Felizmente continua a haver luar (Janeiro 2019)

Os bons e os maus vírus da febre amarela

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1.
É difícil dizer qual foi a gota de água que fez transbordar o copo da fúria social em França. Terá sido o anúncio dos sumptuosos trabalhos de renovação do palácio do Eliseu, o tom arrogante do presidente, ou, finalmente, o aumento de alguns cêntimos do preço do litro de gasóleo? Tudo ao mesmo tempo, certamente. O copo estava quase cheio, mas os poderosos pensavam poder continuar a enchê-lo ainda por mais tempo. De súbito, as classes exploradas saíram da sombra, vestindo-se de amarelo fosforescente para se tornarem visíveis num sistema onde se tinham tornado invisíveis. E foi uma explosão de raivas e de frustrações acumuladas há anos, anos de greves perdidas, de movimentos esmagados, de resignações mal vividas, de direitos anulados, de uma lenta e contínua descida para o empobrecimento. Anos em que apenas se tenta sobreviver, enquanto a riqueza cresce e se ostenta e o bem-estar dos ricos empurra os pobres e os desvalidos para as margens da sociedade, em que tudo caminha no mesmo sentido: os salários baixam, os empregos tornam-se precários, as pensões de reforma são reduzidas, os serviços públicos degradam-se ou desaparecem, as magras prestações sociais (habitação, crianças) sofrem cortes, a gentrificação das grandes cidades força a mudança da massa dos trabalhadores para desertos periurbanos abandonados pelos transportes públicos.

É nas regiões e nos territórios em que os serviços públicos são mais deficientes que a dita mobilização se revela mais forte e mais determinada. E não é preciso ser especialista para perceber que, se não há transportes públicos, o carro se torna um instrumento indispensável para procurar qualquer trabalho, para aceder ao hospital mais próximo ainda aberto, para comparecer a uma convocatória da segurança social, para ir ao correio ou para levar os miúdos à escola. Assim, a ligação deste consumo de gasóleo a uma responsabilidade da destruição do planeta é sentida como mais uma agressão a um corpo já muito debilitado. A utilização de classe da fiscalidade é assim posta a nu: os trabalhadores pagam cada vez mais, enquanto obtêm menos retornos sob a forma de serviços públicos. Assim, por via da crítica do crescimento vertiginoso das desigualdades, chegamos à questão social.
Uma outra gota que também contou muito foi a da supressão do imposto sobre as grandes fortunas (ISF), primeira medida emblemática do jovem banqueiro de negócios presidente, base do seu compromisso com a classe capitalista. Este imposto, que já havia sido reduzido anteriormente à expressão mais simples, foi eliminado na sua totalidade. Esta medida foi aprovada ao abrigo de uma das ideias da propaganda neoliberal: quanto mais ricos forem os ricos, mais farão trabalhar os pobres. A isto, a experiência popular responde: quanto mais a riqueza se acumula, mais a pobreza de espalha.

2.
E depois, bruscamente, os «Coletes Amarelos» (CA)! Grupos bloqueiam as estradas, as portagens das auto-estradas, as entradas das cidades e das vilas, as rotundas, o acesso aos centros comerciais. Manifestantes concentram-se e desfilam, tentando aproximar-se das prefeituras, edifícios públicos, repartições de finanças. Em pouco tempo, o aumento do preço do gasóleo passa à história, as reivindicações alargam-se, cada vez mais centradas na desigualdade social. São os primeiros sinais de uma fúria contra as classes possedentes e contra o Estado, fúria esta que é acompanhada de uma profunda rejeição da classe política no seu conjunto, conducente a uma crítica das formas de representação.

Neste primeiro tempo da revolta, as análises a quente procuram, como é natural, referências na experiência histórica. Alguns falam nas Jacqueries de antes da revolução francesa, outros nos movimentos políticos de natureza popular fascista ou mesmo de defesa corporativa do pós-guerra. Mas rapidamente nos apercebemos de que estas grelhas de leitura não se aplicam aos acontecimentos em curso. Trata-se de um movimento essencialmente urbano e periurbano, em que o bloqueio das lojas e do movimento das mercadorias afasta inclusivamente qualquer solidariedade com as camadas comerciantes que estiveram na base dos movimentos corporativos do pós-guerra. A sociologia dos manifestantes, designadamente dos indivíduos presos pela polícia, mostra uma presença predominante de proletários, de desempregados, de reformados, com uma percentagem importante de mulheres de todas as idades. E também de jovens assalariados com trabalho precário. Na sua maioria, pessoas marcadas por uma vida esmagada pela violência do sistema capitalista, mulheres e homens deixados para trás pela economia moderna. Pessoas que «não constam das estatísticas», como dizia um manifestante. Trata-se claramente de uma população diversificada, onde encontramos também alguns artesãos e pequenos empresários perdidos no turbilhão da economia moderna. A relação com o sindicalismo está praticamente ausente, pois as direcções dos grandes aparelhos sindicais são em grande medida associados às instituições do sistema e à sua corrupção. Uma população marcada pela violência da exploração de classe mas sem referência política de classe e, na maior parte dos casos, sem experiência de luta. A maioria dos CA nunca tinha participado numa manifestação nem em acções colectivas. E no entanto não podemos dizer que as ocasiões tenham faltado nas últimas décadas…

3.
As grandes manifestações nacionais de 1 de Dezembro exprimem um endurecimento neste confronto com o Estado e as classes possidentes. Elas atingem todo o território, estendendo-se para Nordeste, à Valónia belga e, uma semana mais tarde, a Bruxelas. Mas será nas grandes cidades, e em particular em Paris, que irão assumir um cariz mais violento e desembocar nos maiores motins de rua desde 1968. Globalmente, o número de manifestantes não foi muito grande, 200.000 em toda a França e cerca de 10.000 em Paris, e aproximadamente o mesmo na semana seguinte. Estes números ficam muito aquém dos das manifestações dos anos anteriores e dos tradicionais desfiles sindicais. Mas a intensidade, a natureza e a força dos confrontos exprimem um conteúdo claramente mais radical e inquietam o poder e a burguesia. Em 1 de Dezembro, as forças policiais são desorientadas pela determinação dos manifestantes e pela raiva exprimida. A repressão está à medida da surpresa e subsequentemente irá em crescendo. Nesse dia, a polícia lançou milhares de granadas de gás e explosivas, de tal modo que se vê a breve trecho com falta de munições… Contam-se imensos feridos graves entre os CA e a polícia sente de perto o ódio dos manifestantes. Em Marselha, a manifestação começou com o grito «a polícia connosco!», mas rapidamente o mote passou para «polícias assassinos». Em Paris, a multidão aflui espontaneamente para os Campos Elísios e o Arco do Triunfo, que foi saqueado. Os manifestantes dirigem-se em seguida para as avenidas próximas e para os bairros ricos da capital. Assiste-se então a algo completamente novo. Os cafés, restaurantes e hotéis de luxo tornam-se os alvos principais, sendo atacados e saqueados. Nas ruas dos bairros chiques, incendeiam-se ostensivamente os carros de gama alta. A revolta passa a ser dirigida contra a riqueza, contra a arrogância do luxo. O Palácio da Bolsa é igualmente investido e os grandes armazéns do centro da capital, onde estava a ter início a cerimónia das compras de Natal, são rapidamente evacuados e encerrados pela polícia. Algumas esquadras são atacadas. Grupos de manifestantes tentam invadir o Eliseu, mas são violentamente repelidos pela polícia. Numa das avenidas mais ricas da capital, nas paredes dos hotéis de luxo, repletos de turistas barricados no interior, lê-se num tag: «A Babilónia está a Arder!». Os porteiros dos hotéis e dos restaurantes elegantes que pretendem opor-se aos manifestantes são tratados de «agentes do sistema, lacaios dos ricos». Em Bordéus, a câmara municipal é atacada, no Puy, a prefeitura é incendiada, e noutras cidades o cenário é idêntico, as sedes do poder são sistematicamente tomadas como alvo e por vezes invadidas e danificadas, os grandes servidores do Estado e os deputados são ameaçados. Na noite de 1 de Dezembro, o poder parece desorientado e inquieto. Os primeiros recuos políticos não acalmam a situação. Está-se cada vez mais longe da questão do aumento de alguns cêntimos do preço do gasóleo. Porém, apesar da amplitude da primeira explosão, a única coisa que o poder tem para oferecer aos manifestantes da semana seguinte, a 8 de Dezembro, é uma maior repressão, com a mobilização de cerca de 100.000 polícias, dos quais quase 10.000 em Paris, e a entrada em cena de uma dezena de blindados de rua.

Quando o fim-de-semana de 1 de Dezembro chega ao seu termo, o cenário é perturbador para o poder. À crise política acrescenta-se agora uma crise social, a popularidade do movimento mantém-se forte, a burguesia alarma-se e os capitalistas do comércio, sobretudo do comércio de luxo, dão sinais de pânico. São efectuadas centenas de detenções, inclusivamente de muitos menores; só em Paris foram assinalados mais de trezentos incêndios nos bairros burgueses e as esquadras ficaram atulhadas. A maioria dos manifestantes eram pessoas da província que foram à capital para exprimir a sua revolta, furiosas com a sua situação. Em 8 de Dezembro, o número de detenções ascende a 2.000 em toda a França e, só em Paris, são reservadas 12 esquadras para guardar os detidos… Centenas de pessoas «conhecidas» da polícia ficam em prisão preventiva, «acusadas» de «delito intencional». Tanto em 1 como em 8 de Dezembro, verifica-se uma junção com grupos de jovens radicais habituados a manifestações de rua e com pequenos grupos de jovens vindos dos subúrbios. Mas estes não determinam o carácter da revolta, integrando-se simplesmente na fúria popular que se exprime já nas ruas. Assinala-se igualmente a presença de grupos de extrema-direita, aspecto que analisaremos mais adiante. Embora a polícia francesa seja muito eficaz quando se trata de controlar manifestações de tipo clássico e possua uma técnica largamente reconhecida e vendida aos diversos poderes do planeta, as coisas tornam-se mais complicadas quando se está perante motins urbanos em que se exprime «a capacidade de revolta de uma população», como reconhece um responsável, que acrescenta ainda que, a este nível, a resposta policial, por si só, é insuficiente e perigosa para o poder, pois só uma resposta política pode ser determinante.

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4.
Num primeiro tempo, a economia produtora de mercadorias não é afectada directamente. As mobilizações, embora possam ter o apoio e a simpatia dos trabalhadores, ocorrem fora dos territórios da exploração. Não há um bloqueio da economia, mas a circulação de mercadorias e o sector do consumo sofrem um duro golpe. As consequências para a economia geral fazem-se rapidamente sentir.
No entanto, a questão do bloqueio da economia está em todos os espíritos. A ideia da greve geral esteve sempre presente em todos os movimentos e greves anteriores. Sem ter levado a nada, como se sabe. Hoje são os CA que tentam bloquear o sistema. Em 8 de Dezembro, viram-se os CA bloquear os depósitos de combustíveis e inclusivamente os centros de distribuição da Amazon, empresa conhecida pelas suas agressivas práticas de trabalho e pelas suas fugas ao fisco. Nos dois dias de manifestações, em 1 e 8 de Dezembro, os CA mantiveram em toda a França os bloqueios e as chamadas barragens filtrantes, nas estradas e diante dos centros comerciais. É verdade que só se pode bloquear a circulação das mercadorias se estas tiverem sido produzidas, mas as mercadorias produzidas só se realizam verdadeiramente se circularem e se realizarem pelo consumo. Isto constitui um todo. A mobilização dos CA é composta na sua maioria por reformados, desempregados e precários. Todos sabem que não têm controlo sobre o bloqueio da produção, mas sabem também que é aí o coração do sistema, que é aí que é preciso atacar. Procuram, às apalpadelas, um caminho para lá chegar. A sua acção inscreve-se na sequência de fracassos sucessivos dos movimentos grevistas dos anos anteriores, fosse contra a reforma das pensões ou a defesa dos serviços públicos, e cujo último episódio até à data foi a derrota dos ferroviários contra a continuação do desmantelamento dos caminhos-de-ferro. Subjacente a este movimento está a constatação da impotência das grandes organizações sindicais no período que atravessamos, a sua submissão às leis económicas do liberalismo em troca da sua sobrevivência subsidiada pelo Estado. Os recentes escândalos de desvio de fundos que mancharam os grandes aparelhos sindicais reforçam estas conclusões. Num ou noutro ponto, as mobilizações dos CA fizeram a junção com trabalhadores em luta ou solidários, por exemplo nos bloqueios de refinarias de petróleo. Localmente, militantes sindicais estão presentes individualmente nas barragens e nos bloqueios. Nas cidades onde a agitação popular é forte, os cortejos dos CA e dos trabalhadores juntaram-se. Foi o que aconteceu em Marselha com os manifestantes dos bairros pobres em luta contra a gentrificação da cidade e a corrupção da câmara municipal. E também com os jovens das escolas secundárias, que iniciaram um movimento nacional de bloqueio das escolas onde se exprime uma solidariedade com os CA.

5.
O posicionamento dos CA relativamente aos valores patrióticos, xenófobos e racistas tem sido ambíguo desde o início. Esta ambiguidade traduz o espírito reaccionário e de fechamento em si mesmo partilhado por numerosos participantes. Este é o grande escolho do movimento e do seu futuro. Em certas regiões em que as forças da direita militante e xenófoba são fortes, o racismo, a rejeição xenófoba e o sexismo exprimem-se por vezes abertamente. Mas a sociedade francesa é o que é, um melting pot onde os proletários têm origens diversas. Testemunho disso é a composição de muitas barragens e bloqueios. Aqui e ali, observou-se a presença activa de jovens dos bairros pobres e, inclusivamente, o apoio material das mulheres dos bairros de imigrantes. Mas a presença de activistas da extrema-direita é insofismável, aglutinados em torno dos símbolos patrióticos. Isto suscita um debate nos meios radicais e libertários: deve participar-se nas mobilizações e barragens e nas discussões ou deixar o terreno livre à extrema-direita? Uma grande maioria de militantes e activistas libertários e de extrema-esquerda envolveu-se com toda a naturalidade nas barragens e nos bloqueios, e muitos vieram discutir o movimento, confrontando-se com os CA. Esta libertação da palavra, esta ideia da ocupação e da criação de territórios de discussão e de acção, remete de forma subterrânea para as práticas do Nuit Debout, mas também para a imagem deixada pela luta das ZAD.
Nos motins e confrontos de 1 de Dezembro, a presença dos radicais foi importante e os grupos de extrema-direita foram muitas vezes expulsos do terreno. Não é certo que a maioria dos CA tenha compreendido o que estava aqui em jogo, pois as suas preocupações encontravam-se noutro lado. E seria vanguardista pensar que foi a acção dos radicais que afastou por agora a extrema-direita organizada. O verdadeiro motivo é que as razões profundas deste movimento, contra a injustiça e a desigualdade social e contra os privilégios dos possidentes, são valores difíceis de defender pela extrema-direita. Dito isto, os valores xenófobos e racistas, a rejeição dos refugiados e dos «assistidos», considerados como «responsáveis» pela miséria social, as teorias paranóicas da conspiração, tudo isto está muito disseminado na sociedade dos excluídos e, portanto, também existe no movimento. É impossível saber em que medida o debate e a discussão, a intervenção de radicais e libertários no movimento, podem contribuir para o contrariar. A presença da bandeira e o recurso constante à Marselhesa são a expressão visível desta dimensão reaccionária. Sem dúvida, a bandeira vermelha e a Internacional encontram-se hoje muito esquecidas, e sobretudo permanecem associadas ao desastre dos antigos países de capitalismo de Estado. É verdade que a Marselhesa regressa nestas mobilizações como o símbolo do canto da revolução contra os privilégios e os senhores.

6.
A questão da representação está igualmente no centro das mobilizações. É sobretudo a rejeição da representação como a vivemos no mundo moderno e que, para muitos dos presentes, não tem nada a ver com o ideal que têm da democracia. A classe política e as direcções dos grandes sindicatos perderam todo o crédito. Todas as tentativas para encerrar a mobilização num quadro institucional estão sistematicamente votadas ao fracasso. Num artigo incisivo na imprensa [«Députés cherchent chef de rond-point» (Deputados procuram chefe de rotunda), Libération, 8 de Dezembro 2018] alguns deputados desorientados explicam que procuram desesperadamente interlocutores no movimento. «Eles dizem: “Nós somos o povo”. Rejeitam a própria ideia de representação. E isso é válido tanto para nós como para eles. Quando muito aceitam enviar um delegado. Mas nesse caso querem estar também presentes». Um outro acrescenta: «Pessoas de boa-fé param porque têm medo, outras radicalizam-se na sua ZAD de rotunda. (…) Basta que um tipo se destaque e aceite discutir para que seja imediatamente contestado pelos outros, que não querem que haja dirigentes».
Com efeito, os CA praticam a auto-organização mas não têm chefes e aqueles que se autoproclamarem chefes são imediatamente desautorizados, sobretudo a partir do momento em que utilizam a comunicação social. Nas barragens, os cartazes dizem «ninguém representa ninguém». Aliás, a maioria dos candidatos a chefes estão ligados aos partidos de direita e de extrema-direita que tentam assim, sem sucesso, assumir o controlo de uma situação difícil de entender no quadro tradicional. A nível local, os CA aceitam por vezes formar delegações para transmitir às autoridades as suas listas de queixas. Estas estabelecem um panorama da situação social, não incluem reivindicações negociáveis e têm uma ideia central: «É preciso dizer NÃO a tudo isso!» Encontramos também nessas listas exigências com conotações racistas ou xenófobas, designadamente a expulsão dos imigrantes ilegais.
A determinação que se observa na rejeição da representação actual dá uma medida da crise das instituições políticas e mostra a difícil tarefa dos políticos de enfrentarem a crise no quadro democrático parlamentar e sindical. Quando muito, os mais ousados propõem referendos ou a modificação do quadro constitucional. Os comentadores formatados para pensar nos limites do que existe têm dificuldade em apreender esta dimensão do movimento, e os «especialistas dos movimentos sociais», capazes de esmiuçar os contornos sociais e políticos da crise, insistem não obstante na proposta de uma tomada de controlo do movimento pelas forças da velha esquerda, tentando encerrar os revoltosos no quadro que eles acabaram de lançar borda fora.
Por seu lado, o Estado aposta em primeiro lugar na repressão maciça e no medo. As declarações alarmistas sobre uma situação de guerra civil introduzem de novo a velha ideia das «classes perigosas». Mas bloquear a fúria social militarizando Paris e as grandes cidades é dar um tiro no pé. É a paralisia da sociedade e da economia enquanto a raiva vai em crescendo. Impõe-se uma resposta política, mas, sem meios económicos, ela revela-se uma mão cheia de nada, ou de migalhas. Como foi com a resposta presidencial.

7.
Uma afirmação que corre nas barragens dos CA espalhou-se por todo o lado: «As elites preocupam-se com o fim do mundo, nós preocupamo-nos com o nosso fim do mês». Num primeiro tempo, esta afirmação foi interpretada como a prova de que os revoltosos rejeitavam as preocupações ecológicas, exprimindo uma cegueira egoísta perante o desastre, e que só se preocupavam com o aumento do preço da gasolina. Com a continuação do movimento e a insistência posta nas responsabilidades dos poderosos, viu-se que essa oposição não existe na realidade e que se pode estabelecer uma relação entre o empobrecimento social e o desastre ecológico. Nas manifestações de 8 de Dezembro, muitos CA desfilaram com a Marcha pelo Clima. Para a grande maioria dos CA, a responsabilidade do desastre ecológico global deve ser imputado aos mesmos que são responsáveis pelo empobrecimento geral. O que é rejeitado é simplesmente o método que consiste em atribuir o desastre ecológico aos «pobres», punindo-os através da fiscalidade. Enquanto muitos CA se mostram inquietos com a destruição do ambiente, de que os pobres são as primeiras vítimas, a propaganda do poder tende a explorar politicamente o «catastrofismo», colocando-o ao serviço de uma paralisia dos espíritos e de um reforço da passividade e da resignação perante o inelutável.

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8.
Este poderoso movimento de fúria que atinge toda a sociedade é atravessado por valores, preocupações e desejos diversos, por vezes opostos, contraditórios. Trata-se de um movimento simultaneamente virado para o passado, incentivado pelo desespero e pelo medo da insegurança social e pela vontade de fechamento em si mesmo, e para o futuro, dado que estimulado por uma crítica profunda das desigualdades de classe. Como todo o movimento essencialmente negativo, de rejeição, transporta com ele uma perspectiva reaccionária e uma outra que aponta para um futuro diferente. Estas perspectivas não assumiram ainda uma forma concreta, organizada. Até agora, os valores da igualdade e da justiça social são dominantes, impedindo os valores reaccionários de se exprimirem de uma maneira que poderia ser violenta e dirigida contra o «Outro». A rejeição do sistema representativo tradicional pode também reforçar a tendência autoritária do poder se o movimento não conseguir estruturar-se e afirmar formas de democracia directa que estão já presentes nas mobilizações e que são as únicas que podem conduzir a uma dinâmica emancipadora do mundo actual. Como sempre, a via autoritária e reaccionária, alimentada pelos valores do soberanismo patriótico e da xenofobia e do racismo, do fechamento em si mesmo, é a mais fácil, pois assenta na confiança depositada em novos chefes, num retorno a um passado mítico e na preservação das mesmas relações sociais de domínio e de exploração. A perspectiva emancipadora é a mais difícil e não é possível conceber o seu amadurecimento fora de um contágio das mobilizações dos CA aos sectores assalariados que estão na raiz da reprodução da vida social. Só então a rejeição e o bloqueio «disto tudo» poderão começar a engendrar novas relações sociais, capazes de reorganizar a vida. Isso significaria a passagem para o momento positivo do movimento. Só então «a procura do tempo perdido» se tornaria «o veículo da libertação futura», como escrevia H. Marcuse.

13 de Dezembro de 2018

Coletes Amarelos na Bacia de Arcachon

Numa manhã fria, chuvosa e húmida do princípio de Dezembro, à saída de uma rotunda diante de um centro comercial lúgubre de uma pequena povoação da Bacia de Arcachon, a sul de Bordéus, alguns homens, jovens desempregados, reformados e mulheres de várias idades montam um acampamento amarelo. Fazem isto todos os dias desde há uma semana. A maioria dos automobilistas fazem-lhes sinais de solidariedade, outros ignoram-nos. Estão bem-dispostos e rodeiam-se de placas com dizeres que dão conta sobretudo da desigualdade social. Estão fartos.
Christian está furioso, é um reformado e vê a sua pensão baixar, a mulher é doente e foi despedida ao fim de dezasseis anos numa empresa. O filho mora nas imediações e, para ir trabalhar, tem de fazer cem quilómetros por dia. Basta o que basta! Didier tem cinquenta e oito anos e trabalha desde os quinze no matadouro. A mãe, de 78 anos, depois de ter trabalhado toda a vida no comércio, já não consegue viver com a sua pensão e desligou o aquecimento para economizar. Está furiosa. Houcein enraivece-se contra o facto de estar tudo a aumentar, que não é justo serem só os ricos a poder aproveitar a vida enquanto os trabalhadores se limitam a sobreviver. «Não queremos deixar este mundo de trampa aos nossos filhos», diz. Marie-Christine era auxiliar de enfermagem e está à espera que lhe comece a ser paga a pensão de reforma; entretanto, vive das suas magras economias. Diz que o suicídio está a aumentar entre os reformados. Kévin é o mais novo, mas está ali solidário com os manifestantes. «Pessoas que nunca vão de férias e que, com as dificuldades, têm de viver no limite da legalidade». E acrescenta: «aqui estamos todos de acordo com os impostos para fazer funcionar o país, mas somos contra as taxas injustas.» [Excertos de entrevistas publicadas no semanário local La Dépêche du Bassin, 29 de Novembro a 5 de Dezembro de 2018]

Os acontecimentos em Avinhão, (relato de um sítio de informação alternativo local)

Sábado dia 1 de Dezembro, às 15 horas, quatro mil coletes amarelos juntaram-se em Avinhão, diante da prefeitura. Às 15h05, o portão é arrombado e os coletes amarelos penetram no parque. Às granadas lacrimogéneas dos CRS respondem espontaneamente jactos de pedras. O cortejo dos coletes amarelos dirige-se depois para a câmara municipal e a seguir para a residência do prefeito. A polícia corta o passo aos coletes amarelos, dispara granadas de gás e flash-balls. Várias centenas de coletes amarelos, a que se foram juntar outros habitantes da cidade, unem-se e durante mais de duas horas tentam passar, lançando projécteis contra a polícia. Cerca das 19h, reforços de guardas móveis vindos de Nîmes dispersam toda a gente. Mais tarde, seis pessoas reconhecidas graças à videovigilância são detidas na rua. Cinco adultos compareceram perante o juiz na segunda-feira, 4 de Dezembro, após 48 horas de detenção:

/ O primeiro, de 22 anos, animador desportivo desempregado, colete amarelo de Remoulin que veio a Avinhão para participar na manifestação, detido por lançar projécteis contra as forças da ordem. Condenado a 18 meses de prisão, 9 dos quais efectivos.

/ Um pedreiro de 33 anos que, ao saber dos acontecimentos, decide participar nos confrontos e, munido de uma raqueta de ténis, lança pedras contra a polícia. Condenado a 18 meses de prisão, 12 dos quais efectivos.

/ Reformado dos correios de 59 anos, antigo sindicalista, recentemente operado a dois cancros. Desde as 15h, diante da prefeitura, este colete amarelo insulta os CRS e tenta atirar-lhes uma grelha de esgoto. Embora se considere um «revoltado» e um «pobre desesperado», a juíza só vê nele «pura maldade». Condenado a 15 meses de prisão, 9 dos quais efectivos.

/ Doméstica de 23 anos, grávida, colete amarelo no bloqueio de Avinhão-Norte, acusada de ter incendiado um caixote de cartão. Foi colocada sob controlo judiciário com proibição de sair de casa.

/ Trabalhador temporário de 18 anos de Carpentras que foi à manifestação dos coletes amarelos. Participa durante duas horas nos confrontos com a polícia; ficou ferido quando foi preso. Condenado a 6 meses de prisão, 3 dos quais efectivos.

Para caracterizar os milhares de manifestantes reunidos diante da prefeitura às 15h, o procurador fala da presença de uma «caterva de cretinos». A juíza fala de «semi-guerra civil», e de «duzentos excitados que decidiram pôr a cidade a ferro e fogo». Perante a feição que tomaram os debates, a juíza viu-se obrigada a esclarecer que «o tribunal não faz política, nunca faz política»… Quem pode acreditar nisso?

Imagens de Catarina Leal

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