Os Anonymous e a sociedade espectacular
No dia 5 de Novembro de 1605 reza a história que um soldado inglês católico, de seu nome Guy Fawkes, tentou fazer explodir o parlamento inglês para assassinar o rei James I e dar início a um levantamento católico conhecido como a Conspiração da Pólvora. Guy Fawkes não teve sucesso e acabou condenado à forca. Bem mais tarde, esta mesma personagem sinistra foi adoptada por Alan Moore e David Lloyd para a banda-desenhada V de Vendetta, que se tornou celebre após a sua adaptação ao cinema em 2006. Por alguma razão, Guy Fawkes tornou-se sinónimo de luta pela liberdade e até de um suposto ideal anarquista. Ele que serviu os desejos imperialistas dos reis católicos de Espanha, responsáveis por um dos maiores genocídios de que há memória num continente a que chamaram América e pela Inquisição, e que combateu a guerra dos oito anos contra os secessionistas holandeses. A razão pela qual um reaccionário católico é hoje elevado a símbolo revolucionário é para mim um mistério, ou quase.
No dia de ontem, 5 de Novembro, os Anonymous, que se tornaram célebres, entre outras coisas, pela adopção da máscara desenhada por David Lloyd para a banda desenhada V de Vendetta e pelos seus ataques informáticos a entidades governamentais e corporativas, celebraram a data, convocando manifestações em todo o mundo num movimento denominado Million Mask March. Por cá, fizeram-se manifestações em cidades como Lisboa, Porto e Faro, com pouca afluência e em que mais uma vez se afirmou a lenga-lenga da luta contra a corrupção, entre outras frases batidas, sem questionar que o abuso de poder só pode existir enquanto este for legitimado e que a corrupção é apenas um sintoma de uma doença com raízes bem mais profundas. Mas mais do que dar relevância às manifestações, que tiveram lugar em mais de 400 cidades e que contou com inúmeros participantes, aquilo a que me gostaria de referir é ao próprio fenómeno em si, em que a ficção deixa de ser uma representação da realidade para que esta passe a ser uma representação da ficção, dando-se uma inversão na representatividade.
Na parte final do filme V de Vendetta, e após um apelo da personagem V para um levantamento popular no dia 5 de Novembro contra um governo despótico, disseminando máscaras idênticas à sua entre a população, esta reage ao apelo e vê-se um enorme número de mascarados enfrentando a polícia e dirigindo-se para o parlamento que acaba por explodir conforme estava planeado. Se, de alguma forma, a personagem criada por Alan Moore e David Lloyd pode estar imbuída de uma aura revolucionária apelativa nos tempos que correm, a verdade é que esta não passa de uma ficção, ainda para mais assente num dado histórico que, como foi dito antes, mais do que ser revolucionário, é reaccionário. Essa imagem final do filme é agora, através desta Million Mask March, reencenada, com as devidas nuances, num palco que nada tem de ficção, sendo nada mais do que um produto de uma sociedade espectacular onde se perdem todas as referências históricas das lutas sociais de outrora. E se não está em causa, de facto, o valor do acto de sair à rua mascarado por se acreditar que dessa forma se pode ser uma pedra no sapato dos poderes instituídos, o facto é que isso é feito de uma forma em que a realidade se confunde com a ficção e em que, parafraseando Guy Debord, “o verdadeiro é um momento do falso”.
P.M.