Do outro mundo possível às economias que o sustentam
Já está em marcha o processo de confluência que em 2020 vai juntar em Barcelona movimentos sociais, activistas e praticantes das «economias transformadoras» de todo o mundo que estão a criar alternativas ao modelo capitalista. O primeiro encontro preparatório do Fórum Social Mundial das Economias Transformadoras aconteceu entre 5 e 7 de Abril de 2019 na capital catalã.
Um pouco por todo o lado, pessoas comuns têm-se juntado para experimentar outras formas de tratar colectivamente do seu sustento enquanto criam soluções práticas que dão resposta a necessidades de bens e serviços e contribuem para o bem estar de todas.
Velhas e novas cooperativas, grupos de troca, moedas sociais, hortas comunitárias, bancos de sementes, redes pelo decrescimento, grupos de produção e consumo agroecológico e outras iniciativas de base que providenciam alimento, educação, energia, poupança, cuidados e habitação são provas da emergência de um propósito de reorganização sócio-económica que introduz uma crítica ao modelo económico dominante, formulando propostas concretas para a sua transformação [1]. Por mais invisíveis que ainda sejam, já estão aí para fazer frente à violência e usurpação infligidas pela economia capitalista baseada no extractivismo voraz, no crescimento infinito, na competição desmedida, nas relações hierárquicas e patriarcais, na humilhação do trabalho, na degradação ambiental e na especulação dos mercados financeiros.
Com o intuito de articular e dar maior visibilidade a estas «outras economias» a nível global, arrancou no início de Abril de 2019 o processo internacional de preparação do Fórum Social Mundial das Economias Transformadoras (FSMET) que culminará em 2020 em Barcelona. Impulsionado pela Rede de Economia Solidária da Catalunha (XES), Rede de Redes de Economia Alternativa e Solidária do estado espanhol (REAS) e pela Rede Intercontinental para a Promoção da Economia Social e Solidária (RIPESS), o primeiro encontro preparatório do FSMET reuniu ao longo de três dias mais de 300 pessoas de cerca de 50 países e 5 continentes. A ideia era juntar e reforçar alianças entre iniciativas, movimentos e redes que têm como objectivo comum a construção de uma alternativa real de transformação do sistema económico e financeiro actual.
«O processo é o objectivo»
Mais do que um objectivo que se esgotará quando lançados os foguetes do grande encontro que está programado para 2020, pretende-se fazer do Fórum um processo de confluência que vá além de si mesmo. Isto é, que, a partir dos diferentes eixos e territórios, se gerem espaços de articulação local e temática, que dialoguem com a cena internacional, e que tenham continuidade no tempo como espaços de confluência e transformação.
O encontro de 5, 6 e 7 de Abril nos edifícios e jardins da Universidade de Barcelona serviu de pontapé de saída para este processo alargado. Como quem baralha as cartas e as distribui criando diferentes desenhos sobre a mesa, no primeiro dia as participantes dividiram-se por movimentos, no segundo dia por desafios comuns e no terceiro dia por territórios geográficos.
A primeira jornada de trabalho organizou-se a partir de quatro eixos principais: as economias feministas e a perspectiva de género; o movimento agroecológico e a soberania alimentar; a economia social e solidária – incluindo o cooperativismo, o comércio justo e as finanças éticas; e os «comuns» naturais, urbanos, do conhecimento e digitais. Para além destes, formaram-se também grupos de discussão em torno de «acções transformadoras» transversais aos quatro eixos: a comunicação, a educação e investigação, e as políticas públicas. Para além de discutir estratégias de disseminação do fórum e das iniciativas que o compõem, o objectivo era abordar o trabalho que está a ser feito nas escolas, universidades e centros de investigação no âmbito das «outras economias», bem como agregar e delinear políticas públicas que fomentem formas mais humanas de entender a economia.
Na súmula do primeiro dia de exploração intensa dos diferentes âmbitos das economias transformadoras, foram identificados 10 desafios comuns aos movimentos presentes no que diz respeito ao processo FSMET. Estes giram em torno da estratégia e do próprio processo do Fórum, do seu modo de governação e auto-organização, da visibilidade e narrativas inerentes, das novas tecnologias, da construção de conhecimentos e práticas, da educação transformadora e libertadora, do trabalho «glocal» e inter-movimentos, da relação com o estado e as instituições, da «vida no centro» e dos cuidados.
Foram estes os motes para que, no segundo dia do encontro preparatório, as participantes se distribuíssem então de novo, congregando assim à volta de cada desafio iniciativas tão diversas como uma comunidade de preservação e resgate do conhecimento indígena sobre as sementes no México, clínicas solidárias dos Camarões, finanças éticas da Malásia, sindicato de camponeses da Catalunha e comunidades de software livre da Índia, só para deixar alguns exemplos.
Finalmente, no terceiro e último dia tiveram lugar as convergências locais. Participantes de África, da América Latina e Caraíbas, da América do Norte, da Ásia, da Europa, e da Península Ibérica em particular (dada a prevalência da participação de pessoas deste território anfitrião), reuniram os movimentos geograficamente mais próximos para discutirem formas de organização, participação e tomadas de decisão territoriais. Por último, o Plenário final permitiu colocar em comum todos os acordos alcançados ao longo dos três dias de encontro, que guiarão o processo de trabalho de preparação do FSMET até 2020.
A partir daqui a batata quente fica na mão de quem participou. Espera-se que cada eixo e território se auto-organize a diferentes escalas, alargando o processo a mais iniciativas e organizações locais e internacionais, de forma a tornar cada vez mais visíveis estas outras economias, e apoiando a sua articulação e multiplicação. Uma plataforma digital permitirá facilitar o processo de confluência a nível global.
O outro mundo que já existe
Dezoito anos após o primeiro Fórum Social Mundial (FSM) em Porto Alegre, em 2001, arranca a preparação do primeiro FSM temático dedicado exclusivamente às «outras economias» – mesmo se um dos principais propósitos destes fóruns sempre foi fazer de contraponto ao modelo económico dominante, já que na sua origem e nos primeiros anos o evento coincidia com o Fórum Económico Mundial (o Fórum de Davos, na Suíça), momento de convergência dos principais actores da banca e das corporações neoliberais. O evento paralelo surgiu para articular e projectar as resistências e os movimentos como líderes da resistência mundial à globalização neoliberal, e adoptava o lema do movimento alter-globalização: «um outro mundo é possível». Agora acredita-se que já não basta apenas discutir e sonhar essa bela possibilidade, porque «o outro mundo já existe» de facto através de milhares de iniciativas que constroem alternativas reais todos os dias em todo o lado.
A decisão de acolher o processo de confluência do FSMET em Barcelona não será um mero acaso: para além de ser considerada uma referência histórica a nível mundial no que diz respeito ao cooperativismo, à economia solidária e às lutas sociais, nos últimos anos a Catalunha tem servido de alfobre profícuo para uma multiplicidade de alternativas sócio-económicas que desafiam o status quo das desigualdades, da exploração selvagem de recursos e do desrespeito pela dignidade humana.
Das centenas de exemplos possíveis de cooperativas e economias comunitárias catalãs implicadas com a justiça social e com uma grande vontade de construir um mundo melhor, basta olhar para a lista de colectivos locais envolvidos no trabalho (re)produtivo que permitiu facilitar este primeiro encontro preparatório para perceber a sua diversidade e alcance.
A alimentação esteve a cargo da Alterevents – colectivo gastronómico que serve «espaços livres de capitalismo, fascismo e exploração» – em colaboração com a cooperativa DiomCoop, composta por trabalhadores maioritariamente migrantes de venda ambulante não-autorizada. Para a logística contribuíram ainda projectos autogeridos que facilitam a tradução simultânea de forma voluntária (Coati), equipamentos de som (Indigestió e Quesoni), relatórios colectivos com recurso a ferramentas de software livre (a cooperativa FemProcomuns), e uma multiplicidade de projectos cooperativos relacionados com a comunicação – integradora, não-violenta – e com a facilitação das sessões, dos espaços e do conhecimento. Muitas dos participantes ficaram também alojadas em albergues que integram a rede de economia solidária local, e do circuito sugerido para os tempos de ócio faziam parte um cinema cooperativo e centros sociais populares.
A logística é precisamente um dos principais desafios organizativos para o grande encontro de 2020, que pretende dar resposta a todas as necessidades de forma coerente com os valores que o FSMET promove, fomentando os processos de intercooperação entre projectos das economias transformadoras. Conscientes do processo de gentrificação de Barcelona e do impacto que o acolhimento de um evento desta envergadura pode ter, como alojar as milhares de participantes esperadas em 2020 sem recorrer aos hotéis e «alojamentos locais» que depredam a cidade? Como alimentar tal quantidade de gente de forma ética, saudável e responsável?
Será no caminho e nas práticas que as respostas irão surgir, com a abertura a outros mundos que são parte deste mas que ainda se desconhecem.
Numa das intervenções no Plenário final do encontro falou-se na importância de abolir certos «cercos ideológicos» que muitas vezes criam perímetros que separam diferentes capelinhas da mesma congregação. Talvez por esse motivo se tenha adoptado o termo das «transformadoras», que não quer ser mais uma teoria, mas sim uma agregação: como se tivesse chegado o tempo de abrir espaço e convergir numa nova cultura que supere os individualismos.
Tornar visíveis e multiplicar as práticas quotidianas dos movimentos em prol das economias que «colocam a vida no centro» – abrandar ritmos se for preciso para que venham todas, sem medo. E nesse caminhar mais lento, mais junto, dar corpo e ensejo a uma narrativa transformadora que faça frente aos cercos do capitalismo, em direcção a sociedades mais resilientes, baseadas em formas de produção, consumo, e subsistência justas e cooperantes. Esse outro mundo que não é só possível, mas já está a caminho, rumo ao Fórum Social Mundial das Economias Transformadoras.
[1] Uma série de recursos sobre as economias transformadoras pode ser consultado através do website da RIPESS, em https://tinyurl.com/economiastransformadoras
Texto: Sara Moreira Fotografia: Sara Moreira e Luisa Carvalho Este artigo foi publicado no Jornal Mapa nº 23 (Abril-Junho 2019)