Desarmemos a polícia

21 de Novembro de 2015
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Nobel-Sport-4«O que a mensagem omite é que para o poder, o caos organizado que dizem que é preciso paralisar não tem lá grande coisa a ver com o fantasma reinventado de Ben Laden, mas focaliza-se em todas as formas de viver, de morar, de conviver, de se organizar, que escapam às tabelas analíticas da actualidade»

« Analisar e estudar o funcionamento da polícia, assim como da justiça, encontrar as suas falhas e comunicá-las, saber o que eles comem, como se deslocam, quem lhes fornece as armas e como, são várias das questões sobre as quais desejamos reflectir para procurar formas de agir. Conhecer as suas falhas para assim podermos, no momento oportuno, diminuir os danos desta indústria.»

 

Depois dos acontecimentos de Paris falar de terrorismo e de repressão policial tornou-se um tema que, apesar de evidente e vivido no quotidiano de cada um, toma qualquer interlocutor como refém desse discurso sitiado que impõe que vejamos como polos opostos essas manifestações de horror. Mas, ao longo de 2015, a sucessão de vários episódios em França colocara já em evidência como estes se alimentam mutuamente e dão corpo a um Estado de emergência permanente. Nesta estratégia alargada a outros países europeus, a verdadeira face dos Estados terroristas mostra-se cada vez mais na sua ligação a um lucrativo aparelho repressivo que vai da indústria do armamento às estruturas tecno-militares que respondem pelo nome de democratas na manutenção da ordem pública.

Este texto, escrito há uns meses pelo colectivo que entre 23 e 25 de Outubro lembrou a morte de Rémi Fraise directamente contra a fábrica Nobel Sport, fabricante das granadas que o mataram, dá conta de como por terras francesas se assiste ao incremento da repressão policial e o discurso da construção do inimigo interno embalado pela retórica do terrorismo.

O relato e reflexões que aqui traduzimos desde França apela ao debate, à acção e à resistência.

Quis a história que o início de 2015 marcasse uma reviravolta na imagem já degradada das forças de autoridade após 10 anos de mutilações e de muitos assassinatos.

Primeiro na rua, as agitações estudantis dos anos 2000 vieram juntar-se à fúria dos subúrbios. Ambas vieram chamar a atenção para um dos aspectos principais da manutenção da ordem pública: trata-se de uma força essencialmente dissuasiva, que, se necessário, reprimirá os tumultos com recurso a dispositivos premeditados.

Mais recentemente, em zonas rurais, a resistência aos projectos de implantação de infra-estruturas bem se viu confrontada com as práticas francesas em matéria de controlo do território: os gendarmes [polícias] literalmente enlamearam-se todos em Notre-Dame-des Landes e a chafurda que fizeram teve como consequência previsível o uso frenético das suas armas, provocando numerosos feridos; e em 25 de Outubro de 2014, provocaram a morte de Rémi Fraisse na Zad do Testet.

E no mundo dos media, os especialistas em segurança interna cometeram uma grande falha ao pronunciarem-se sobre o caso Tarnac de 2008. Todo o retrato construído do inimigo interno tornava-se, em apenas algumas semanas, a tumba daqueles que o tinham brandido como um espantalho. MAM (Michèle Alliot-Marie, ministra da administração interna na altura), (Thierry) Fragnoli, agentes secretos da DCRI (Serviço de Informações de Segurança)… todos eles acabaram por sair pela porta dos fundos.

E, se já não estávamos habituados às pequenas lutas sujas que se travavam nos confins dos edifícios de segurança interna, o caso Tarnac trouxe de novo o assunto à baila. Assim como em 2009, a história do desaparecimento do activista basco Jon Anza, quando viajava num comboio para Toulouse e que reaparece um ano mais tarde, anónimo, numa morgue.

E agora, sem que nada o fizesse prever, um atentado dá-se na sede do Charlie Hebdo, em inícios de 2015. Vários polícias morrem neste acontecimento. Todos os meios são accionados para se orquestrar uma das mais espectaculares mobilizações dos últimos anos. Determinado, o povo desfila atrás da polícia e todo o historial acumulado há mais de dez anos esfuma-se quase de imediato. Milhares de pessoas caminham lado a lado com vários chefes de estado e aclamam os snipers que vigiam a manifestação. Bela demonstração de força do anti-terrorismo que encontra por fim a sua tradução popular! E nos dois meses que se seguem a este evento mórbido, o estado responde metodicamente a cada um dos erros que cometeu.

A 6 de março de 2015, a Zad do Testet é destruída por 200 agro-industriais da FNSEA (federação nacional dos sindicatos dos exploradores agrícolas), acompanhados por um pesado contingente de gendarmes, presente no local, com uma duvidosa posição de neutralidade, para evitar o agravar da violência.

Em maio de 2015, o Tribunal de Grande Instância de Paris rejeita o recurso civil apresentado pela família do Jon Anza, reconhecendo ao mesmo tempo “uma disfunção ao nível do inquérito tanto da parte da polícia como do conjunto de magistrados”, mas “sem falha grave”.

A 18 de maio, os dois polícias responsáveis pela morte de Zyed e Bouna em Clichy-sous-Bois em 2005 são absolvidos após 10 anos de procedimentos jurídicos.

A 7 do mesmo mês, os media anunciam a manutenção de um processo de anti-terrorismo no âmbito do caso Tarnac para três dos arguidos.

Nessa altura, também a comissão parlamentar criada por Noel Mamère em consequência da morte de Rémi Fraisse aprova o novo armamento posto à disposição da polícia. Consequência directa disso, o flashball é substituído pelo LBD (lançador de balas de defesa), mais preciso e mais potente do que o seu antecessor.

E para completar o quadro, uma proposta de lei sobre a informação de segurança vem legalizar todas as técnicas de vigilância que a polícia pratica na sombra. A mensagem é clara, nada mais virá perturbar o exercício da manutenção da ordem, cuja área de manobra agora alargada concede a cada um dos seus agentes a mais respeitável das funções: a de proteger a população contra o caos organizado. O que a mensagem omite é que para o poder, o caos organizado que dizem que é preciso paralisar não tem lá grande coisa a ver com o fantasma reinventado de Ben Laden, mas focaliza-se em todas as formas de viver, de morar, de conviver, de se organizar, que escapam às tabelas analíticas da actualidade.

No entanto, hoje em dia, não é segredo nenhum que a polícia mata, ela mata todos os anos, repetidamente, com as mesmas armas e obedecendo às mesmas ordens e, quando não mata, mutila. Se esta realidade é, há já muito tempo, de uma banalidade aflitiva nos subúrbios franceses, era até agora inexistente nas manifestações.

Nobel-Sport-2Desde a morte de Malik Oussekine em 86, a manutenção da ordem à francesa servia de exemplo para toda a Europa. Uma maneira de proceder irrepreensível, dizia-se, aliada a um armamento fiável, ainda que cada vez mais letal. Em 10 anos, e em diferentes campos de batalha, esta competência com tanto orgulho publicitada teve de passar a prova de uma renovada determinação e sobretudo da extensão dos terrenos de confronto. Incêndios e pilhagens nos subúrbios, confrontos em zonas rurais, generalização das técnicas de bloqueio, mesmo até por certos dirigentes da CGT [sindicato], sabotagens de ferramentas de trabalho, de linhas de alta tensão… oportunidades não faltam às autoridades para medir forças com outras formas de contestação mais heteróclitas. Faz agora 10 anos que a polícia tem vindo constantemente a aperfeiçoar os seus métodos de intervenção e cada novo conflito, cada derrota sofrida, serve-lhe para melhorar a sua capacidade de intervenção e para afinar a sua doutrina.

Um relatório recentemente publicado indica, quanto a este assunto, que o uso de granadas ofensivas está limitado, em França, a três tipos de terrenos: os bairros dos subúrbios, os dom tom (departamentos e territórios franceses ultramarinos) e as Zad [Zona A Defender]. O que as autoridades se contentam em qualificar como zonas de non-droit (onde a lei não se aplica), parecem beneficiar de um estatuto particular e tornam-se verdadeiros laboratórios para as suas experiências.

Depois dos bairros, as fábricas, as universidades, as escolas secundárias… cabe agora às Zad e suas ramificações urbanas ser um dos principais objectos de estudo dos empreendedores da segurança.

Ultrapassar o medo

Precisamos reconhecer que existe uma certa convulsão nos movimentos de luta contra o efeito destruidor das armas da manutenção da ordem e a sua utilização quase sistemática. Se ficámos surpreendidos ao ver pouca gente sair às ruas após a morte do Rémi, menos surpreendidos estávamos ao constatar as divisões que esta sequência de eventos provocou nos movimentos. O receio, mais ou menos fundado, de ver repetir-se nas manifestações anti-repressão o mesmo dispositivo de confronto levando às mesmas consequências, notou-se na reacção massiva a este assassinato. Sentia-se no ar um sentimento de abandono vindo dos que desfilavam nas ruas e de privação por se recearem os confrontos directos com a polícia. Esta contentou-se em bloquear os acessos aos centros das cidades e alimentar os receios efectuando sucessivas cargas mediáticas.

Ainda assim, algo importante e significativo acabou por acontecer. Mesmo se o medo cobria como uma nuvem espessa o ambiente das manifestações do Outono do ano passado, cada uma delas, tanto em Nantes como em Toulouse, reunia cada vez mais pessoas. E apenas o tempo e a repetição estiveram contra os manifestantes. Podemos falar de uma raiva contida que procurava uma forma de se expressar, entre bloqueios de ruas, esquadras e fábricas de armas.

O medo é um sentimento paradoxal que, ao mesmo tempo, nos faz retrair e ir mais longe. A primeira reacção, a mais recorrente, produz em substância o que faz apagar as lutas ou mantê-las num certo estado de agonia. Vários medos apoderam-se de nós: o de ter de assumir práticas de confronto directo, o de ver os nossos companheiros de luta afastarem-se de certas acções, o de trair a nossa identidade política, e outros mais.

Todos estes medos são, ao mesmo tempo, consequência e motor da repressão, que aproveitando-se de uma fragilidade na composição dos grupos, abre uma brecha para amolecer a energia de um movimento.

A melhor defesa contra este efeito é tentar encontrar as melhores condições para construirmos uma forma de confiança comum, que não ignore os conflitos existentes dentro do movimento e que tome em consideração certas necessidades estratégicas numa luta que enfrenta a máquina do estado.

Ou seja, a mesma confiança que nos permitiu fazer recuar 2000 bófias em 2012 na ZAD, de bloquear em 2011 um comboio de resíduos radioactivos durante várias horas, de levar 500 tractores às ruas de Nantes, ou ainda de impedir em Montreuil os raids aos imigrantes ditos ilegais. Para além das fatalidades que possa haver nos obstáculos encontrados no decorrer da História, existem também os avanços positivos possíveis que fazem tudo mudar.

Práticas de luta

A indústria das armas em França tem a dupla particularidade de estar no topo das exigências internacionais em matéria de manutenção da ordem, beneficiando, igualmente, de uma relativa opacidade quanto ao destino da sua produção.

No entanto, se na Grécia, os que sofrem constantemente dos ataques da polícia, encontram dificuldades em enfrentar os produtores de armas, é porque as mesmas que servem para os agredir são fabricadas no nosso país (França). Assim como a morte de um adolescente, há cerca de um ano, durante o aniversário da ocupação do parque Gezi na Turquia, foi provocada pela explosão de uma granada francesa. Por toda a parte, e até nas insurreições árabes, a indústria francesa de armamento tem causado a mesma desgraça. Trazer a lume a existência deste tipo de indústria permite começar a fazê-la sair da toca em que ela se meteu e encontrar os meios para fazê-la parar.

Analisar e estudar o funcionamento da polícia, assim como da justiça, encontrar as suas falhas e comunicá-las, saber o que eles comem, como se deslocam, quem lhes fornece as armas e como, são várias das questões sobre as quais desejamos reflectir para procurar formas de agir. Conhecer as suas falhas para assim podermos, no momento oportuno, diminuir os danos desta indústria.

A ideia de nos encontrarmos em Pont de Buis remonta a dezembro do ano passado, aquando das manifestações em resposta à morte do Rémi Fraisse. Nessa altura, éramos mais de 200 em frente à Nobelsport sem saber muito bem o que se encontrava lá dentro. Esta experiência ensinou-nos uma coisa. Bastou sermos quanto éramos a circular à volta das grades do perímetro da fábrica para parar a produção. Trata-se de um local de produção de explosivos submetido a uma regulamentação drástica. Uma simples presença hostil é suficiente para interromper a produção. Hoje queremos ir ainda mais longe na experimentação de práticas de bloqueio deste tipo de indústria. Saber como funcionam as unidades de produção, por que estradas circulam os transportadores, quais são os locais de armazenamento, ou seja, expor a economia secreta que constitui o armamento da polícia e encontrar os meios de a perturbar.

Nobel Sport

Nobel-Sport-1A NobelSport é uma grande empresa francesa de produção de armas destinadas à polícia. Ela gere a fábrica de pólvora de Pont de Buis desde 1996 e fabrica granadas e munições. Fornece armas não apenas à polícia, mas também ao exército e vende os seus produtos a vários países estrangeiros. Quatro estabelecimentos estão repartidos por todo o território e a sede localiza-se em Paris. A sociedade é dirigida por um conjunto de sete accionistas que desenvolvem a sua actividade entre a indústria das armas e o mundo financeiro. É uma empresa entre outras mais, poderíamos também ter como alvo a Alsetex na região do Sarthe, ou a Verney Carron em Saint Étienne, ou ainda outras empresas que equipam as autoridades, do uniforme até à pintura dos seus veículos.

A área de produção representa cerca de metade da superfície da povoação, isto é, vários quilómetros de gradeamento. Situa-se num território há muito dedicado à indústria da manutenção da ordem. A escola de gendarmeria [forças militares policiais] em Chateaulin, a base de submarinos nucleares em Île Longue, a presença das autoridades é bem evidente nesta região. O que conhecemos da história desta fábrica, para além da sua implicação histórica nas investidas guerreiras de Louis XIV, é a triste realidade de uma indústria altamente explosiva, levando, por vezes, a vida de alguns trabalhadores ou destruindo as janelas das casas nas proximidades. As duas tragédias ocorridas desde 1975 provocam alguns suores frios a quem quiser imaginar o que é viver ao lado de uma fábrica de pólvora.

Nos dias 24-25-26 de Outubro organizámos um fim-de-semana de acções contra a fábrica NobelSport e as armas da polícia, juntando-nos igualmente às várias manifestações a ocorrer por todo o lado pelo aniversário da morte do Rémi Fraisse.

Collectif Pont-de-Buis, 2015

Mais informação em http://desarmonslapolice.noblogs.org

 

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1 Comentário
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  1. […] e colamos do Jornal MAPA este artigo assinado por Filipe Nunes, onde recolhe o texto, escrito há uns meses, pelo colectivo […]

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