Aldeia do Vale: Viver a vida, mudando o mundo
Em plena região saloia, na fronteira entre os concelhos de Sintra e Mafra, renasce a Aldeia do Vale. O Projecto Agroecológico ali instalado há cerca de dois anos, alberga um punhado de gente com ganas de mudar o mundo, simplesmente a viver a vida. Falámos com a Sílvia Floresta, pioneira da permacultura no país, sobre esta eco-aldeia dedicada ao estudo de formas de vida mais íntegras, simples e sustentáveis.
Devolver ao campo a vivacidade
«A vida é o que te acontece enquanto estás ocupad@ a fazer outros planos», lê-se numa tela pendurada no andar térreo que já foi o quarto das vacas na vida anterior desta Aldeia do Vale. Noutros tempos, a «loja» – abrigo das ruminantes, cujo leite seria uma das principais fontes de sustento da aldeia – servia também para aquecer a casinha de cima, que é agora um espaço de habitação comum. Vê-se por ali incenso, mantas, pilhas de livros e paletes que servem de estrado para o descanso campestre. Um rolo caça-moscas adesivo, carregado de insectos silenciados, balanceia no fresco do espaço ao ritmo lento das horas quentes da manhã, enquanto lá fora, ainda à sombra, fardos de palha dispostos em círculo rodeiam vestígios de uma fogueira central.
Apesar do Sol forte, o luar reflecte nos olhos enormes de uma coruja pintada na parede exterior da oficina de carpintaria. Também brilha o olhar do Orlando Pereira, um dos mentores do Projecto Agroecológico Aldeia do Vale, quando nos abre a porta do casebre recentemente recuperado e equipado com ferramentas para os trabalhos de regeneração rural.
«Este lugar estava semi-abandonado quando aqui chegámos», conta-nos a Sílvia Floresta, que juntamente com o seu companheiro, em Dezembro de 2015, encontrou ali «um lugar triste», marcado pelo vazio de um longo tempo de dormência, mas ainda assim a pulsar potência para acolher uma nova vida. «Apaixonámo-nos pelas paisagens do oeste, pelas pessoas, pela cultura, e falámos com os proprietários que nos alugaram espaços para podermos começar a desenvolver o projecto.»
Hoje a aldeia conta com cinco residentes permanentes (um terço dos habitantes de outrora), mas por ali já terão passado mais de 1000 pessoas nos últimos dois anos, entre voluntários, formandos e formadores em temas e práticas da permacultura.
O centro de estudos entrou em funcionamento em Maio de 2016, e desde então tem dinamizado dezenas de cursos sobre aquilo que a Sílvia resume como «design sustentável para ambientes humanos» – em termos latos, permacultura.
Energias «apropriadas», horticultura, agroflorestas, construções naturais, e tantos outros conhecimentos, desde a transformação e preservação de alimentos à preparação de detergentes naturais, que têm uma aplicação prática no dia-a-dia das pessoas envolvidas na Aldeia do Vale – «cada uma com a sua área de trabalho», o que lhes permite melhorar e erigir novas infraestruturas, mas também oferecer formação especializada em áreas diversas. Resgatar os saberes e ofícios tradicionais da região é também um objectivo do projecto, através de oficinas como a de costura de aventais de colheita ou a de calçado usando técnicas ancestrais.
«Tu és um bosque de alimento, eu sou uma agrofloresta»
Entre espaços alugados, cedidos e comprados, o projecto Aldeia do Vale estende-se por uma área de cerca de 2,5 hectares, e está em expansão. «Faz hoje uma semana que nos foram cedidos mais terrenos», conta-nos a Sílvia enquanto enumera as zonas que compõem a moldura do projecto: hortas, viveiro, estufa, zonas de campismo, dome para aulas, sala comum, espaço social…
Passa uma galinha lampeira que parece querer mostrar o caminho que vai até ao socalco da horta. Passamos por uma banheira completa instalada entre paredes de adobe, com um sistema de aquecimento das águas a lenha e uma janela «com vistas para o mar» – verde, indomável, silvestre.
Subimos mais três degraus de terra, por entre canas e bananeiras, e a Sílvia aponta para lá para baixo, perto de onde a vinha cresce. Diz que estão a planear por ali «um misto de agrofloresta com bosque de alimento». A conversa prossegue até à estufa, não sem antes passar pelas extravagantes camas de cultivo que congregam uma balbúrdia de flores, couves, saladas, cucurbitáceas, aromáticas, selvagens, cobertura de palha e apontamentos de pequenos charcos.
«Imagina que nós as duas somos pintoras, e tu és uma pintora freestyle… tu pegas numa tela e pintas aquilo que te apetece. E eu sou uma pintora mais metódica: pinto uma natureza morta, janelas, estendais, tudo certinho. Tu és um bosque de alimento, eu sou uma agrofloresta.»Da alegoria sublima-se a vontade de experimentar a aplicação de técnicas mistas que permitam optimizar o potencial produtivo das áreas, tanto horizontal como verticalmente, contribuir para a regeneração dos solos e para o resgate de variedades autóctones, e também promover a geração de uma economia local. E a Sílvia continua, com o seu jeito natural de pedagoga: «um bosque de alimento imita uma floresta natural, com trilhos, vários estratos e espécies maioritariamente perenes… Olhas à volta e parece uma floresta normal, só que tem mais de 80% de espécies comestíveis. Uma agrofloresta é pensada para produção. Usa linhas de nível, tem padrões de cultivo que se repetem, e diferentes estratos também, mas mistura espécies perenes (como árvores de fruto) com hortícolas sazonais. A agrofloresta é um tipo de produção pensada para a venda, para criar uma economia, enquanto que o bosque de alimento é pensado para o consumo da casa, para o projecto.»
Noutros tempos, o lugar sobrevivia do leite de vaca e cereais para pão, produzidos localmente e vendidos nas aldeias próximas. Hoje, «o projecto depende de nós para funcionar a nível financeiro». Têm garantido a sua resiliência através das acções de formação, serviços externos de design em permacultura, e também da venda de produtos de produção própria e de outros produtores associados, expostos na lojinha à entrada da aldeia (sabões e detergentes ecológicos, produtos de cosmética natural, licores, desidratados, colares, brincos, sapatos…).
Apesar de ainda não ser totalmente auto-sustentável, o objectivo é que a Aldeia do Vale o venha a ser, principalmente em termos energéticos, no que toca a água e a electricidade. «Para muitos dos outros recursos [que precisamos], podemos sempre envolver a comunidade vizinha, gerando uma economia local.» No processo de repovoamento, apontam as boas relações com a vizinhança e os proprietários como chave: «gostam do projecto e conseguem rever-se em imensas coisas que fazemos (…) a comunidade local apoia-nos imenso com recursos e amizade.»
«A beleza está nos olhos de quem observa»
O que à primeira vista parece apenas ser um pequeno núcleo familiar a viver a sua vida, numa aldeia em processo de regeneração lenta, onde não deixa de persistir uma certa estética de estaleiro de obras em curso, revelar-se-á, afinal, a promessa de um desígnio maior: tão-só querer mudar o mundo.
«Queremos mudar as pessoas e a maneira como olham para a vida, mostrar que é possível viver de acordo com aquilo em que acreditamos, independentemente da área que estudamos ou trabalhamos.» Falamos do primeiro de 12 princípios da permacultura, «observar e interagir», e também do último, que se preocupa com a capacidade de resposta às mudanças – ou da visão de como as coisas serão no futuro. «O nosso objectivo é não só espalhar as sementes daquilo em que acreditamos, como construirmos um local de exemplo de todas essas técnicas que usamos para podermos ter uma vida mais sustentável.»
Recolhemos à sombra de uma figueira majestosa. Tentamos definir o que é viver em harmonia. Lá ao fundo, o Orlando regressa do ribeiro com o seu jeco, que parece que tem capacidades sobrenaturais de comunicação não-verbal com os animais que vão para o pasto. Da janela onde alguém cozinha, ouve-se passar a ♪coruja, caçadora de sonhos♫ dos companheiros do Vale, Terra Livre. Chegou a hora de nos lambuzarmos com as diferentes receitas de pesto que estiveram a experimentar.
O Projecto Agroecológico da Aldeia do Vale integra o núcleo ambiental da Associação Cultural Circuito Explosivo. A Aldeia aceita voluntários entre Março e Outubro, «desde que tenham frequentado e concluído com sucesso um curso certificado de design em permacultura», condição que pretende garantir que quem aparece com vontade de viver e trabalhar já tem os conhecimentos básicos necessários para agir, mas também um bom pretexto para espoletar uma rede informal, invisível, de pessoas ligadas à permacultura e à agroecologia que por ali passam vindas de vários pontos do país.
Mais info:
https://www.aldeiadovale.com/
https://www.facebook.com/aldeiadovaleagroecologia/
Texto e fotos de Sara Moreira [saritamoreira@gmail.com]