribuía-a a personagens que na realidade só poderiam ser silenciosas, mas servia-se delas para dirigir a todos os homens um discurso paradoxal.”, explica Bataille, negando a possibilidade de se aliar as concepções sadianas a qualquer forma de tirania. Na voz da personagem Chigi, em Juliette, afirma: “Não é nunca na anarquia que os tiranos nascem. Vemo-los sempre crescer à sombra das leis ou aproveitando-as.” É a lei que torna o tirano possível e ele odeia-o. Só a ideia de um mal absoluto, Ser Supremo, pode derrubar a própria lei, superando-a em direcção à anarquia como instituição. Decidira fazer da sua intimidade uma ética singular, filosófica, ou mesmo ideológica: trata-se de mostrar que o próprio raciocínio é uma violência, que está do lado dos violentos com todo o rigor, toda a serenidade. Em carta dirigida à esposa, explica: “Estes princípios e gostos foram por mim levados até ao fanatismo e o fanatismo é obra das perseguições dos meus tiranos. Voluntarioso, colérico, arrebatado, extremado em tudo, de um desregramento de imaginação quanto aos costumes como igual nunca houve, ateu até ao fanatismo, eis como eu sou; e repito: matem-me ou aceitem-me assim, porque eu jamais mudarei”. Metamorfose operada e inimigo escolhido: os tiranos que o impediam de continuar a paixão do prazer. Obcecado pela sua força individual não é capaz de se aliar, nem à burguesia ascendente, que culpa pela opressão do povo, nem a este que lhe é estranho. Sente-se como único e sem semelhante. “Tinha de chegar à ideia de um delírio próprio da razão. No âmago do sadismo existe o plano de sexualizar o pensamento, de sexualizar o processo especulativo como tal, como dependente do Super-Eu!”, conclui Deleuze. Um delírio da razão absolutamente dionisíaco, por oposição a toda a ética apolínea.
Em 1769 nasce o segundo filho, Donatien-Claude-Armand de Sade e dois anos depois a filha, Madeleine Laure de Sade. Dir-se-ia novamente ajuizado: recebe uma homenagem da comunidade de Saumane, cuida dos jardins, lê e organiza representações de comédias no seu teatro – uma das quais de sua autoria. E, no entanto, a vida edificante parece estar-lhe vedada: em 1771 é preso por dívidas, numa reclusão de mais meia dúzia de meses. Quando sai em liberdade seduz a jovem cunhada, Anne-Prospère, professora e virgem, por quem parece ter tido uma inclinação sincera durante um curto espaço de tempo, já que no ano seguinte explode “o caso dos bombons cantariados”. Quarto prostitutas processam Sade e o seu criado Latour por flagelações com varas de urze alfinetadas nas pontas, sodomia e ingestão forçada de grande quantidade de cantária, em Marselha. Flagelava e fazia-se flagelar, assim como se fez sodomizar pelo criado, acostumado a prestar-lhe esse género de serviço. Por esse crime fora, juntamente com o criado, condenado à morte por contumácia, mas foge para Itália com a cunhada. Se Renée fechava os olhos às escapulidas do marido, o mesmo não fez a mãe que passou de protectora a perseguidora. Solicitaria ao rei Carlos Emanuel III que expedisse uma ordem de prisão contra o Marquês, mesmo sem acusação, incumbindo-se ainda das despesas do cárcere na fortaleza de Miolans. A cunhada acabaria o resto dos seus dias num convento. Em Abril de 1773, com a ajuda da esposa, foge da prisão e isola-se no seu castelo de La Coste, onde tenta realizar o sonho que povoou os seus livros: com a cumplicidade da marquesa, reúne diversos criados bonitos, um belo secretário iletrado, uma cozinheira e uma criada de quarto apetitosas, além de duas raparigas fornecidas por cafetinas, e dá largas à sua imaginação. Em 1775 novo escândalo: uma orgia envolvendo os empregados do castelo, Sade e a esposa, torna-se pública. As raparigas fogem e a criada de quarto retira-se para dar à luz uma criança cuja paternidade atribui ao patrão. Foge novamente para Itália. Em 1777 falece a mãe. Ele volta a França e é capturado em Paris e encarcerado no castelo de Vincennes, a 13 de Fevereiro, já que a sogra conseguira do rei uma carta de detenção por tempo indeterminado. Se Renée-Pélagie é o êxito do Marquês, a sogra simboliza a sua derrota. É contra ela que reclama mais irritantemente o veneno com que pretende infectar os seres vulneráveis. É difícil não a pressentir quando se analisa a forma como a maternidade é injuriada nas últimas páginas de A Filosofia Na Alcova: “Saúda aqui a malta, sua puta! Põe-te de joelhos diante de tua filha e pede-lhe perdão. Vós, Eugénia, aplicai duas boas bofetadas à senhora vossa mãe e obrigai-a a ultrapassar a soleira da porta com uns bons pontapés no cu!” Vai então começar uma nova fase. Durante 13 anos de cativeiro, em Vincennes, e depois na Bastilha, agonizará o homem e nascerá o escritor. A carne cede e passa a sublimar o jejum sexual nos prazeres da comida. Conta o criado Carteron que “comia por quatro”. Torna-se bulímico, mandando vir pela esposa exageradas doses de alimentos e engorda a olhos vistos. Se no processo de Marsellha o descrevem “de bela aparência, rosto cheio, estatura média”, ele próprio reconhecerá por esta altura: “Adquiri, por falta de exercício, uma corpulência tão grande que mal me posso mexer. Não há paixões que melhor se aliem à luxúria do que a bebedeira e a glutoneria”.
A partir daí só a literatura lhe permitirá o que a vida já não concede: agitação, desafio, sinceridade e o extase da imaginação. Escreve como come. Depois de vários títulos concebidos, em 1789 termina Aline et Valcour. Subleva os outros detidos colaborando activamente com os revolucionários e republicanos. É transferido, de súbito, para Charenton, na noite de 3 para 4 de Julho, por ter tentado amotinar os transeuntes gritando-lhes da janela: “Povo de Paris, estão a matar os prisioneiros.” Com a tomada da Bastilha os seus documentos e bens pessoais são roubados. Em 1790, no rescaldo da revolução, é libertado na Sexta-feira Santa e acredita ter chegado um tempo novo. A esposa reclama a separação, que ele concede, e inicia uma ligação à actriz Marie-Constance Renelle, que nunca mais o abandonará. É nomeado presidente da Section des Piques mas o idílio com a Revolução dura pouco. Como republicano exige um socialismo integral e a abolição da propriedade, embora se empenhe em conservar as suas terras e o solar. O mundo a que tenta adaptar-se é demasiado real, redigido por leis universais que considera abstractas, falsas e injustas. Quando em nome delas a sociedade se permite o assassínio, o marquês afasta-se com horror: o mal esvai-se quando o crime é provocado pela virtude ou por uma boa consciência. Na voz da uma personagem suspira por “um crime cujo efeito perpétuo agisse, mesmo depois de eu ter deixado de agir, de modo a não haver um único instante da minha vida em que, mesmo adormecido, eu não provocasse alguma desordem.” Julgar, condenar, ver morrer pessoas anónimas, não é para ele; nomeado membro do júri, de acusação defendeu sempre os réus. Recusara-se até a prejudicar em nome da lei a odiada ex-sogra e família, quando a sorte de todos estava nas suas mãos. E foi obrigado a demitir-se da Secção des Piques. Sobre o assunto escreveu a Gaufridy: “eles queriam que eu cometesse um horror, uma desumanidade: nunca assenti.” Esta atitude aparentemente contraditória indicia a falsidade dos mitos construídos aludindo à sua monstruosidade.
Continua a escrever sofregamente e em Dezembro de 1793 sofre nova detenção, acusado de moderantismo. Condenado à pena de morte é libertado após um ano e dez dias de reclusão, e sobre o facto comenta: “a minha detenção com a guilhotina debaixo dos olhos, fez-me cem vezes mais mal do que fariam todas as bastilhas imagináveis”. Dois anos depois encontramo-lo em Versailles onde vive de forma modesta. Vendidos ao desbarato todos os bens, depressa consome o proveito debatendo-se entre a miséria e a doença: “a morte e a miséria, eis a recompensa que tenho pelo meu intransigente apego à República”. Entretanto recebe um certificado de residência e civismo, mas no início de 1800 será hospitalizado “morrendo de fome e de frio” e ameaçado de prisão por dívidas. Publica oficialmente Oxtiem e Crimes do Amor e clandestinamente, A Nova Justine. E a 5 de Abril de 1801 é detido na editora Massé, onde apreendem a edição ilustrada em 10 volumes de A Nova Justine e também de Julliette. Permanece preso em Saint-Palagie, depois em Bicetre, tendo a família conseguido, dois anos depois, a transferência para o hospício de Charenton, onde passa a organizar espectáculos com os loucos. A sua companheira, a quem chama Sensível, vai também viver para o hospício, num quarto próximo do seu, fazendo-se passar por filha. As peças tornam-se atracção para as visitas da aristocracia parisiense. “Na vida quotidiana já só deseja paz. Aceita compor um improviso para celebrar uma visita do arcebispo de Paris; no Domingo de Páscoa distribui pão bento e recolhe esmolas na igreja da paróquia. O seu testamento prova que não renegou nenhuma das suas convicções; mas estava cansado de lutar”, conclui Beauvoir. Sob o olhar tolerante de Sensível, enamora-se da filha de uma carcereira, de 14 anos; mas é já uma paixão sem carne.
Em 1807 escreve Diários de Florbela. Os manuscritos deste livro serão, após a sua morte, queimados em praça pública pelo filho Donatien-Claude. Cinco anos depois publica A Marquesa de Gange e, no ano seguinte, com 74 anos, morre serenamente a 2 de Dezembro, vitimado por “uma obstrução pulmonar em forma de asma”, amado por essas duas mulheres com quem planeava produzir peças teatrais pornográficas quando saísse do hospício. Sobre a sua morte escrevera: “Uma vez fechada a cova plantem-lhe em cima bolotas, a fim de que com o tempo desapareçam da face da terra os vestígios da minha sepultura, tal como eu espero que a minha memória se apagará da lembrança dos homens” – e bem pode dizer-se que foi respeitada a sua vontade.
Ressonâncias do Sonho
Os diários íntimos perderam-se, queimaram-se os manuscritos, os seus livros foram proibidos. Foi pouco lido na sua época e assim permaneceu até ao século XIX. Em 1834 o Dicionário Universal usa o termo sadismo, significando: “aberração horrível do deboche; sistema monstruoso e anti-social que revolta a natureza”. Mas o nome tornar-se-ia famoso depois de usado pelo psiquiatra Krafft-Ebing num catálogo de psicopatias sexuais, em 1886. Mesmo assim é possível folhear obras minuciosas sobre “as Ideias e sensibilidade do século XVIII”, sem encontrar o seu nome. “Poderemos, sem renegar a nossa individualidade, satisfazer as nossas aspirações à universalidade? Ou é apenas pelo sacrifício das nossas diferenças que poderemos integrar-nos na colectividade? Esta questão interessa-nos a todos”, refere Beauvoir. Só depois do interesse de Apollinaire a obra adquiriu um lugar nas letras francesas. Há ainda quem o considere um percursor do estudo da sexualidade que teria influenciado as teorias de Freud. André Breton escreve no segundo manisfesto surrealista: “Sade é surrealista no sadismo” Mantém com Raymond Queneau em 1928 uma polémica sobre o autor e no ano seguinte com Bataille. Muitos outros escreveram sobre ele: Swinburne, Baudelaire, Éluard, Maurice Heine, Gilbert Lely, Jean Paulhan, Mandiargues ou Robbe-Grillet. E, com base na sua vida ou obras, uma boa dúzia de filmes foram produzidos, embora com narrativas pouco objectivas, cedendo muitas vezes a aspectos mitológicos. Os livros de Sade chegaram a ser julgados pelos tribunais franceses em 1950, sob a alegação de “afronta à moral e aos bons costumes”. Só sete anos depois o editor Jean-Jacques Pauvert o tirou da clandestinidade publicando as suas obras, apesar da censura ainda existente, o que lhe valeu um processo em tribunal que acabaria por vencer. A verdadeira consagração de Sade em França aconteceu apenas em 1990 quando as obras completas foram editadas pela prestigiada Pléiade. Actualmente, constata-se a sua integração sob a forma de mercadoria; bem visível nas comemorações do segundo centenário da morte a decorrerem no Museu d’Orsay, onde é de realçar um curioso aviso na entrada da exposição: “A natureza violenta de alguns trabalhos e documentos pode chocar alguns visitantes.” Jogada de marketing?
Sombra de Visionário
Seria Sade um visionário? é a questão que surge quando folheamos a imprensa diária ou assistimos a um noticiário na televisão. Frequentemente as temáticas ressoam a hermenêutica sadiana: pedofilia, sodomia, violações, tráfico de seres humanos, escravatura, lenocínio, violência doméstica, homicídios. Se, de súbito, alguém do século XVIII aterrasse por estas bandas pensaria que jornais e canais televisivos teriam Sade como director de informação. Mas, se refletirmos em realidades ainda relativamente ocultas, como os video-snipers, onde mulheres e crianças raptadas são torturadas e violadas até ao prazer final em que as assassinam realmente a tiro, e se nos concentrarmos um pouco tentando imaginar para quem são produzidos e realizados esses filmes, entendemos, pelos elevados custos de cada cópia, que se destinam a príncipes, magnatas ou outros elementos da sociedade auto-denominados VIP, e com naturalidade lembramo-nos de Sade. E se, continuando a esmiuçar o assunto, imaginarmos as festas de visionamento, os décors, o ambiente dos encontros e os locais – Ocidente?, Oriente? – ouvindo em fundo a constante propaganda político-religiosa, naturalmente lembramo-nos de Sade. A realidade social demonstra-nos nas suas várias formas de linguagem que a ficção foi longamente ultrapassada. Como superar a realidade? – é o desafio que se coloca. Na oposição por negação aos valores vigentes, Sade antecipou a dialéctica. Na luta para concretizar os sonhos, livremente, tornou-se um percursor do existencialismo. Na realização da arte, superando-a e fazendo da sua vivência uma forma de arte, anunciava uma premissa situacionista. Se na obra podemos sinalizar uma estrutura ética que privilegia abusadores, também nos é possível imaginar a sua inversão e o momento em que se realiza a vontade do escravo em tornar-se senhor (sugerida nas situações em que o herói sádico se autoflagela). Assim acontecendo talvez as premissas sadianas se transformassem num sistema filosófico-ideológico, de síntese harmoniosa entre Mal e Bem, em plena liberdade: tempo em que o universo de Sade se fundiria no espaço de Masoch. E o amor seria vivido em plenitude. A questão que fica por averiguar é a seguinte: será possível o sado-masoquismo?
Manuel Dias