Caldeira Negra: a sudoeste, semeia-se consumo e produção local
Com as restrições impostas pelo “estado de emergência”, o food truck da associação Caldeira Negra deixou de poder estacionar semanalmente no Mercado de Levante, em Lagos. Com os mercados fechados, era hora de reinventar formas de os produtores algarvios venderem alimentos diretamente ao público.
Joana e Manu dinamizam há dois anos esta cantina ecologista nómada, que quer contribuir para “alimentar o planeta com um respeito profundo à terra e a quem a trabalha”, construindo “ecosolidariedade e soberania alimentar”.
Ao Jornal Mapa, contam sobre a nova rede “Portugal Regional – open food network” – que estão a ajudar a desenvolver com gente de todo o sudoeste algarvio, para dinamizar compras diretas a produtoras e produtores. Como os legumes de qualquer horta saudável, ela cresce de baixo para cima, em cooperação.
O que motivou a iniciativa?
Em Lagos começaram por fechar os mercados e deixaram os supermercados abertos… O VIV’O Mercado, de produtos biológicos e artesanais, e o Mercado da Reforma Agrária [criado em 1974 para apoiar os pequenos agricultores], com imensos pequenos produtores, muitos deles idosos, com poucos produtos mas de muita qualidade, que encontravam ali alguma entrada de dinheiro.
Foi uma grande revolta. Não fazia sentido fecharem o mercado e deixarem as pessoas sem alternativa. Não só porque muitos de nós íamos ter dificuldades financeiras, mas também porque nos supermercados as pessoas têm mais hipóteses de ser contaminadas. Estes continuavam a funcionar sem se usar luvas ou máscaras. É uma loucura: as multinacionais e grandes superfícies vendem a gente apavorada, os mercados ao ar livre de apoio aos pequenos fecham…
Muitos produtores ficaram em situações muito más. Sobretudo os mais idosos. Para além do medo de serem contaminados, têm dificuldade em comunicar com o exterior, usar internet, comunicar moradas…
Em que consiste o projeto que estão a ajudar a desenvolver?
Nós tínhamos já uma lista bastante boa de produtores. Agora tivemos finalmente tempo para escrevê-la e partilhar…!
Juntámo-nos a uma rede de pessoas de vários horizontes, e estamos a fazer uma base de dados com os contactos de pequenos produtores de várias regiões que querem vender diretamente ao público. Inclui-se as preferências de cada agricultor: seja entregas seguras de cabazes a pessoas confinadas, ou que não querem ser contaminadas, seja abertura ao público das próprias quintas. Acabámos a lista de Lagos, estamos a avançar na zona de Faro, Odemira e Aljezur, depois queremos fazer para Lisboa, Leiria, zonas que visitámos com o nosso food truck associativo.
Estamos a fazer um formulário e a falar diretamente com cada produtor, para que se sinta na segurança de não ser contagiado nem contagiar os outros.
Está-se a preparar um site (https://portugalregional.org/), e a trabalhar na parte legal de tudo isto.
Como tem corrido?
É um fenómeno muito forte: a situação está-se a inverter. Os produtores neste momento estão a escoar tudo, as pessoas estão a consumir imensos legumes e muito mais produtos locais. E as listas ajudaram.
Acho que muitas pessoas se dão conta de que enfiar-se num supermercado é uma loucura e descobrem como é melhor comprar diretamente aos produtores. Quando vais a uma quinta estás num espaço aberto, dão-te o teu cabaz, podes falar à distância à vontade, é muito mais saudável, seguro e sensato do que as medidas governamentais.
Está-se a inverter a lógica de importar e a tentar apostar na produção local. Os políticos é no discurso, nós é na prática.
Como se organizam?
Temos reuniões à distância uma vez por semana. Usamos servidores, software e aplicações alternativas, como Nextcloud ou Jitsi, para mantermos a autonomia. Muitos de nós estão a aprender a usar estes meios alternativos e descentralizados.
Há um grupo “scouts”, um grupo “base de dados”, outro “website”… As reuniões são abertas a quem se quiser juntar. Estão a correr bem, há um trabalho de facilitação e de seguimento, e estamos a encontrar bastantes afinidades. Estamos a escrever um conjunto de reivindicações, uma posição coletiva.
Só é pena ser muito em inglês, mas há muitos ingleses e alemães no projeto.
Têm tido algum problema por causa das restrições impostas pelo “estado de emergência”?
Os controlos na estrada dificultam imenso os produtores a escoarem os seus produtos. Têm de ter faturas já prontas, se transportam queijo, legumes… É muito difícil para muitos produtores, e vai sê-lo sobretudo no caso de o confinamento durar mais tempo.
Mas há solidariedade, há produtores que tomam os produtos de outros, as pessoas correm riscos.
A ideia em Lagos é tentarmos criar uma forma de transporte associativo.
Como é que o vosso próprio projeto está a subsistir nestes tempos incertos?
Isto tudo está a ter um impacto enorme. Uma associação não tem direito às ajudas governamentais.
Aceitamos encomendas, vamos buscar legumes para amigos da associação, distribuímos cabazes solidários. Com medidas de higiene excecionais e cuidados a redobrar para evitar contágio.
Estamos interessados em que isto seja um passo para criar uma base de dados de troca de serviços e bens. Para, no caso de a economia colapsar completamente, termos uma forma de solidariedade e de intercâmbio entre as pessoas: estou a precisar de um carpinteiro mas não me pagam há três meses, então posso fazer uma troca.
Como apoiar? Há sempre forma de ajudar de perto ou à distância. Basta contactar por email a Caldeira Negra: caldeira@disroot.org. Para conhecer ou apoiar o projeto Portugal Regional: portugalregional@protonmail.com
Esta é a segunda publicação da série #PandemiaSolidária.