Recriar o Legado a partir das Periferias

17 de Setembro de 2016
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Vencer nos Jogos Olímpicos, a máxima aspiração para um desportista, não é fácil. É preciso tempo, sacrifício, disciplina, força de vontade, talento e sorte. Difícil, mas possível. Todavia, vencer os Jogos Olímpicos, é possível?


As Olimpíadas, como qualquer megaevento desportivo, são um
grande business e uma oportunidade de desenvolvimento urbano. As performances dos atletas e as competições desportivas (se não pelo valor dos bilhetes) são quase esquecidas para deixar espaço à máquina de produção: a cidade olímpica. Alimenta-se nas últimas décadas a ideia de que as Olimpíadas são uma oportunidade para concretizar grandes intervenções de regeneração urbana (segregadoras) e de mobilidade (hiper-faturadas) que assumem, no final das contagens, um papel central no processo de designação. Em 2003 a Carta Olímpica formalizou o conteúdo da palavra “legado”, definindo como missão olímpica o feito de ‘promover junto das cidades e países anfitriões o legado positivo dos Jogos Olímpicos’. A palavra é um vírus, dizia William Burroughs, pois trava o pensamento dentro da linguagem, construíndo um espaço onde o que é possível dizer e pensar fica delimitado. É deste modo que o legado funciona, isto é, definindo o horizonte de sentido no qual a relação entre a cidade e o evento é articulada.

Resistir aos Jogos Olímpicos significa, primariamente, perfurar este horizonte. Tornar clara a insubsistência deste anunciado legado futuro. A política de propaganda que gravitou em redor, não apenas dos Jogos Olímpicos em 2016, mas também da Copa do Mundo em 2014, pôs os cariocas a viver numa falha temporal orquestrada para ofuscar sempre mais esta insubsistência. Não é por acaso que um dos maiores “legados” das Olimpíadas, o recém-nascido Museu do Amanhã, dentro do Porto Maravilha, tem um nome que nega um passado assombroso (o feito de ser erguido num dos maiores portos de atraque de navios escravos das Américas) em prol de um futuro de criatividade e sucesso no qual parece sempre mais difícil acreditar.

É certo que sempre houve uma relação entre protesto e Jogos. Todavia, só nas últimas décadas o protesto, ao invés de usá-los como palco de expressão, se virou explicitamente contra os Jogos. Em lugar nenhum como no Brasil, e mais explicitamente no Rio de Janeiro, tal aconteceu. Em 2010, como resultado das mobilizações urbanas que animaram o Fórum Social Urbano Rio em todo o Brasil – um fórum alternativo from below ao UN Habitat World Urban Forum – foi criado o Comité Popular Copa e Olimpíadas Rio. Impulsionados por esta iniciativa, outros comités foram surgindo em todo o país, dando vida à ANCOP – Associação Nacional dos Comités Populares. Pela primeira vez na história da Copa do Mundo, criou-se uma resistência em escada nacional à FIFA que conseguiu – através do trabalho conjunto dos comités e de numerosos media ativistas e observadores independentes – desencadear um processo de denúncias nos media do mundo inteiro, e que teve o seu apogeu no julgamento e nas demissões de Blatter em Maio de 2015. O movimento NO COPA foi tão grande e tão diferenciado que teve a capacidade – e penso que seja este o seu maior legado – de ativar pessoas dos mais diferentes backgrounds, oriundos dos mais diferentes ambientes, expressando a própria vontade de sair à rua de formas diferentes. Se as reuniões do Comité Popular Rio eram principalmente marcadas pela participação (extensa) de representantes de sindicatos, partidos, académicos, estudantes, ONGs e movimentos sociais organizados em escada nacional (a maioria parte do inativo Fórum Estadual de Reforma Urbana), as manifestações na rua surpreendiam pela diversidade da multidão de diferentes expressões.

O comité não foi o único exemplo de resistência, nem o mais importante. O mérito do Comité foi o de ter uma maior estabilidade organizativa, capacidade técnica e estrutura económica para produzir atos, relatórios, memória escrita e vídeo, assim como dossiers válidos, produzidos desde 2011, e numerosas publicações, todas disponíveis online.

O que aconteceu depois de a Copa 2014 apagar as luzes foram acontecimentos muitos sérios dentro do panorama político social brasileiro. Com a chegada das Olimpíadas o Comité, muito reduzido em comparação ao que era em 2010, pareceu ter aprendido com o encontro com realidades e experiências diferentes vivenciada nas ruas do Rio em 2014 e começou a abrir-se como um espaço, real e virtual, de convergência entre várias instâncias contra o processo de eventificação da cidade: movimentos sociais, ONGs, comunidades atingidas, pesquisadores, jornalistas, ativistas, académicos e alguns artistas. A sua atividade focou-se contra os Jogos através da campanha dos Jogos da Exclusão, assim chamada em resposta à declaração de Thomas Bach, presidente do Comité Olímpico Internacional, que definiu os Jogos do Rio como ‘os mais inclusivos da história’. De modo a perceber as motivações desta campanha, o dossier publicado pelo comité no final do ano passado oferece um resumo útil.

Mais do que inventariar as várias atividades e resultados que a campanha realizou, interessa neste artigo evidenciar o modo como a sua estratégia conseguiu emancipar o conceito de legado da retórica olímpica e assim reconfigurá-lo, argumentando, não só num sentido opositivo, mas também construtivo de uma visão alternativa da olimpíada e da cidade em geral. Isso foi possível através de uma estratégia tripartida em três vetores de ação.

Primeiramente, a pesquisa critica, na qual foram utilizadas várias ferramentas como as investigações, os debates, as conversas, as entrevistas e os dossiers. Por um lado, denunciando gastos, corrupção e subornos, securitização, privatização, comercialização, remoções, danos ambientais, exclusão social, elitização do desporto, exploração do trabalho, etc. Por outro, conectando criticamente estes pontos para fornecer uma chave de interpretação que permita compreender a violência do megaevento além da dimensão contingente, ou seja, em relação à dimensão sistémica do desenvolvimento urbano contemporâneo. Deste modo, foi mostrado que os megaeventos não são simplesmente exceções mas, mais precisamente, explicitações do processo global de urbanização neoliberal, ou seja, exceções que confirmam a regra neoliberal.

Secundariamente, a contra-narração como uso estratégico dos media, através dos media tradicionais, social media e media-ativismo. Isto permitiu simplificar e comunicar eficazmente os resultados da pesquisa, desenvolvendo uma contra-narração no que diz respeito à retórica oficial de celebração nacional e o discurso acriticamente positivo sobre o ‘legado’. Assim foi fraturado o monopólio simbólico da retórica olímpica e também quebrada a atmosfera de orgulhoso otimismo em redor dos Jogos.

Terceiramente, o suporte direto e indireto às comunidades atingidas pelos efeitos negativos da Olimpíada, fornecendo-lhes visibilidade através de espaços virtuais e reais de modo a que pudessem comunicar a própria experiência. Houve casos de sucesso, pequenos mas significativos. Além disso, isto forneceu ao processo de resistência uma dimensão diretamente ativa e ativista, integrando o contributo fundamental dos ‘mais excluídos’ entre o processo de rearticulação do legado olímpico.

No fim, fica a questão, o comité venceu os Jogos? Uma coisa parece certa. Como nos diz Orlando Santos, professor do IPPUR-UFRJ e membro do CPCO, sem resistência os efeitos negativos do evento teriam sido muito mais evidentes. Além disso, a resistência não foi só disruptiva, mas também produtiva, por um lado explicitando o dissenso difuso contra um modelo excludente de desenvolvimento urbano e, por outro, mostrando um modelo diferente através da explicitação da própria experiência. A materialização desta atmosfera de dissenso numa experiência concreta de luta já tem efeitos. Localmente, como Jules Boykoff e Dave Zirin escrevem, fornecendo um mapa da resistência a outras comunidades atingidas. Globalmente, fraturando o consenso global em redor dos Jogos e dos seus supostos efeitos positivos, que já levou cidades como Hamburgo, Boston, Oslo, Estocolmo e Cracóvia a retirar a candidatura olímpica pela falta de suporte popular.

Claro que isto não é suficiente para celebrar. Os efeitos negativos dos Jogos ficarão muito tempo na cidade e o comité agora encara o desafio mais complicado: a reorganização após o desaparecimento do ‘inimigo’ comum. O caminho é longo. Criar um modelo diverso de Jogos Olímpicos é difícil, mas hoje, talvez pela primeira vez, para alguns parece possível. Não surpreende que isto aconteça no meio de um dos Jogos mais controversos da história. Afinal, como dizia Deleuze, ‘se um criador não é agarrado pelo pescoço por um conjunto de impossibilidades, não é um criador. Um criador é alguém que cria suas próprias impossibilidades, e ao mesmo tempo cria um possível’.

Talvez a coisa mais importante seja reconhecer que estas três frentes – pesquisas, contra-narração e suporte – não se criaram apenas “por fora”. E’ preciso reconhecer a existência de um considerável esforço proveniente por dentro, por parte de sujeitos periféricos, residentes nas favelas do Rio, integrantes (ou não) de movimentos sociais que de forma autónoma e muito resistente tiveram – e continuam a ter – a capacidade de criar as ferramentas para movimentos como o Comité serem possíveis. Numerosos são os debates, as conversas, as entrevistas e encontros organizados fora da zona sul do Rio de Janeiro e das suas universidades. Numerosos os cineastas, videomakers, jornalistas comunitários que estão dia após dia oferecendo as melhores e verdadeiras coberturas à dura realidade da vida fora do perímetro da cidade Olímpica. Talvez estes grupos independentes sejam o maior legado dos megaeventos que têm martirizando o Brasil e especialmente de forma bárbara as suas comunidades nos últimos anos.

Acreditamos que este é um ponto importante a ser sublinhado também à luz das diferentes posições políticas assumidas por representantes das comunidades carentes face à atual situação política brasileira. Durante os Jogos, duas almas do protesto cruzaram-se continuamente. Por um lado, com os protestos individuais (gritos, cartazes) contra Temer. Por outro, com os protestos organizados explicitamente contra os Jogos, frequentemente com a presença de comunidades locais cujo desespero em relação às próprias condições de sobrevivência, ligadas à completa negação da própria existência por parte dos poderes políticos, não pode deixar de ter como consequência uma maior e consciente tomada de posição.

Laura Burocco, Andrea Pavoni

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