Acendemos uma pequena Luz

Relato do Encontro Internacional político, artístico e desportivo que juntou mais de 7000 mulheres em Chiapas, México.

23 de Janeiro de 2019
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Mais de 7000 mulheres encontraram-se de 8 a 10 de Março de 2018 nas montanhas de Chiapas. Este foi o primeiro encontro internacional convocado pelas zapatistas, no qual participaram mais de 2000 mulheres Zapatistas e 5000 mulheres de mais de 28 países.

A 7 de março de 2018, a três horas de San Cristobal de las Casas, o Caracol de Morelia abre as suas portas para os milhares de mulheres que chegam em autocarros de todo o país. Em cima do portão, vigiado por mulheres do Exército Zapatista de Libertação Nacional (ELZN), está pendurada uma enorme faixa com a frase «Bem-vindas, mulheres do mundo» e em baixo outra faixa com a frase «proibido homens». Foi decidido colectivamente entre as zapatistas que os homens não podem entrar porque é importante haver encontros só entre mulheres, não para ser separatista, mas para criar uma oportunidade de conviver num espaço onde se organizem e se confrontem problemas que afetam unicamente as mulheres neste mundo patriarcal. «Pensamos que só assim, entre mulheres, podemos falar e ouvir, olhar, festejar sem o olhar dos homens, não importa se são homens bons ou homens maus». Este encontro foi organizado por assembleias constituídas unicamente por mulheres. Porque, como dizem elas, «Não é trabalho dos homens nem do sistema dar-nos a liberdade. Pelo contrário, o trabalho do sistema capitalista patriarcal é manter-nos dominadas. Se queremos ser livres, temos de conquistar a liberdade nós mesmas, como mulheres que somos». O objectivo do encontro foi partilhar a experiência de lutas contra os «maus governos que, não só nos utilizam, nos reprimem, nos roubam e nos desprezam como seres humanos, mas também que nos reutilizam, nos reprimem, nos roubam e nos desprezam por sermos mulheres».

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Durante três dias, mais de 7000 mulheres discutiram sobre saúde, educação, lesbianismo, racismo, etc., mas sobretudo falou-se da violência de género e da violência de estado. Desenvolveram-se mais de 180 workshops e debates, jogou-se futebol e basquetebol, viram-se obras de teatro, falou-se e pintou-se em conjunto. O encontro foi aberto pelas mulheres zapatistas com a apresentação dos 5 caracoles (centros administrativos do território e comunidades zapatistas) e da história de como, em cada um, começou a organização entre mulheres. A Insurgente Erika iniciou o discurso sublinhando que elas, mesmo não tendo os estudos e talvez não tendo lido tantos livros como as mulheres da cidade, têm tanta raiva e tanta coragem como todas as que sofrem chingaderas, porque vivem o desprezo, a humilhação, as burlas, a violência, os golpes e as mortes por serem mulheres, por serem indígenas, por serem pobres e agora também por serem zapatistas. E esta exploração e esta violência não são feitas unicamente por homens, senão também por mulheres que dela participam.

Neste encontro, elas não querem julgar nem ser julgadas, nem pediram que lutem por elas, assim como elas não lutaram pelas outras. Afirmaram que existem muitas diferenças entre as lutas em várias partes do mundo, mas que uma coisa é certa: este «pincho sistema» capitalista existe em toda a parte. E que todas devem lutar contra um sistema que faz crer e pensar que as mulheres valem menos.

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No México vivem 15 milhões de indígenas que hoje em dia sofrem discriminação, enfrentam a pobreza, o difícil acesso à saúde pública, a falta de alimentos e o ensino institucional, que as educa a abandonar por completo o seu território, a sua cultura e a sua identidade. Um território estatal em que já 7,8% está em mãos de empresas mineiras ou de empresas dedicadas à exploração de terras. Muitas vezes estas terras pertencem a comunidades indígenas que acabam por ser expropriadas. Também em outras zonas de interesse turístico, as terras comunitárias (terras sem proprietário para uso das comunidades) são vendidas pelos municípios e pelos governos corruptos a investidores estrangeiros. A própria população indígena é afastada dos olhares dos turistas. Este encontro de mulheres abriu a possibilidade de organização e partilha de táticas de luta entre as diferentes comunidades indígenas e outras partes do mundo.

Muitos debates focaram-se na auto-organização e em como recuperar velhos conhecimentos de maneira a afrontar um sistema neoliberal. Deu-se grande importância e voz às mães em luta cujos filhos e filhas foram assassinadas ou estão desaparecidas por causa de um estado que actua baseando-se na opressão, na criminalização, na violência e na morte.

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Mais de 10000 mulheres foram mortas nos últimos 5 anos no México, mas menos de 20% destes casos foram classificados como feminicídios. A maior parte dos crimes ficam por resolver, provavelmente, porque não é do interesse do estado. O feminicídio define-se como um acto de violência extrema contra as mulheres, que entra dentro de um conceito mais vasto que é a violência de género.

«O feminicídio não é exclusivamente um acto homicida, mas estende-se também a um contexto mais complexo, que inclui a trama social e política que o encobre e que fornece os mecanismos para que este permaneça impune» (Julia Monarrez, 2009). Uma sociedade patriarcal que, através de estruturas, propaganda, rituais, tradições e ações quotidianas que reproduzem a dominação constante sobre as mulheres, faz com que aumente a violência de género, que serve ao próprio sistema para se manter em pé. O feminicídio é um crime de ódio: matar uma mulher pelo facto de ser mulher. Esta violência extrema estendeu-se a todo o país. Quase 7 mulheres são assassinadas por dia no México. O feminicídio segundo a lei: «Comete o delito de feminicídio quem, por razões de género, prive uma mulher da sua vida»; mas só 11 dos 32 estados da federação juntaram outras 7 razões pelas quais se define o feminicídio. Aliás, ainda há estados que aplicam «crime passional» em vez de feminicídio, em que a agressão é considerada como sendo feita sob um estado de «emoção violenta». Muitos feminicídios são cometidos por maridos ciumentos ou familiares e frequentemente são escondidos como suicídios. Esta impunidade está estreitamente ligada ao violento e corrupto governo Mexicano. As famílias que pedem justiça e o conhecimento da verdade encontram muitas vezes razões para desconfiarem das autoridades. No encontro, as familiares que lutam sustentam que nas zonas mais tensas, onde a taxa de feminicídios e de desaparecimentos é alta, como por exemplo na Ciudad Juárez, estes crimes estão relacionados com os grandes projetos governamentais ou estrangeiros de exploração de terras, como as indústrias mineiras ou as petrolíferas. É uma estratégia para aterrorizar a população em zonas economicamente débeis, para militarizá-las e posteriormente desalojá-las. Assim como o número de feminicídios, também o número de desaparecidas é altíssimo, igualmente encoberto pelo governo Mexicano. Entre elas, muitas ativistas e estudantes que são brutalmente assassinadas pela polícia federal, nacional ou pelos próprios militares. Estavam também presentes no encontro as mães dos 43 estudantes desaparecidos em Aotzinpa em 2014. Sabendo perfeitamente quem cometeu estes crimes, o governo quer encerrar as investigações e ainda ameaça as famílias que não se calam enquanto não se souber a verdade. Todas elas, juntamente com outras famílias de outros países, como por exemplo as «madres de mayo» da Argentina, prometeram encontrar-se no próximo ano.

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Em todos os debates e workshops estavam presentes pelo menos 10 zapatistas de maneira a levar os conteúdos às suas comunidades. O encontro em si estava muito bem organizado e não faltou nada, desde a comida até às casas de banho. Ao redor do caracol estava o ELZN, para vigiar a zona. Infelizmente, aconteceu uma companheira curda, algumas argentinas e também algumas gregas terem sido impedidas de entrar no México, pelas autoridades mexicanas no aeroporto, por irem participar no encontro.

“Foi um encontro muito especial, carregado de emoções
Com uma energia única de 7000 mulheres que LUTAM”.

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No primeiro dia, as mulheres zapatistas surpreenderam-nos brutalmente. Cada uma com uma vela na mão, 2000 mulheres em fila, deslumbraram-nos com estas palavras:

Acendemos uma pequena luz.
Leva-a, irmã e companheira
Leva-a quando te sentes triste,
quando tens medo,
quando sentes que é muito dura a luta e a vida.
Leva-a no teu coração,
nos teus pensamentos,
no teu interior,
e não fiques com ela, irmã e companheira,
mas Leva-a às desaparecidas
Leva-a às assassinadas
às prisioneiras
às violadas
às culpadas
às abusadas
Leva-a a todas as violadas de diferentes modos
Leva-a às imigrantes
às exploradas
Leva-a aos mortos
Leva-a e diz-lhes a todos e todas que não estão sozinhas,
que lutarás por elas
que lutarás pela verdade e pela justiça
e que vale a pena a sua dor
que lutarás tão forte que a sua dor não se repetirá em nenhuma outra mulher.
Leva-a e transforma-a em raiva em coragem e em decisão
Leva-a e une-a com outras luzes
Leva-a
E se continua nos teus pensamentos que não haverá nem justiça, nem liberdade
no sistema capitalista patriarcal
então voltaremos a encontrar-nos para incendiar o sistema
e talvez te juntes a nós
Cuidado que ninguém apague este fogo
até que não fique nada mais que cinza.

Texto e fotografias de Mimic

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