O Amor, o Eu, e a máquina do Nós

15 de Março de 2018
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“A insurreição (…) é o momento em que se pensa reciprocamente que a melhor coisa que se pode fazer pelos outros é libertar-se a si mesmo. Nesse sentido, é «um movimento colectivo de realização individual».”

Ai Ferri Corti, Textos Subterrâneos, 2015

No artigo “O Romântico é político”, de Coral Herrera Gómez, traduzido e publicado na última edição do Mapa, é defendida a ideia de que a representação burguesa do amor reproduz os valores de uma sociedade patriarcal e capitalista, baseada na propriedade e na competição, e que a reinvenção da vida colectiva passa pela reinvenção do amor. Este é um contributo fundamental e que surge num momento particularmente oportuno. O texto propõe também a ideia de que este amor é individualista no sentido em que conduz ao isolamento das pessoas, organizadas em pares e remetidas à esfera do ‘lar’. Mas o individualismo não corresponde a este isolamento que nos pretende arrumar à sombra de uma percepão do amor baseada numa ideia de ‘casal’. A construção colectiva e solidária da vida é certamente contrária ao isolamento promovido pela idealização patriarcal e capitalista do amor, mas não é contrária a um entendimento de individualismo enquanto valorização da soberania do indivíduo. O isolamento que o amor normalizado e padronizado promove não é individualista, mas antes o seu contrário, já que assenta na sujeição de cada eu a um nós socialmente definido. Como pensar na construção solidária e partilhada da vida social e afectiva se não partirmos da escala do indivíduo livre e emancipado?

A representação burguesa do amor, associada a uma ideia tradicional de família e adequada à organização da vida em função da casa e do trabalho, não se limita a manter o status quo, inibindo a reinvenção das práticas colectivas ao predefinir papéis e modelos prontos a replicar e assim contendo a imprevisibilidade, mas inibe também a auto-construção do indivíduo na medida em que tende a anular a conquista individual da vida em função de um imaginado caminho a dois, que se quer auto-contido pela abdicação e pela dependência. Este disciplinar do amor não produz apenas um disciplinar das relações sociais mas também dos indivíduos. A representação burguesa do amor não se baseia apenas em contratos sociais como o casamento, a união de facto, ou a construção informal daquilo que culturalmente se entende por ‘casal’, baseia-se também em contratos individuais, entre o eu e o outro, e entre o eu e si mesmo, e é nessa medida que constrange o controlo de cada um/a sobre a sua própria vida enquanto projecto em aberto. O sujeito é um devir, é uma força em acção e não uma entidade estabilizada. A contratualização social e pessoal do amor implica a estabilização do sujeito enquanto elemento da máquina do nós, e este nós tanto se aplica à escala do social como das relações afectivas. Mas nunca há, verdadeiramente, um nós, e pretendê-lo é assumir a anulação de cada eu que se esfuma e indefine sob a totalidade abstracta de um nós idealizado.

A instrumentalização do amor pela ordem social só pode ser verdadeiramente posta em causa a partir da primazia da liberdade e da integridade individual. Para que o amor possa ser pensado enquanto motor de transformação das relações sociais, e não como tábua de salvação messiânica do indivíduo, é preciso começar por pensar o amor numa perspectiva baseada na soberania e na emancipação de cada eu na sua relação com diferentes configurações do nós. Não há colectivo livre sem o único que é cada eu livre, e a partilha de caminhos no amor implica essa mesma abertura e indeterminação que caracterizam a liberdade. Tal como a construção da autonomia em termos sociais começa pela construção da autonomia em termos individuais, também o amor companheiro começa pelo amor próprio, capaz de conquistar a vida e de abrir caminhos autonomamente.

 

Ana Lupim

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