Piratas modernos e comunidades no mar
Veleiros colectivos encontram-se em Lisboa para rumar a sul
O Albarquel, retirado da água num estaleiro da Moita, vê um buraco aberto à martelada na proa. O Carina, tão perto de chegar a Lisboa, não pode senão aguentar ao largo que a tempestade amaine. O Tupamaro, sem cartas marítimas, encalha sucessivamente nos fundos lodosos da margem sul.
As aventuras de três singulares veleiros cruzaram-se em dezembro na foz do Tejo, e Lisboa voltou a ter traços de cidade pirata. Dia 22, solstício de inverno, as três tripulações juntaram-se no GAIA em Lisboa, onde se falou de projectos de vela alternativos.
“Velejar… um hobby de luxo para os privilegiados?”, questionava o convite para o jantar-conversa ‘Piratas modernos e comunidades no mar’. “Cada vez mais projectos e pessoas têm descoberto na vida no mar uma alternativa à sociedade consumista e uma experiência de autonomia e liberdade. Recuperam-se veleiros moribundos, içam-se velas, parte-se sem pressa, derrubam-se fronteiras, experimentam-se formas de vida comunitária e em harmonia com a natureza.”
À abordagem, por ordem alfabética:
O Albarquel encontrava-se inutilizado em Sarilhos Pequenos, sítio do último estaleiro naval de madeira do Tejo. É um impressionante barco de madeira dos anos 50, que transportava sal desde o Sado até Lisboa. Mas tem levado uma vida incomum: resgatado por várias pessoas e para diversas vocações, já viajou pelas Caraíbas, América do Sul, mar da Noruega.
Em dezembro passado, uma trupe de jovens franceses saltou a bordo para o reparar e o fazer navegar até Marselha. A palavra passou de boca em boca e motivou 15 pessoas – a maioria veio à boleia e só se conheceu já sobre o convés do Albarquel. “Somos todas muito diferentes. Algumas têm experiência em construção naval, para outras é a primeira vez num barco”, contam. Durante um mês geriram horizontalmente as reparações do barco, do casco ao alto do mastro, e aprenderam a viver em colectivo no pequeno espaço que outrora continha oitenta toneladas de sal.
Para a chegada a Marselha, “estamos a organizar um projecto de uma semana com refugiados menores, e temos muitas ideias, desde cinema a um atelier de cerveja. Tudo está em aberto, depende dos sonhos das pessoas que se juntarem ao projecto.” Projecto que já adoptou o nome dum pequeno barco vizinho: “Logo se vê”.
Procuram reutilizar tudo o que é possível e limitar os custos, para os quais fazem uma vaquinha entre todas e uma campanha de angariação de fundos. O actual proprietário cede-lhes o Albarquel por pelo menos um ano. “Ainda nem partimos e já ganhámos tanto com esta experiência. Vamos desfrutar, depois logo se vê.”
O Carina diz-se uma “passerelle flutuante utopista”. No porão do elegante barco em madeira vem uma âncora, uma vela e várias ferramentas para o Albarquel. Uma forma de transporte que é muito cara à sua tripulação. Em Setembro passado, resolveram resgatar uma velha tradição da Bretanha: “colhemos 600 quilos de cebolas biológicas que transportámos pelo mar, e vendemo-las pelas ruas da costa inglesa enquanto tocávamos música”.
“É uma forma de poesia política”, dizem. “Hoje os cargueiros representam 80% das trocas mundiais, mas destroem a vida marinha. Com o Carina, mostramos uma forma alternativa de mover bens e ideias à vela. Gostávamos de transportar coisas para apoiar espaços colectivos.”
Durante o verão, o grupo de amigos reparou o barco no estaleiro da associação AJD – ponto focal dos projectos de vela alternativos em França. Pagam a empreitada com trabalhos sazonais e uma campanha de crowdfunding.
Navegam numa “missão artística”. Acordeão, bandolim, clarinete e guitarra fazem parte do material de bordo. Antes de partir, encenaram “A sopa”, uma peça sem texto, para poder ser apresentada em portos, teatros ou praças e compreendida para lá de barreiras linguísticas.
A rota está em aberto, mas surpresa não será se seguir por Marrocos, Senegal, Cabo Verde. “Queremos enraizar em cada porto para conhecer pessoas e participar na vida local. Esta não é só uma forma de viajar, é todo um mundo, onde o horizonte é imenso, onde os elementos são os únicos mestres”.
O Tupamaro, veleiro indigente com nome de guerrilheiro sul-americano, não deixa de dar nas vistas: seja ao tentar entrar à bolina com a sua vela de estai meio desfeita pelo estreito canal da doca de Alcântara, seja ao atracar em plena Ribeira no centro do Porto, com a sua tripulação pé-descalça a emocionar a turba de turistas.
É um dos barcos do colectivo Jean-Batollectif/ve : uma quinzena de pessoas com vontades comuns: navegar, reparar barcos, criar sinergias, fazer espectáculos, grupos corais, cantinas… Colectivizaram quatro veleiros, recuperados gratuitamente aos antigos proprietários, que não lhes davam uso.
No Tupamaro foram cinco a deixar a Bretanha e atravessar o golfo de Biscaia – para buscar o calor doutras latitudes, arejar dos meios militantes, partilhar a arte da vela com quem a quiser descobrir e se juntar à dinâmica colectiva em torno do Albarquel.
Os três veleiros vão zarpar juntos de Lisboa e em frota rumar a sul, até cada um seguir desenhando no espelho do mar sua própria aventura.
logoseve.jimdo.com
projetcarina.wordpress.com
liberbed.net
Outros projectos:
AJD: belespoir.com
Alternative World Sailing Community: alternativesailing.org
Recla-Mar: cofradiareclamar.wordpress.com
Festina Lente: festinalente2016.net
Texto de Francisco Colaço Pedro [franciscocolacopedro@gmail.com]