Felizmente continua a haver luar (Abril/Junho 2019)
Conversa americana sem "Fake News"
Alan, um velho amigo com espírito jovem e perspicácia nunca desmentida, vive em Washington a uma certa distância da Casa Branca, num bairro onde se misturam latinos, pequenos funcionários afro-americanos da administração federal e uma comunidade de imigrantes etíopes com os seus apreciados restaurantes. Das nossas trocas epistolares nasceu a ideia de uma conversa sobre o actual ocupante da Casa Branca e o significado dos seus comportamentos, que vão além dos óbvios limites mentais do individuo e exprimem interesses de sectores particulares da classe dirigente estado-unidense. Uma conversa que procura compreender o que por vezes parece incompreensível, que procura desvendar lógicas que se escondem por trás de atitudes espectaculares. Não há que negar os aspectos irracionais que existem na política capitalista, mas o irracional tem, por vezes, a sua racionalidade. Vamos, portanto, desfiando o fio da meada nesta troca livre de comentários e de opiniões.
As recentes eleições do midterm de Novembro 2018 mostraram um relativo enfraquecimento da base eleitoral republicana e particularmente de Trump.
Mark Twain escrevia em 1879, num dos seus textos satíricos sobre os políticos: «Recomendo-me como homem idóneo que sou —um homem que tem por base a depravação total e que se propõe ser demoníaco até ao fim. » (« Um candidato à Presidência », Um candidato Idóneo, trad. Madalena Caramona, Antígona, 2017.) Será isto hoje mais evidente para os eleitores estado-unidenses?
Alan: Como já tinha sido o caso em 2016, a maioria dos americanos que votaram desta ultima vez, votaram em candidatos liberais. Se, em termos gerais, Trump manteve as suas posições, isso deve-se antes de mais às particularidades da Constituição americana que, desde a sua origem, foi concebida para manter no poder as elites… que chegam ao poder. Em Novembro do ano passado, os Democratas teriam obtido ainda melhores resultados se tantos eleitores não tivessem sido postos de lado a pretexto de irregularidades de identificação e administrativas. Também houve manipulações de círculos eleitorais que permitiram a um partido (neste caso os Republicanos) obter mais lugares com menos votos do que o partido da oposição.
O que me parece mais importante é que esta última eleição confirmou o interesse crescente do eleitorado, sobretudo dos jovens e das mulheres, pelas ideias sociais-democratas defendidas pela corrente do Bernie Sanders, que é hoje um político extremamente popular nos EUA. A sua candidatura à eleição presidencial de 2020 deve ser levada a sério. Desde 2016, o Partido Democrata encontra-se dividido em dois campos bem distintos, o dos sociais-democratas, que apoiam Sanders, e o dos neoliberais, que apoiaram o clã Clinton, representado hoje por Nancy Pelosi, chefe dos Democratas no Congresso. As duas tendências pensam possuir a chave do futuro, tendo em consideração as forças demográficas em jogo nos EUA, o número crescente de eleitores negros e latinos, e de mulheres, que manifestam maioritariamente a sua rejeição da infame misoginia de Trump e do seu gangue.
Também as próprias consequências da política de Trump contribuem para enfraquecer a sua base eleitoral. As políticas destinadas a favorecer as grandes empresas e as grandes fortunas alienam parte do seu eleitorado. Todas as pessoas estão conscientes de que as recentes reduções de impostos promulgadas pelos Republicanos deixaram de lado a maioria dos estado-unidenses e favorecem as grandes fortunas e as grandes empresas. A guerra comercial que foi declarada aos parceiros exteriores tem um enorme impacto sobre a agro-indústria, que perdeu uma parte dos seus mercados de exportação. Os trabalhadores das indústrias metalúrgica e automóvel começam também a sofrer com as consequências desta guerra e as ameaças de despedimentos voltaram a fazer parte do quotidiano dos trabalhadores. Apesar de todo o barulho que Trump faz a propósito da subida dos valores bolsistas, a vida da maioria dos estado-unidenses é a cada dia que passa mais difícil. Os cortes nas ajudas e na segurança social, nos frágeis sistemas de ajuda médica, vão igualmente ter um impacto imediato sobre os meios populares que votaram Trump. Durante a sua campanha, Trump tinha prometido proteger estes frágeis sistemas, mas, dois anos depois, é evidente, salvo para os seus adeptos mais fanáticos, que as suas promessas não foram cumpridas. Na verdade, a única promessa a que ainda se agarra de maneira obsessiva é a da construção do muro, associada ao discurso xenófobo que a acompanha.
A palavra fascismo parece ser hoje utilizada por praticamente toda a esquerda para caracterizar a administração Trump. Por outro lado, há quem veja no fenómeno Trump a prova do declínio histórico dos Estados Unidos e da decadência da classe política.
A.: Mesmo um jornal como o The New York Times publica regularmente editoriais, tribunas e livres opiniões em que Trump é tratado por fascista. Dois respeitáveis professores de Yale publicaram recentemente livros de grande difusão que analisam as tendências fascistas do presidente. As análises são pertinentes, mas, como seria de esperar, estas sumidades não têm a mínima ideia de como se pode resistir ao fascismo, para não falar das suas propostas de actos de heroísmo pessoal… sem consequências práticas. A verdade é que, em geral, os liberais embarcaram no jogo verbal demagógico e na retórica do Trump, na enxurrada quotidiana de insanidades e de mentiras proferidas por este charlatão, um dia apresentando uma caravana de pobres imigrantes que tentam chegar ao «eldorado» como uma «invasão» aos EUA, outro dia negando os efeitos do aquecimento global sob o pretexto de que o Inverno é demasiado frio! O tratamento violento e arrogante de todas as opiniões de contestação, os casos de corrupção e de ilegalidade que envolvem os seus mais próximos colaboradores e familiares, a atribuição de lugares de responsabilidade do Estado a incompetentes fiéis ao chefe, são outros aspectos do vaudeville do regime. Entretanto, fora do campo espectacular dos meios de comunicação, o regime de Trump prossegue a destruição sistemática do que sobrava dos serviços públicos (já bem fragilizados pelo clã neoliberal dos Clintons), suprimindo as protecções ambientais que existiam, ignorando estudos científicos, e por aí fora. Num artigo recente, publicado no The New York Review of Books, Fantin O’Toole faz uma excelente descrição de tudo o que o regime Trump foi capaz de destruir até hoje.
E depois ? Que virá ?
A.: O Partido Democrata faz o que pode para se apresentar como o único remédio para Trump e para os Republicanos. É uma tarefa ingrata, tendo em conta o que fizeram durante as administrações precedentes e a fraquíssima popularidade das suas elites. Não se pode compreender a vitória de Trump sem ter em conta o ódio que havia nos meios populares pelos Clintons. Agora que ganharam as recentes eleições, os Democratas já se estão a preparar para as próximas presidenciais…
A ideologia eleitoralista parece ser de novo dominante, e há no presente imediato poucos sinais de uma oposição ou resistência que tome a forma de mobilizações colectivas. No entanto, a sociedade estado-unidense é atravessada por profundas correntes contraditórias que aspiram todas a uma mudança. Há a corrente reaccionária, animada pelo medo do declínio, que se reconhece no fenómeno Trump e que visa a restauração duma América que nunca existiu. O cineasta Frederick Wiseman, no seu último filme Monrovia, Indiana, faz um retrato de uma comunidade da América do interior que corresponde ao eleitorado de Trump. Mas a corrente mais dinâmica é a que tomou forma e se desenvolveu depois do movimento Occupy, e que defende a necessidade da actividade colectiva para criar uma mudança real na sociedade. Ao contrário do que se pode imaginar, esta corrente está também presente nesta América do interior. Depois do Occupy nasceu o Black Lives Matter, com mobilizações contra actos racistas, com movimentos maciços contra o controlo dos imigrantes nos aeroportos e com manifestações de jovens contra os massacres nas escolas e a reivindicação do controlo da posse de armas. Mas a repugnância que provoca o regime de Trump acabou por levar, pelo menos momentaneamente, a juventude a investir de novo na actividade eleitoral. Não penso que essa atitude seja definitiva, é apenas um momento transitório. Deste ponto de vista, a candidatura de Sanders vai reforçar a tendência eleitoralista. Mas é uma situação complexa, ambivalente, porque o apoio a Sanders, além de ser um apoio a medidas clássicas sociais-democratas — que ninguém sabe como poderão ser aplicadas sem confronto com a classe capitalista numa sociedade como os EUA —, exprime também, eu diria mesmo que exprime sobretudo, uma rejeição da sociedade estado-unidense tal como ela é vivida hoje pela maioria da população. Uma sociedade doente e sem perspectivas humanas, decadente. Esta rejeição traz aspirações a outra sociedade, que vão além da política eleitoral e que exprimem uma radicalidade que não cabe no programa de Sanders. Por seu lado, o velho Partido Democrata faz promessas pobres e vagas, uma simples reparação das destruições provocadas pelo regime de Trump, um regresso ao Estado de direito burguês e uma «reparação» da economia através do fim das guerras comerciais, a salvaguarda dos frágeis sistemas de ajudas sociais e médicas para os pobres e para as populações idosas. Isto é: um miserável regresso ao ponto de partida, que era já calamitoso.
A ideologia é uma coisa e a realidade política é outra. O Fascismo só se pôde impor como sistema político quando teve o apoio da classe dirigente, ou pelo menos das fracções mais poderosas desta classe. Trump tem o apoio dos mais ricos, das suas fundações e dos seus think thank, de grandes empresas e das forças da direita religiosa. Mas a questão é saber se estas forças são suficientemente sólidas para enfrentar e vencer as coligações capitalistas neoliberais que no passado deram o apoio material, financeiro, aos Clintons e ao regime de Obama.
A.: Voltemos a essa questão do fascismo. O fascismo como formação política é um fenómeno do passado que assenta nos valores da segurança, uma ideologia baseada no medo, no ódio e na nostalgia de um passado mítico. A retórica de Trump refere-se efectivamente a um passado que nunca existiu, um passado onde as minorias aceitavam os limites que lhes eram impostos, onde as mulheres se submetiam voluntariamente aos homens, onde o poder global dos EUA não era contestado, onde havia emprego para todos e bem pago, onde os impostos eram baixos, onde os meios de comunicação exprimiam os valores conservadores da maioria. Por outras palavras, estes EUA são uma terra incógnita que nunca ninguém conheceu.
Durante quanto tempo uma significativa parte dos capitalistas estará disposta a aceitar as esotéricas políticas económicas do regime Trump? A guerra comercial, por exemplo, é um puro produto das suas obsessões pessoais. Da mesma forma, a sua política externa obedece a critérios arbitrários e perigosos; o último exemplo é a promessa de venda de tecnologia nuclear aos chefes tribais da Arábia Saudita. Política que encontra uma oposição crescente do Pentágono e do poder dos militares, que a exprimem abertamente, como se tem visto com a demissão de altos cargos militares na sua administração. A potente rede de corrupção que envolve o seu clã mais próximo, a sua família, é também algo que desagrada aos grandes capitalistas e a sectores conservadores. A sua popularidade desceu a ponto de vários candidatos republicanos recusarem apoiá-lo na eleições de Novembro 2018, com receio de se verem associados à sua personagem. Tudo isto se jogará nas eleições de 2020.
No seu recente livro Crashed: How a Decade of Financial Crisis Changed the World (Nova Iorque, Viking, 2018), Adam Tooze defende a ideia segundo a qual a crise de 2008 mostrou a impossibilidade de compreender hoje o que se passa no capitalismo sem se referir ao funcionamento do sistema financeiro. Tooze argumenta também que a passagem de economias nacionais a gigantescas corporações capitalistas globais trouxe consequências radicais. Porque esta passagem esvazia o projecto da intervenção keynesiana. Se a economia mundial está dominada por este tipo de megaconglomerados, e isso é um facto irreversível, continuar a pensar em termos nacionais é submeter-se a uma estrutura de pensamento obsoleta. Esta é a lição da crise actual. Um regresso ao Estado-nação é ilusório, a menos que seja acompanhado por uma reorganização radical da economia global, o que implica uma gigantesca perturbação do estado do mundo. Como interpretar as pretensões de política proteccionista da administração Trump com base neste quadro de análise?
A.: Neste sentido, o regime Trump pode representar uma forma de decadência, de declínio dos EUA. Os seus projectos delirantes de proteccionismo e de refúgio isolacionista são apresentados como o caminho para uma retoma económica. Ora, o que se esta a ver é justamente o contrário. Parece evidente que, neste campo, Trump deverá enfrentar, mais cedo ou mais tarde, a oposição dos sectores mais poderosos da classe capitalista que «não joga só em casa», que tem os seus interesses a defender na preservação dum quadro capitalista global. Enquanto Trump os favorece, diminuindo os impostos e reforçando a suas capacidades de apropriação da riqueza produzida, está tudo bem. Mas desde o momento em que as condições da globalização da produção do lucro são ameaçadas, a contradição é insolúvel. É a luta de classes no seio da própria classe capitalista.
Ilustração de Ana Farias