A Primavera Bósnia
No início dos anos 90, as potências ocidentais iniciavam a guerra pelo domínio dos novos territórios que a queda do império soviético deixava disponíveis. Pense-se em guerra não apenas como um fenómeno bélico. Pense-se como diplomacia, influência, dependência económica, colonização. Mas pense-se em guerra também como é costume pensar-se nela. Com armas e mortes. No primeiro tipo de pensamento, surgirá, por exemplo, a Polónia. No segundo, o mais certo é a Bosnia-Herzegovina.
Tal como nas regiões mais a norte, também aqui a primeira grande resposta à queda da chamada “cortina de ferro” foi uma vaga de declarações de independência. A unidade jugoslava, engendrada por Tito, desfazia-se perante as exigências da Eslovénia, primeiro, e da Sérvia e da Croácia, depois. Na Bósnia, o caso tem particularidades importantes. Existem zonas com maiorias culturais diferentes. Uma maioritariamente católica e de ascendência croata, uma outra essencialmente ortodoxa e de ascendência sérvia e, finalmente, por escolhas da História, uma outra parte maioritariamente muçulmana. Ora, as áreas croatas e sérvias declararam deixar de pertencer à Bósnia. Não propriamente para serem independentes, mas para se unirem às suas respectivas “pátrias mãe”.
UMA GUERRA PROVOCADA
Sendo que as zonas com determinadas maiorias não eram geograficamente contínuas nem necessariamente coladas ao país ao qual se queriam unir, o reconhecimento apressado das independências por parte da comunidade internacional acabou por criar a necessidade de que essas zonas passassem a ser contínuas e contíguas. À força se necessário fosse. E foi. O desmembramento duma economia era demasiado apetitoso para que o ocidente pensasse nas consequências. O FMI entrou em 1989, a rapina podia começar.
Claro que se pode pensar que, num caso assim, não há culpa para além da negligência. Mas isso seria considerar apenas o lado mercantil da tomada de posse dos territórios disponíveis. Lembremo-nos de que a nova arquitectura mundial deixava obsoletas algumas estruturas criadas para a guerra fria, nomeadamente a NATO. Seria lógico que uma aliança militar feita para combater um determinado inimigo se dissolvesse mal a guerra fosse ganha. Mas o domínio mundial não tem apenas um braço económico. E o militar não queria deixar de existir. Era preciso um novo papel, uma nova legitimação. E uma guerra tão sangrenta, desumana e próxima como a da Bósnia, com as suas inegáveis urgências humanitárias, era uma oportunidade demasiado boa para ser desperdiçada. A comunicação social criou o inimigo, os sérvios, e a NATO entrou para salvar os “bons”.
Dois exemplos que podem ajudar a que alguém se digne a considerar esta hipótese de a guerra da Bósnia, mais do que mero negócio que correu mal, ter sido uma guerra patrocinada e alimentada pelo ocidente:
O primeiro, o facto de os acordos de Dayton, que puseram fim à mortandade, serem uma cópia muito pouco alterada duma proposta feita no início da guerra (por um diplomata, por acaso português, chamado José Cutileiro) que, tendo os mesmo defeitos que Dayton, poderia, afinal ter poupado meia década de chacina. Assim se tivesse querido. Não o quis o ocidente e a proposta foi rejeitada pela parte muçulmana, basicamente graças ao poder de influência dos EUA.
O segundo, o facto duma aliança de defesa contra a ameaça soviética se ter tornado numa organização de resposta a crises humanitárias apenas durante a ausência dum inimigo visível – que acabou por surgir com o 11 de Setembro. E, hoje, a NATO já não é uma agência humanitária. É uma agência de contra-terrorismo.
Para além de que, mais do que o mero desmembramento, a destruição duma economia é uma oportunidade de negócio ainda maior, ou não fossem os braços económico e militar partes dum mesmo corpo. E assim foi nos anos que se seguiram ao fim da guerra. A rapina, com a receita típica do FMI, instalou-se, num habitat político cuja estrutura – resultante dos acordos de Dayton –, composta por dezenas de governos e milhares de cargos, potencia a corrupção. Uma economia à mercê do apetite do mercado e um país à mercê da voragem da indústria da reconstrução em trabalho de proximidade com milhares de políticos corruptíveis.
“Na Bósnia-Herzegovina, essa política começou por volta de 1989, sob os auspícios do FMI e do Banco Mundial – lembremos que o economista-chefe deste último era na altura Joseph Stiglizt, hoje reciclado em mentor de uma esquerda à procura de mentores. Nesses anos, as privatizações e as restruturações despediram então centenas de milhares de proletários, transformados a seguir em presas fáceis da carnificina inter-étnica da década de 90. Os acordos de Dayton, em 1995, puseram fim ao massacre e selaram o processo de desmembramento do país em entidades nacionais, tão fáceis de governar como de pilhar pelos diversos clãs nacionalistas que se constituíram como novas classes dirigentes. Tudo sob a protecção de centenas de burocratas e funcionários internacionais, bem como de milhares de representantes de ONG, todos encarregados de assegurar o respeitável «negócio da paz», e generosamente remunerados para isso.” 1 Assim foi a Bósnia entre o fim da guerra e Fevereiro de 2014.
A PRIMAVERA BÓSNIA
Os trabalhadores de algumas fábricas privatizadas (como Dita, Polihem e Konjuh) estavam, há muito tempo, a protestar pacificamente por razões relacionadas com as privatizações, em alguns casos contra o próprio encerramento da empresa. A 5 de Fevereiro de 2014, a juventude, os desempregados e outras pessoas juntaram-se e o protesto começou rapidamente a escalar. No dia seguinte, a revolta já se tinha espalhando, havendo notícias de Tuzla, Sarajevo, Zenica, Mostar e Bihać, algumas das maiores cidades do país, com a grande parte dos confrontos violentos e dos fogos a acontecerem na sexta-feira, dia 7 de Fevereiro.
As pessoas tinham ultrapassado a ideia de pertença étnica, tinham percebido que o nacionalismo mais não tinha sido do que uma forma de as porem umas contra as outras para possibilitar a ascensão duma nova classe dominante. E tinham, finalmente, compreendido que o que as une, das dificuldades aos sonhos, é igual para as gentes a quem os lucros e a geoestratégia, independentemente da sua nacionalidade, tiram o sangue e a vida. “As nossas elites trataram as pessoas comuns como animais de circo parvos que apenas precisam de ser adequadamente treinados. Viram-se como treinadores com licença para fazerem connosco o que quisessem. Em tempos, de facto, começámos a tornar-nos em animais selvagens. Humilhados e abusados, a nossa dignidade, sistematicamente destruída, agora tem sede de vingança e brutalidade em relação aos nossos abusadores” 2
Enquanto houve sedes governamentais a arder e confrontos com a polícia, ainda se ouviu falar da Bósnia nos meios de comunicação. Depois, com o acalmar da situação nas ruas, o tema foi abandonado. Precisamente quando começou a ficar realmente interessante. A população passou da contestação à criação dum contra-poder, os Plenums, plenários ou assembleias, onde se discutiam problemas e exigências e se formulavam respostas e soluções. E, se é verdade que chegaram, como aconteceu em Tuzla, a mimetizar o funcionamento do governo, não é menos verdade que as reivindicações se foram radicalizando e que os Plenums conseguiram realmente ter influência prática e concreta no dia a dia. Destituindo governos, alterando leis, diminuindo os ordenados e as regalias dos governantes, conseguindo a libertação de manifestantes presos e a demissão de políticos corruptos, alguns dos quais substituídos por pessoas “sem partido”, eleitas nos plenários.
Mais do que estes resultados e da beleza de ver a consciência nacional substituída pela consciência de classe, o surgimento (e o funcionamento) destes Plenums é o traço realmente entusiasmante do levantamento bósnio. Porque, mais do que contestação e mais do que resultados relativamente populistas, é de toda uma proposta que se trata. Uma nova forma para organizar a sociedade, pensada de baixo para cima. Uma espécie de democracia directa, baseada em assembleias populares (onde todas as pessoas têm poder e voz iguais), com um governo meramente técnico que executaria as decisões tomadas por essas assembleias (e que seria destituído se não o fizesse). Concorde-se ou não com a proposta, é inegável que os Plenums são muito mais do que uma mera organização da contestação.
No final de Março, a repressão intensificou-se. Detenções, acusações, despejos, processos judiciais, porrada. Se, antes, era difícil receber notícias da Bósnia, agora ainda o é mais. Mas, independentemente de como estejam as coisas, independentemente de quem está, neste momento, a ganhar, há vitórias que já não se perdem tão facilmente. As redes de solidariedade e luta criadas nos plenários, o abandono do nacionalismo, a consciência da força colectiva e a experiência de poder popular auto-organizado são coisas que podem e devem ficar para durar.
Notes:
- Jorge Valadas, A Receita Bósnia, 30 março 2014 http://goo.gl/mvTXIu ↩
- Dejan Vuković, Snapshots from Banja Luka: Why a Social Revolution is imminent, 13 março 2014 – http://goo.gl/IVssnU ↩